segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

ENTRE PORTUGUESAS 2015 - COLÓQUIOS

COLÓQUIOS -MIGRAÇÕES E GÉNERO. NOVAS PERSPETIVAS DE INTERVENÇÃO Universidade Aberta - Palácio Ceia, Lisboa REVISÃO DA LEI DO CONSELHO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS E PERSPETIVAS DE PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES Victor Gil Ex-diretor do Gabinete de Ligação ao Conselho das Comunidades Portuguesas Quero saudar todos os presentes, a começar pelo meu amigo e colega Dr. Adelino Sá Bento Coelho que prontamente se dispôs a substituir a Prof.ª Dr.ª Ana Paula Beja como moderadora na análise e debate do tema que me propus aqui abordar sobre a revisão da Lei do Conselho das Comunidades Portuguesas e as perspetivas da participação das mulheres, e agradecer à Dr.ª Manuela Aguiar e à Dr.ª Rita Gomes o convite para participar neste Colóquio no âmbito das migrações e género. Ao escolher o tema, senti-me inicialmente inclinado para dar continuidade à análise sobre os atuais movimentos migratórios portugueses que apresentei por ocasião dos Colóquios promovidos no ano passado pela Associação Mulher Migrante, no quadro das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. Pensei que seria interessante aprofundar o conhecimento das tendências mais marcantes desses fluxos, tanto a nível do volume de partidas das mulheres e do seu perfil, como a nível dos possíveis retornos, em especial das mulheres que o tenham realizado ao abrigo do regime fiscal aprovado em setembro de 2009 para residentes fiscais não habituais ou do programa « VEM », este de data mais recente, enquadrado no Plano Estratégico para as Migrações (2015-2020) do Alto Comissariado para as Migrações, de cujos eixos prioritários o Eixo V respeita às políticas de incentivo, acompanhamento e apoio aos regresso dos cidadãos nacionais emigrados no estrangeiro. O pouco tempo disponível seria porém insuficiente para concluir nos prazos previstos a análise dos referidos movimentos, considerando a vasta e complexa recolha de estatísticas e outras informações a que teria de proceder, ignorando até se poderia conseguir algumas delas, pela simples inexistência das mesmas ou pela sua falta de publicação. Face a tais circunstâncias, optei por me decidir pelo tema escolhido, beneficiando da vantagem da proximidade no tempo do termo das minhas funções como diretor do Gabinete de Ligação ao CCP. Aos motivos expostos, será ainda de sublinhar que o tema se tornou um dos assuntos prioritários da atualidade da agenda política no âmbito das questões relativas às comunidades portuguesas, com as esperadas eleições do Conselho anunciadas para o próximo mês de setembro, e oferecer no quadro das migrações e género novas perspetivas de intervenção, com vista nomeadamente a corrigir o desequilíbrio que tem existido no Conselho em termos de género, dado o número das mulheres continuar a ser largamente inferior ao dos homens. Na minha exposição focarei os seguintes três pontos: - A revisão da lei orgânica do CCP (Lei n.º 66-A/2007, de 11 de dezembro) pela Lei n.º 29/2015, de 16 de abril; - A composição do atual CCP entre homens e mulheres; - As perspetivas de participação das mulheres no próximo CCP. A revisão da lei orgânica do CCP pela Lei n.29/2015, de 16 de abril Lembro, para refrescar a memória dos que o necessitem, que o Conselho das Comunidades Portuguesas foi instituído pelo Decreto-lei n.º 373/80, de 12 de setembro, por iniciativa da então Secretária de Estado da Emigração e das Comunidades Portuguesas, Maria Manuela Aguiar, mantendo desde então a mesma denominação, apesar do conturbado percurso por que tem passado ao longo dos seus já perto de trinta e cinco anos de vida. A iniciativa distinguiu-se pelo seu caráter pioneiro e inovador, visto até então nunca ter existido uma instituição idêntica ou semelhante e por ter institucionalizado um órgão de consulta e de representação dos portugueses residentes no estrangeiro. Como disse, mantendo a mesma denominação, a Lei n.º 29/2015, de 16 de abril, procedeu a uma profunda revisão da Lei n.º 66-A/2007, de 11 de dezembro, que define as competências, modo de organização e funcionamento do Conselho das Comunidades Portuguesas, introduzindo alterações em trinta e dois dos seus quarenta e seis artigos e o aditamento de mais quatro. Depois de submetido a uma vasta consulta pública, com particular incidência nas comunidades portuguesas, e ao parecer dos órgãos do CCP - o Conselho Permanente e as seis Comissões Permanentes -, o projeto veio a ser votado e aprovado pelos partidos da coligação governamental (PSD e CDS) e pelo Partido Socialista (PS), com a abstenção do Bloco de Esquerda (BE) e a oposição do Partido Comunista Português (PCP), tendo a nova lei sido publicada no Diário da República de 16 de abril de 2015. Vejamos de seguida, seguindo a sistematização do próprio diploma orgânico, as alterações agora aprovadas. - Definição O CCP mantém-se como órgão consultivo para as políticas relativas às comunidades portuguesas, sendo eliminada do artigo 1.º a referência à emigração. O artigo 34.º sobre as comissões temátivas prevê todavia uma comissão orientada para tratar das questões sociais e económicas e dos fluxos migratórios; - Competências O novo n.º 2 do artigo 2.º acrescenta às competências já reconhecidas que “O Conselho pode ainda apreciar questões relativas às comunidades portuguesas que lhe sejam colocadas pelo Governo da República”; - Composição A nova redação do artigo 3.º configura uma das mais importantes alterações da nova revisão ao estabelecer que: a. O Conselho passa a ser composto por um máximo de 80 membros, em vez dos 73 anteriormente previstos; b. Todos esses membros passam a ser eleitos, enquanto antes havia 10 que eram designados; c. Os membros passam a ser eleitos pelos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que sejam eleitores para a Assembleia da República e não, como antes estava previsto, os portugueses residentes no estrangeiro inscritos no posto consular da respetiva área consular; - Eleições Neste âmbito, há a salientar o seguinte: a) A marcação das eleições e a coordenação do respetivo processo eleitoral passam a ser competência do membro do Governo responsável pelas áreas da emigração; b) As eleições deverão ser marcadas com o mínimo de 60 dias de antecedência, em vez de 70, como anteriormente; c) Os cadernos eleitorais são organizados pelos postos consulares, em articulação com os serviços competentes da administração eleitoral, que para efeitos de divulgação deverão ser publicitados nos postos consulares entre o 55.º e o 45.º dia que antecedem cada eleição; d) Gozam de capacidade eleitoral ativa os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que tenham completado 18 anos até 60 dias de cada eleição, inscritos no recenseamento para a Assembleia da República, enquanto antes o prazo era de 50 dias; e) Gozam de capacidade eleitoral passiva os eleitores, recenseados no respetivo círculo de candidatura, que sejam propostos em lista completa por um mínimo de 2% dos eleitores inscritos no respetivo círculo eleitoral até ao limite máximo de 75 cidadãos eleitores, sendo antes esse máximo de 250 eleitores; f) A apresentação das listas de candidatura cabe ao primeiro subscritor de cada lista, perante o representante diplomático e consular de portugal no respetivo círculo eleitoral, entre os 30 e os 20 dias que antecedem a data prevista para as eleições, prazo inferior em 10 dias ao anteriormente previsto; g) Os candidatos consideram-se ordenados segundo a sua sequência de candidatura, devendo as listas conterem a indicação dos candidatos efetivos em número igual ao de mandatos atribuídos ao círculo eleitoral a que se refiram e de candidatos suplentes em número igual ao de efetivos; h) Salvo nos casos em que o número de elegíveis seja inferior a três, as listas propostas devem garantir que, pelo menos, um terço dos eleitos seja de sexo diferente; i) Os membros são eleitos por círculos eleitorais (correspondentes a áreas de jurisdição dos postos consulares e, quando isso não fôr possível, por grupos de áreas consulares, países ou grupos de países). O anexo I da Lei, parte integrante da mesma, contém o mapa dos círculos eleitorais, sendo o seu total de 50, distribuídos por 28 países ; j) Mantém-se a disposição de que na ausência de apresentação de listas de candidatura em qualquer círculo eleitoral, o respetivo cargo será exercido por um cidadão com capacidade eleitoral ativa, nomeado pelo membro do Governo competente em matéria de emigração e comunidades portuguesas, ouvidas as estruturas associativas locais; k) Cada eleitor dispõe de um voto singular de lista, sendo o sufrágio universal, direto e secreto; l) O apuramento dos eleitos faz-se segundo o método da média mais alta de Hondt; m) Os resultados gerais da eleição são publicitados no portal do Governo e no sítio na Internet do Ministério dos Negócios Estrangeiros; - Mandatos Os membros são eleitos para mandatos de quatro anos, cessando com a publicação dos resultados oficiais após as eleições subsequentes, sem prejuízo do disposto em matéria de substituição temporária, suspensão, renúncia e perda do mandato, assim como da vacatura de cargo; - Direitos, deveres e incompatibilidades a.No âmbito dos deveres foram acrescentados o de cooperar com as comunidades portuguesas e o de cooperar com instituições ou entidades do países de acolhimento em matérias de interesse das comunidades portuguesas; b.No tocante às incompatibilidades, passou a ser causa de incompatibilidade o exercício de atividade profissional em qualquer pessoa coletiva pública, inclusive do setor empresarial do Estado; - Organização e funcionamento As alterações introduzidas são várias e relevantes, em especial: a. O Conselho passar a funcionar não só em Plenário, Comissões e Conselho Permanente, como até aqui, mas também em Conselhos Regionais, Seções e Subseções, recuperando a organização anterior à Lei n.º 66-A/2007, de 11 de dezembro; b. No que respeita ao Plenário: • O Plenário passa a reunir ordinariamente uma vez por mandato, em vez de duas como era antes, e extraordinariamente quando motivos especialmente relevantes o justificarem, convocado com a antecedência mínima de 60 dias pelo membro do Governo responsável pelas áreas da emigração e das comunidades portuguesas; • Poderá reunir em Portugal ou fora de Portugal, quando o membro do Governo responsável pelas áreas da emigração e das comunidades portuguesas o determinar; • Nas reuniões do Plenário, além dos deputados à Assembleia da República eleitos pelos círculos eleitorais da emigração, poderá também participar um deputado representante de cada grupo parlamentar, tendo sido incluído no grupo dos possíveis convidados os representantes do Conselho Permanente das Comunidades Madeirenses e do Congresso das Comunidades Açorianas; • O membro do Governo responsável pelas áreas da emigração e das comunidades portuguesas passará a exercer a presidência do Plenário, sendo secretariado por dois conselheiros por si escolhidos, bem como a formular os convites às diversas categorias de convidados previstas na lei orgânica. Antes da revisão, o Plenário era presidido por uma Mesa composta por um presidente, dois vice-presidentes e dois secretários, escrutinados entre os 63 membros eleitos. c. No que respeita às Comissões: • O número de Comissões foi reduzido de seis para três: - Uma dedicada ao tratamento das questões sociais e económicas e dos fluxos migratórios, resultando da fusão entre as Comissões Permanentes dos Assuntos Económicos e dos Assuntos Sociais e Fluxos Migratórios; - Uma outra vocacionada para a abordagem do ensino do português no estrangeiro, da cultura, do associativismo e da comunicação social, agregando as anteriores Comissões da Língua, Educação e Cultura e do Associativismo e Comunicação Social; - A terceira e última orientada para as questões consulares e da participação cívica, reunindo as competências das anteriores Comissões Permanentes dos Assuntos Consulares e Apoio ao Cidadão e da Participação Cívica e Política; • Cada Comissão é composta por sete conselheiros, eleitos pelas seções regionais, segundo a seguinte fórmula: dois conselheiros regionais da Europa, dois conselheiros regionais da América do Sul, um conselheiro regional da América do Norte, um conselheiro regional de África e um conselheiro regional da Ásia. Antes, a composição poderia variar entre 10 a 12 membros, sem limites por regiões e países; • As comissões reúnem uma vez por ano, antes até duas vezes, por convocatória do presidente em exercício do Conselho Permanente, que presidirá. Antes, cada uma das seis comissões elegia entre os seus membros um presidente, um vice-presidente e um secretário. d. No que respeita ao Conselho Permanente: • É constituído por 12 membros, eleitos pelos conselhos regionais, com a seguinte representatividade: - CRCP em África – dois membros - CRCP na Ásia e Oceânia – um membro - CRCP na América do Norte – dois membros - CRCP na América Central e na América do Sul – três membros - CRCP na Europa – quatro membros Antes, O Conselho Permanente era composto por 5 membros eleitos pelo plenário, um terço devendo ser de sexo diferente, e pelos seis presidentes das comissões permanentes – 11 membros no total. • Na eleição, cada conselho regional deve promover, na eleição dos respetivos membros para o Conselho Permanente, a paridade na representação de homens e mulheres nos termos previstos no artigo 2.º da Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto. Nos conselhos regionais que elegem apenas um membro, deve ser assegurada, sempre que possível, a alternância de género na eleição; • Os 12 membros são eleitos para a totalidade do mandato do Conselho; • Anualmente, o Conselho Permanente deverá eleger de entre os seus membros o presidente, o vice-presidente e um secretário. A eleição da direção estava limitada aos 5 membros eleitos pelo Plenário, coincidindo o seu mandato com o de conselheiro; • O Conselho Permanente reúne em Portugal, ordinariamente uma vez por ano e, extraordinariamente, quando por motivos especialmente relevantes, tal se justifique, e nas suas reuniões podem participar outros membros do Conselho e personalidades convidadas para o efeito através do seu presidente; • No âmbito das respetivas competências, cabe-lhe nomeadamente coordenar a execução do programa de ação aprovado pelo Plenário, homologar e registar as seções e subseções locais e asegurar as ligações entre os conselhos regionais e as seções e subseções; • As deliberações são tomadas por maioria dos votos dos membros presentes. e. No que respeita às Seções Regionais: • O Conselho passa a reunir sob a forma das seções regionais, num total de cinco, com as seguintes designações: - Conselho Regional das Comunidades Portuguesas em África; - Conselho Regional das Comunidades Portuguesas na Ásia e Oceânia; - Conselho Regional das Comunidades Portuguesas na América do Norte; - Conselho Regional das Comunidades Portuguesas na América Central e na América do Sul; - Conselho Regional das Comunidades Portuguesas na Europa. • Cada uma das seções regionais agrupa os membros oriundos dos continentes, partes de continentes ou grupos de continentes; • Cada Conselho Regional terá a sua própria mesa, constituída por um presidente e um secretário, sendo da sua competência eleger os seus membros no Conselho Permanente e nas comissões temáticas. f. No que respeita às Seções e Subseções locais: • Podem ser criadas seções locais, constituídas pelos representantes eleitos em cada país, designadas “Conselho das Comunidades Portuguesas em…”; • As seções podem reunir ordinariamente com periodicidade não superior a um ano; • Se a seção local corresponder a país de grande dimensão geográfica ou onde a cobertura da rede consular e o número de eleitores por consulados ou agrupamentos destes o justifique por razões de ordem funcional podem ser criadas subseções, a depender da seção local de que se trate. Em síntese e como já anteriormente o disse, a revisão agora levada a cabo traduz com suficiente clareza o esforço feito no quadro parlamentar para se alcançar um alargado consenso, pese embora a oposição do PCP. O texto aprovado acabou afinal por admitir e ajustar entre elas as propostas quer do Governo, quer dos sectores de opinião que se oponham ao projeto inicialmente por ele apresentado, incluindo as do próprio Conselho das Comunidades Portuguesas, que de forma categórica defendeu, em termos de organização e funcionamento, a manutenção das comissões temáticas que o Governo se propunha extingir, substituindo-as pelas seções regionais e locais, um modelo que tinha já vigorado alguns anos antes, com resultados consensualmente avaliados como positivos. Os dois modelos, se bem que diferentes, não eram contudo antagónicos e incompatíveis como se veio a verificar, embora o assunto tivesse sido objeto de acesa polémica, a que o debate levado a efeito no Parlamento e fora dele veio a pôr termo, com o feliz desfecho conseguido. A polémica estendeu-se ainda à acusação feita ao projeto do Governo de este querer instrumentalizar o Conselho e deixá-lo na sua dependência, não só por se atribuir a si próprio a presidência do mesmo, mas também por não lhe atribuir os meios financeiros ajustados ao adequado desenvolvimento das suas atividades. Estas são questões pertinentes e da maior importância que penso não foram ainda objeto do necessário e adequado aprofundamento, sendo notória a ausência até hoje de propostas de modelos de organização do Conselho que promovam a sua autonomia e independência tanto do Governo, como dos aparelhos partidários, e favoreçam a participação acrescida de representantes da sociedade civil e das respetivas organizações. Sobre o financiamento, a lei prevê que os custos de funcionamento e as atividades do Conselho são financiados através de verba inscrita anualmente como dotação própria no orçamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sem precisar todavia o respetivo montante, como há muito os conselheiros vêm reivindicando. Sobre a participação das mulheres no CCP e a sua promoção, de modo a que a sua representação seja superior à que atualmente existe, a revisão regista um importante avanço ao consagrar no n.º 3 do artigo 37º a paridade na representação de homens e mulheres nas eleições em cada conselho regional para o conselho permanente, nos termos previstos no artigo 2.º da Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto, “devendo, quanto aos conselhos regionais que elegem apenas um membro, ser assegurada, sempre que possível, a alternância de género na eleição”. A inclusão dessa disposição não suscitou porém reações, nem comentários, com algum eco público, que pudessem constituir um ponto de partida para análise da situação da atual representação das mulheres nos CCP e nos seus vários órgãos. A composição do atual CCP entre homens e mulheres Como ficou já dito, a Lei n.º 66-A/2007, de 11 de dezembro, estabeleceu no artigo 3º que o Conselho é composto por 73 membros, entre os quais: a. 63 membros eleitos; b. Um membro designado pelo Conselho Permanente das Comunidades Madeirenses; c. Um membro designado pelo Congresso das Comunidades Açorianas; d. Dois membros a designar por e de entre os luso-eleitos nos países de acolhimento na região da Europa; e. Dois membros a designar por e de entre os luso-eleitos nos países de acolhimento nas regiões fora da Europa; f. Dois membros a designar por e de entre as associações de portugueses nos estrangeiro, nos países da Europa; g. Dois membros a designar por e de entre as associações de portugueses no estrangeiro, nos países fora da Europa. Nas eleições que se seguiram, em abril de 2008, foram obtidos os seguintes resultados: - Na África: eleitos 7 conselheiros, dos quais 5 homens e 2 mulheres; - Na América do Norte: eleitos 9 conselheiros, dos quais 7 homens e 2 mulheres; - Na América do Sul – eleitos 15 conselheiros, dos quais 12 homens e 3 mulheres; - Na Ásia e Oceânia: eleitos 6 conselheiros, dos quais 4 homens e 2 mulheres; - Na Europa: eleitos 26 conselheiros, dos quais 21 homens e 5 mulheres. No total, os 63 lugares de conselheiros ficaram repartidos entre 49 homens e 14 mulheres, uma das quais acabou por não ter tomado posse, ficando por conseguinte o seu número reduzido a 13. A esses resultados, vieram a adicionar-se os dez membros designados, nove, na verdade, em virtude do representante do Conselho das Comunidades Açorianas nunca ter sido indicado, dos quais 7 homens e duas mulheres, decisão que voluntariamente ou não contribuiu para reforçar ainda mais o contingente masculino, com o respetivo aumento para 56 membros, quedando-se em 15 membros o contingente das mulheres, isto é, 26,7% do total dos membros. Uma percentagem ainda distante dos 33,3% que a designada lei da paridade estabelece na elaboração das listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais, que, de acordo com o artigo 44.º da Lei .º29/2015, de 16 de abril, é igualmente aplicável ao processo eleitoral para o Conselho. Por países, os resultados foram os seguintes: Na África: África do Sul/Namíbia – 4 membros: 3 homens e 1 mulher; Angola – 1 membro: 1 homem; Cabo Verde/Guiné Bissau/S.Tomé Príncipe/Senegal – 1 membro: 1 mulher; Moçambique/Quénia/Zimbabué – 1 membro: 1 homem. Na América do Norte: Canadá – 4 membros : 2 homens e 2 mulheres ; Estados Unidos da América : 5 membros : 5 homens. Na América do Sul: Argentina – 1 membro : 1 homem ; Brasil – 8 membros : 7 homens e 1 mulher; Uruguai – 1 membro : 1 mulher ; Venezuela – 5 membros : 3 homens e 2 mulheres. Na Ásia e Oceânia: Austrália/Timor/Filipinas – 1 membro : 1 mulher ; China/Japão/Tailândia – 4 membros : 3 homens e 1 mulher ; Índia – 1 membro : 1 homem. Na Europa: Alemanha – 4 membros : 3 homens e 1 mulher ; Andorra – 1 membro : 1 homem ; Bélgica – 1 membro : 1 homem; Espanha – 1 membro : 1 homem ; França – 8 membros : 7 homens e 1 mulher; Holanda – 1 membro : 1 mulher ; Luxemburgo – 1 membro : 1 homem ; Reino Unido/Irlanda – 4 membros : 3 homens e 1 mulher ; Suécia (Dinamarca/Finlândia/Noruega/Países Báltico/Polónia) – 1 membro : 1 homem ; Suíça (Itália/Grécia/Áustria) – 4 membros : 3 homens e 1 mulher. Desses resultados, ressalta, numa perspetiva de equilíbrio da representação entre homens e mulheres, a paridade entre os dois sexos registada no Canadá e, no sentido oposto, a inexistência de qualquer representante do sexo feminino no contingente dos EUA e de em relação ao Brasil e a França, cada um deles com oito membros, a representação feminina limitar-se a um só membro. A análise dos resultados por círculos eleitorais poderá lançar alguma luz com vista a explicar a disparidade registada a nível do género. Com efeito, constata-se que em 23 dos 35 círculos eleitorais existentes em 2008 só havia um membro a eleger. Este constituirá por certo um factor que poderá beneficiar os candidatos do sexo masculino, em virtude da sua proporção ser superior nos vários tipos de organizações da comunidade, ou de nelas ocuparem postos ou exercerem funções de nível hierárquico superior. Uma última observação para acrescentar que a diferença numérica constatada teve consequentemente incidências na organização e funcionamento do Conselho, de que destaco alguns aspectos mais salientes : • O reduzido número de mulheres no Conselho Permanente – 2 entre os 11 membros que o compunham ; • O reduzido número de mulheres nas comissões temáticas ; • A inexistência de presidências exercidas por mulheres, a nível quer do Plenário e do Conselho Permanente, quer das seis comissões temáticas ; • A inexistência igualmente de mulheres nas mesas do Plenário, Conselho Permanente e comissões permanentes, à exeção da secretária da Comissão Permanente dos Assuntos Consulares e Apoio ao Cidadão, a cargo de uma conselheira do Brasil. Que perspetivas abrem a revisão da Lei n.º 66-A/2007, de 11 dezembro, pela Lei n.29/2015, de 16 de abril, e as eleições para o Conselho anunciadas para setembro próximo ? Perspetivas de participação das mulheres no próximo CCP No tocante à lei, com base nos comentários atrás expostos, o quadro resultante da nova revisão parece não configurar alterações significativas, salvo no que respeita à composição do Conselho Permanente, que, em consequência da aplicação da lei da paridade, deixa perspetivar um aumento do número de mulheres. Os círculos com 3 e mais membros não vão além de sete no total de 50, somando 8 os de dois membros e 33 os de um só membro. Nestas condições, será muito difícil a participação das mulheres atingir mesmo a percentagem de 33,3% consignada na chamada lei da paridade. No quadro da dinâmica eleitoral, que atitude vão assumir as mulheres nas várias comunidades? A sua participação e mobilização são indispensáveis se quiserem ter uma representação condigna com o seu número e com o papel e as responsabilidades que lhes cabem no âmbito das políticas para a emigração e as comunidades portuguesas. É indispensável que as mulheres participem em listas ou, por sua iniciativa, promovam a apresentação de listas em que sejam cabeças de lista, nomeadamente nos círculos eleitorais que elegem um só membro. Li há dias na revista Paris Match, correspondente ao número da última semana do mês de abril findo, que uma caravela, a “L’Hermione”, réplica da “La Fayette”, partiu, como esta última, de Rochefort, estando previsto que chegue, no próximo dia 5 de junho, a Yorktown, na Virgínia, onde as tropas americanas e francesas venceram, no dia 19 de outubro de 1781, uma batalha decisiva contra os ingleses. Porém, ao contrário da “La Fayette”, que tinha partido sem mulheres, pois para os marinheiros dessa época a presença da mulher a bordo dava azar, a tripulação da “L’Hermione”, no total de 180 pessoas, conta com 1/3 de mulheres. Inspirado por este exemplo, termino fazendo votos de que a presença das mulheres no novo Conselho corresponda pelo menos a 1/3 dos 80 membros que serão proximamente eleitos. Que o próximo Conselho tenha essa sorte! DESENVOLVIMENTO E GÉNERO Joana Miranda Universidade Aberta, Investigadora Responsável pelo Grupo de Investigação – Estudos sobre as Mulheres, CEMRI, Universidade Aberta No mundo actual as migrações, o desenvolvimento e o género constituem elementos profundamente interrelacionados que se influenciam reciprocamente e cuja dinâmica é constante e se encontra em permanente transformação, revelando a cada momento novos dados e sugerindo novas leituras. Estes três elementos configuram poderosos eixos de interpretação de um mundo marcado pela mudança acelerada a todos os níveis e pela coexistência da globalização e da homogeneização com a fragmentação, permitindo-nos aproximações deste período que Balandier (1997) designa de "sobremodernidade", período de mudança e ambivalência, de "mudança mais incerteza". Na mesma linha o sociólogo Zygmunt Bauman (2007) caracteriza a época em que vivemos como "modernidade líquida"- leve, fluida, dinâmica mas incerta. Para Bauman (2007:11) o que torna a modernidade líquida é a modernização compulsiva e obsessiva, permanentemente em aceleração, através da qual nenhuma forma de vida social, à semelhança dos líquidos, é capaz de reter os seus contornos durante muito tempo. Para o autor, a terceira vaga de migração moderna (Bauman, 2007:18) que no momento actual assume plena força e se encontra em crescendo conduz à “idade das diásporas”: um “arquipélago mundial de povoamentos étnicos/religiosos/linguísticos esquecidos dos caminhos queimados e trilhados pelo episódio imperialista colonial”. Ao mesmo tempo que a globalização representa uma certa forma de interconexão e interpenetração entre regiões e comunidades locais, marcada pela hegemonia do capital e do mercado, ela faz-se acompanhar por uma procura de singularidade e de espaço para a diferença e para o localismo (localização da cultura, Bhabha, 1994). Neste contexto são diversos os discursos em torno do desenvolvimento. O que é, afinal, o desenvolvimento? O discurso dominante é o discurso economicista focalizado na ideia de que o desenvolvimento económico e o crescimento do mercado são as formas de iniciar um processo de desenvolvimento (em sentido mais amplo) e de que, por seu turno, esse mesmo desenvolvimento estimularia o desenvolvimento económico e o crescimento do mercado. Vejamos o Human Development Report da ONU de 2014 com o título Sustaining Human Progress: Reducing Vulnerabilities and Building Resilience. O índice de desenvolvimento humano foi criado em 1990 para enfatizar que as pessoas e as suas capacidades devem ser o critério principal de avaliação do desenvolvimento de um país (por contraponto com o PIB per capita). É um indicador social estatístico composto por três parâmetros: Vida longa e saudável (medida pela esperança de vida ao nascer), educação (medida através da taxa de alfabetização de adultos, da taxa de escolarização e do número de anos de escolaridade obrigatória) e nível de vida (medido pelo PIB per capita em dólares). No relatório de 2014, Portugal ocupa o 41º lugar no ranking de desenvolvimento (o relatório de 2014 refere-se ao ano 2013). Em 2010 foram introduzidos índices complementares ao IDH, nomeadamente o Índice de Desigualdade de Género (IDG). O Índice de Desigualdade de Género (IDG) reflete desigualdades com base no género em três dimensões - saúde reprodutiva, autonomia e atividade econômica. A saúde reprodutiva é medida pelas taxas de mortalidade materna e de fertilidade entre as adolescentes; a autonomia é medida pela proporção de assentos parlamentares ocupados por cada género e a obtenção de educação secundária ou superior por cada género e a atividade económica é medida pela taxa de participação no mercado de trabalho para cada género. O IDG substitui os anteriores Índice de Desenvolvimento relacionado com o Género e Índice de Autonomia de Género. Ele mostra a perda no desenvolvimento humano que decorre da desigualdade entre as conquistas femininas e masculinas nas três dimensões do IDG. O conceito de vulnerabilidade é central no relatório. A vulnerabilidade varia ao longo do ciclo de vida, sendo maior nas crianças, nos adolescentes e nos velhos. Varia, ainda, consoante a zona geográfica, o género e a etnicidade, sendo grande nos povos indígenas e nos que vivem na pobreza extrema. Mais de 2.2 billiões de pessoas vivem ou estão perto de viver uma pobreza multidimensional, mais de 15% da população mundial está vulnerável à pobreza multidimensional, 80 % não tem proteção social, 5 a 12% (842 milhões) sofrem de fome crónica. Mais de 1.5 billiões de pessoas desenvolvem trabalho informal ou precário. Vulneráveis são também os deficientes e as pessoas que habitam zonas geográficas que sofreram alterações do clima. Entre 2000 e 2012 mais de 200 milhões de pessoas, a maioria de países em desenvolvimento, foram atingidas por desastres naturais, especialmente por cheias e por secas. Crises económicas, doenças, guerras, desastres naturais são factores que criam vulnerabilidade. Mas o desenvolvimento humano engloba mais dimensões para além das avaliadas pelo IDH como, aliás, a ONU reconhece e como explicitado na figura infra. O relatório apenas avalia a dimensão assinalada na parte superior do esquema, não avaliando a dimensão apresentada na parte inferior. Fonte: ONU, Relatório do Desenvolvimento Humano, 2014 Assim, o desenvolvimento é um processo holístico, que deve visar a melhoria das condições de vida da população, a expansão das oportunidades de educação, de saúde e o acesso aos recursos, o desenvolvimento humano de pessoas, para as pessoas e com as pessoas, melhorar o social nas suas diversas dimensões, atender ao respeito pelos direitos humanos, criar sustentabilidade, possibilitar a expansão das capacidades e das liberdades, a inclusão e o empoderamento dos mais pobres. O género revela-se uma dimensão fundamental de análise. A feminização das migrações é uma das cinco características que definiriam a actual era das migrações (Castles e Miller, 1998). A feminização das migrações refere-se quer ao aumento do número de mulheres migrantes quer ao empoderamento. De acordo com dados da ONU, aproximadamente 50% dos migrantes da actualidade são mulheres, sendo o número de mulheres superior ao dos homens nos países desenvolvidos. A migração das mulheres sofreu grandes alterações nas últimas décadas. No cenário anterior jovens imigrantes masculinos atravessavam as fronteiras, ocupando as mulheres uma posição passiva nos processos migratórios, acompanhando os pais/maridos/companheiros em resultado das decisões migratórias daqueles. As mulheres permaneciam na esfera doméstica, sem acesso ao domínio público. Esta situação passiva das mulheres foi substituída por um maior empoderamento, por uma maior participação pública das mulheres e por maior poder de decisão política nos vários níveis, participação ou liderança das associações de migrantes, papel no seio da família e no envio de remessas para os países de origem, maior divisão das tarefas domésticas, papel mais dinâmico nas redes sociais. Visões mais otimistas perspetivam as mulheres como os “novos agentes do desenvolvimento”. Quando se coloca o empoderamento na balança e se procura avaliar o impacto das mulheres na igualdade de género considera-se que existe empoderamento se existe poder de tomada de decisão no seio da família, melhoria de qualidade de vida no país de origem, acesso das crianças à educação, aumento de auto-estima, maior autonomia, renegociação dos papéis familiares, aumento de estatuto na comunidade, compra de casa ou de negócio e aumento do poder de compra. Pelo contrário, existe desempoderamento se existe trabalho mal pago, abuso e exploração, frustração, dificuldade em poupar dinheiro (auto-sacrifício), duplo vínculo (trabalho produtivo e reprodutivo), isolamento, estigma da má mãe (abandonando crianças no país de origem), invisibilidade (vozes não ouvidas), capacidades não aproveitadas e dupla discriminação mulher/imigrante. As representções das mulheres migrantes são muito extremadas variando entre, por um lado, representações muito pejorativas e miserabilistas e, por outro lado, representações idealizadas. De acordo com estas últimas representações as mulheres migrantes seriam coordenadoras das vidas familiares transnacionais, emissoras de remessas, detentoras de espíritos sacrificiais e de grande altruísmo, protectoras e nutridoras e trabalhadoras empenhadas. Uma perspectiva de género do desenvolvimento não se limita a desagregar os dados por sexo ou apenas considerar o género uma variável da equação, tal como a idade ou o nível educacional. Há que entender que as relações de género afectam e são afectadas por cada passo do ciclo migratório. A análise deve ter em conta o nível das famílias, mas também o nível das comunidades, das instituições, nacional e transnacional, tendo em conta a diversidade de homens e de mulheres e as formas como os géneros são construídos e reconstruídos ao longo dos processos migratórios. É também importante considerar os comportamentos e as identidades dos homens - ou o que é colectivamente designado por “masculinidades”- uma vez que também eles se relacionam com o processo migratório. Numa perspectiva de género, de forma a compreender a complexidade do processo migratório e do seu impacto no desenvolvimento há que ter em conta 4 eixos de análise (Petrozziello, UN Union, 2013): I. Género como categoria central de análise (que não se focaliza apenas nas mulheres mas nas relações de poder entre homens e mulheres, modificando e produzindo novas identidades através dos processos migratórios) II. Direito ao desenvolvimento humano - visão holística das capacidades e da liberdade dos indivíduos (diferente de desenvolvimento económico). III. Dimensão espacial do desenvolvimento – do transnacional ao local – Analisar “what is happening there and what is happening here” de forma a identificar pontos chave de intervenção. IV. Migrantes como protagonistas do desenvolvimento (lucrando com o desenvolvimento e com a melhoria das condições de vida, intervindo activamente no processo de desenvolvimento e decidindo sobre o processo de desenvolvimento). Convém ter uma perspectiva mais realista da mulher migrante, perspetivando-a como alguém que lucra com o processo de desenvolvimento, que intervem no processo de desenvolvimento e que decide sobre o processo de desenvolvimento. Enquanto investigadores/investigadoras deveremos dar voz às mulheres. Dar voz é dar poder. Dar oportunidades de romper o silenciamento, recorrendo a metodologias participativas, recolha de histórias de vida, recolha fílmica em que a mulher seja o centro da análise. Referências bibliográficas Balandier, Georges. (1997). A desordem: elogio ao movimento. Rio de Janeiro: Bertrand. Bauman, Zygmunt (2007). Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. Bhabha, H. K. (1994). The Location of Culture. Londres e Nova Iorque: Routledge. Castles, S. & Miller, M.J. (1998). The Age of Migration: International Population Movements in the Modern World. Londres: Macmillan. ONU (2014). Human Development Report 2014. Sustaining Human Progress: Reducing Vulnerabilities and Building Resilience. Nova Iorque: UNDP. Petrozziello. A. (2013). Gender on the moove. Working on a Migration Developement nexus from a Gender Perspective. UN Women. - COLÓQUIO / EXPOSIÇÃO EXPRESSÕES DE CIDADANIA NO FEMININO Casa Museu da Universidade do Minho, Monção MONÇÃO E OS PROJECTOS DA IGUALDADE E DA EUROCIDADE Paulo Esteves Vereador da Cultura do Município de Monção Começo por saudar os distintos membros da Mesa e os convidados presentes e apresentar , em nome da Câmara Municipal, sinceros agradecimentos à Organização deste evento. Sentimo-nos honrados pelo convite feito pela Dra Arcelina Santiago, membro da direção da Associação Mulher Migrante e pelo facto de terem escolhido Moncão, terra cheia de potencialidades em termos culturais e sempre aberta a novos desafios. A temática em torno da diáspora, cultura, e igualdade do género combina com esta terra com longo historial de emigração e integrada no projetos de igualdade de género. Por isso, foi com muito prazer que aderimos de imediato, como parceiros desta iniciativa que trará visibilidade a Monção e a desafiará para outros projetos. O município tem vindo a tomar um conjunto de iniciativas, a saber: assinou protocolo de cooperação com a CIG em Julho de 2014 e, na mesma data, foram nomeados conselheiro e conselheira municipal para a igualdade - Paulo Esteves e Cristina Dias respectivamente. Com a assinatura do protocolo, o município comprometeu-se a criar um plano municipal para a igualdade, encontrando-se neste momento numa fase de diagnóstico junto dos/ das colaboradores/as acerca da sua percepção face à igualdade de género, permitindo, numa segunda fase, adaptar um plano face às necessidades identificadas. Paralelamente, tem realizado actividades promotoras de igualdade a nível interno, nomeadamente, sinalização do dia internacional do homem (19 de Outubro ) e dia da mulher (8 de Março) com sessões sobre saúde. No âmbito do protocolo alguns colaboradores e o conselheiro e a conselheira tiveram formação sobre igualdade de género, violência doméstica e tráfico de seres humanos. A nível externo foram realizadas várias ações de informação para jovens sobre violência no namoro, ações de informação sobre violência doméstica dirigida a diferentes públicos: forças de segurança, bombeiros, técnicos de saúde e profissionais da área da educação. Também foi comemorado o o dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres. Está a ser criado um guia para uma linguagem não discriminatória a ser divulgado junto dos funcionários da autarquia para que seja usada nos documentos da autarquia. O município estabeleceu também parceria com o GAF e o centro de atendimento a vítimas de violência doméstica de Vila Praia de Âncora, para onde são encaminhadas as vítimas e agressores. O Município sabe que estes são pequenos passos, mas que farão a diferença e continuará a trabalhar porque tem consciência de que há ainda muito a fazer. Estou também em representação do D. Arturo , Alcalde de Salvaterra do Mino que não podendo estar presente louva está iniciativa. Sobre Salvaterra a informação a que tive acesso é que em termos de género , no município, 80% das pessoas que trabalham no serviço externo são homens e 20% do serviço interno é assegurado por mulheres. Trata-se de um quadro muito semelhante ao que acontece no nosso município. Daí concluirmos que há ainda um grande trabalho a desenvolver nesta área. Sobre o desafio que foi aqui proposto e já ventilado pela Dra Arcelina Santiago em reuniões preparatórias , gostaria de declarar que a Câmara Municipal está inteiramente de acordo e aceita o desafio proposto - realizar uma Cimeira em 2016 sobre o tema " Expressões de cidadania no feminino" de âmbito Luso Galaico, por isso, convidamos desde já, todos os elementos envolvidos nesta iniciativa. LETRAS, FEMINISMO E VIRILIDADE Maria Luísa Malato Professora Catedrática da Universidade do Porto Em geral, na história do feminismo europeu, consideram-se três vagas de movimentos de autonomia. A primeira, nos finais do século XIX e início do século XX, seria a dos movimentos sufragistas a favor do alargamento dos direitos das mulheres: direitos de propriedade e de voto, em grande parte. A segunda, nas décadas de 1960-1970, e decorrente do avanço científico dos métodos contracecionais, estaria centrada na reivindicação do direito ao próprio corpo (direito ao aborto nos casos de gravidez involuntária, licenças de maternidade e dissociação cultural entre o género feminino e a função da maternidade). A terceira, datada dos anos noventa do século XX até à atualidade e manifestada em parte pela democraticidade da internet, seria movida sobretudo pela denúncia mais sistemática de abusos de poder: violência doméstica, assédio sexual, assédio profissional, desigualdade de salários, repartição das funções de maternidade/ paternidade, etc. Esta organização cronológica das ondas históricas (“waves”) do feminismo, reproduzida, por exemplo, nas obras de Rebeca Walter (1992) ou de Maggie Humm (1992), é muitas vezes simplificada e imitada pela atual historiografia, claramente visível na estrutura faseada dos que vão construindo os estudos sobre o assunto. Também a história do feminismo português começaria pela criação de associações políticas republicanas nos finais do século XIX: enumera-se a inauguração em 1897 da Federação Socialista do Sexo Feminino, a fundação em 1907 do Grupo Português de Estudos Feministas, dirigido por Ana de Castro Osório, que levaria à formação, em 1908, da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1908-1919); e, em 1910, da Associação de Propaganda Feminista, a do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, por iniciativa de Adelaide Cabete, nas vésperas da mobilização militar da Grande Guerra, em 1914; e ainda o processo de contestação da médica Carolina Beatriz Ângelo, processo tumultuoso que começou com a sua inscrição nos cadernos eleitorais em 1911 e posterior recusa da inscrição, recurso para tribunal, sentença favorável, e reescrita da Lei Eleitoral, em 1913 e 1915, especificando-se desta vez a não aplicação da lei geral às mulheres portuguesas… O processo das Três Marias, contra as autoras das Novas Cartas Portuguesas (Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Isabel Barreno) marcaria a segunda fase do feminismo português. As Novas Cartas não são um manifesto feminista, mas como tal passariam a ser lidas. De género fragmentário, entre o literário e o não literário, pelo menos nos seus géneros canónicos, compostas por cartas, mas também por ensaios, poemas, fragmentos, pensamentos soltos, alusões a máximas de vária ordem, delas resulta uma revolta legível que inspiraria gerações. Num terceiro momento, o feminismo português parece ter-se consubstanciado numa reivindicação da sua complexidade política, social, económica, pedagógica. Os novos suportes da comunicação tornam o movimento transnacional, de agendas articuladas, refletindo a pluralidade dos modelos de família: “Ao nível global não se pode falar de uma única agenda feminista, mas de várias. Em Portugal, há uma agenda feminista pouco clara, ainda. (...) Tendo terminado a reivindicação da despenalização do aborto começam a surgir um conjunto de questões que ficaram por tratar. Isso vê-se, pelo interesse que as pessoas passam a ter por outros temas, por exemplo pela saúde, pela política, pelo poder, pelas questões da sexualidade. Diremos que as questões surgem muito mais segmentadas.” (cf. Conceição Nogueira apud Tavares, 2008: 483) Esta narrativa dividida por três períodos tem certamente a grande vantagem de pontuar a História, assinalando nela os momentos fundamentais que, sobretudo pelo seu mediatismo nacional e internacional, funcionaram como catalisadores do movimento feminista. Ainda que por “engano” (uma lacuna do espírito na letra da lei), foi em Portugal que, pela primeira vez na Europa meridional, uma mulher (Carolina Ângelo) exerceu o direito de voto nas eleições para a Assembleia Constituinte, numa Europa em que a mulher (ainda que ocidental, setentrional, branca e de classes economicamente elevadas) se viu impedida de votar até ao segundo quartel do século XX. Também o processo contra a obra das Três Marias (The Three Marias seria, aliás, o título da primeira edição das Novas Cartas Portuguesas em inglês) teve uma repercussão na opinião pública internacional que colocou em julgamento o regime ditatorial do Estado Novo e, em geral, a mentalidade dominante, até na sociedade europeia, que continuava a ver na mulher-nova uma freira Mariana que fugia agora traiçoeiramente do convento. Mas uma onda não é uma fase: a onda pressupõe um movimento contínuo, em que a força de um corpo decorre do ponto remoto em que foi inicialmente aplicada. Parece-nos que essa visão faseada e tripartida, quando exageradamente simplificada, desvaloriza alguns elementos fundamentais para uma boa historiografia: a) a atenção que deve ser dada à simultaneidade dos fatores de transformação dos fluxos ondulatórios (nem sempre “post hoc ergo propter hoc”, mais especificamente, nem sempre o que vem depois é causa do que vem imediatamente antes); b) a invisibilidade de uma história da resistência, de atrito, feita tantas vezes pelos vencidos ou pelos silenciados, muitas vezes documentadas por testemunhos que não saíram nunca do manuscrito, da palavra-dita ou do gesto tácito: só numa visão mitificada a História se faz de “sucessos sucessivos que se sucedem sucessivamente sem cessar”…; c) a indelével necessidade de construirmos a História da atualidade para o passado, “às avessas” como diria o diabólico Gog (Papini, s.d.: 47 ss.). Não apenas essa metodologia (meta-odos-logia) seria mais consentânea com o efetivo caminho que o historiador percorre, a partir do seu presente, como ainda se clarificaria o facto de só darmos importância aos acontecimentos a posteriori, pelas suas consequências e não pelas suas causas, porque passamos depois a ter palavras para as nomear, sendo difícil identificar (e muito menos estudar) um objeto sem nome. Ressalve-se pois, desde logo, a relação complexa que existe entre os vários direitos reivindicáveis. A lei do divórcio, publicada logo no início da Primeira República, compreende-se somente quando integrada na reforma do Direito de Família, considerando-se só então, com alguma sistematicidade, a reformulação dos direitos da criança e a promulgação do ensino primário obrigatório para todos os sexos e classes. São difíceis as leituras ideológicas: não há propriamente os maus da ditadura e os bons da democracia e são misteriosas as veredas dos homens. O direito de voto aberto à mulher acabaria ironicamente por ser proclamado em 1931, pelo Estado Novo, por um regime que ao mesmo tempo se aproveitava da imagem conservadora da “mulher cristã” e reduzia a escolaridade obrigatória para as mulheres (mais ainda do que para os homens). Mas estão em geral ligadas as formas de subjugação social, económica ou intelectual. Não sendo uma característica da legislação portuguesa ou da legislação de timbre ditatorial, era comum e geralmente aceite a inacessibilidade das mulheres ao funcionalismo público considerado masculino – a carreira diplomática, a magistratura, a chefia na administração local, ou os postos no Ministério das Obras Públicas e Comunicações Brasão, 1999: passim) – e a subordinação do poder económico da mulher casada ao poder económico do marido: para certas profissões (v.g. hospedeiras da TAP, enfermeiras dos hospitais civis) era incompatível o trabalho com o casamento, para outras (como o magistério primário) era necessário autorização do Estado. De resto, se considerarmos que só depois do 25 de Abril de 1974, com a lei n.º 621/74 de 15 de Novembro, o direito de voto se tornou universal em Portugal, ao contrário de países que o têm consignado como a Nova Zelândia (1892), Austrália (1902), Finlândia (1906), em grande parte consequência da substituição do trabalho masculino por mão-de-obra feminina depois da Grande Guerra (1918, como a Grã-Bretanha) ou da Segunda Guerra Mundial (1944, França, EUA, muitos estados da América do Sul), devemos também assinalar que, em países ”civilizados” como a Suíça ou o Liechtenstein, as datas são também escandalosamente tardias (1971, 1984). A cronologia destas três fases (ou até ondas) é também extremamente injusta em relação ao período setecentista, sobretudo da segunda metade do século XVIII, quando muitas mulheres (na Europa e, mais especificamente, em Portugal) começaram por criar uma consciência coletiva do género feminino: muito deve o feminismo a algumas escritoras como Poulain de la Barre, Olympe de Gouges, Mary Wollstonecraft ou, em Portugal, a Paula da Graça, Gertrudes Margarida de Jesus ou, ainda que de diferente forma, a Catarina de Lencastre, Leonor Pimentel, Leonor de Almeida ou até a Teresa de Mello Breyner. É também notável a obra de Nísia Floresta, no Brasil, autora de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, ainda que já em 1832. O que poderia significar a consciência coletiva do sexo feminino, quando as mulheres, sem a voz pública do poder político e sem a voz pública do poder literário, se reduzem a uma voz privada, muda (cf. Fentress, 1994), porque incapaz de se tornar documento histórico? No século XVIII, em certos países europeus, nomeadamente nos países protestantes, os níveis de alfabetismo feminino são significativamente elevados. Na cidade de Turim, no ano de 1710, 71% dos homens e 43% das mulheres sabem, pelo menos, assinar os contratos de casamento ; em 1790, o número subirá para 83% dos homens e 63% das mulheres. A subida é ainda mais significativa se considerarmos a região de Turim, comn a inclusão da população rural : se os homens que assinam em 1710 e 1790 passam de 21% para 65%, a taxa da população feminina que assina salta de 6% para 30% (Chartier, 1990: 114-5). Mas em países como Portugal a diferença é grande. Apesar de somente existirem estatísticas sobre educação em Portugal a partir de finais do século XIX (2009: 4), calcula-se que, no século XVIII, Portugal contaria com 90% de analfabetos, sendo a maior parte mulheres de todas as classes. Um estudo sobre a assinatura dos noivos no Porto no início do século XVIII, não podendo ser conclusivo sobre a taxa de analfabetismo no tecido urbano e rural, regista a diferença de 44% entre o alfabetismo dos homens e o alfabetismo entre as mulheres (Silva, 1991: 461). Neste diferente contexto, as mulheres-leitoras-escritoras dificilmente podiam afirmar a sua autonomia, desde logo intelectual: não é raro pedirem desculpa pela imodéstia de editar, outras agradecerem aos maridos a possibilidade de o fazer, outras destruírem a obra manuscrita. Os 14 volumes de manuscritos da fidalga Joanna de Menezes, Condessa de Ericeira, casada com D. Luiz de Menezes e mãe de Francisco Xavier de Menezes, nunca buscaram publicação e o único livro publicado, de cariz espiritual, o Despertador del alma al sueno de la vida, indica o nome de Apolónio de Almada, um criado da casa (Sabugosa, 1918: 314). “Autora” é palavra que, segundo o Vocabulário de Rafael Bluteau, só aparece nos textos de jurisconsultos. São por isso de uma grande coragem os argumentos então assinados por mulheres, sem o escudo do pseudónimo ou do anonimato. Como os que encontramos formulados por Paula da Graça, autora da Bondade das Mulheres Vindicada e Malícia dos Homens Manifesta (1730) com que ela pretende contestar a sátira feita às mulheres pelo conhecido Baltazar Dias, autor da Malícia das Mulheres (1640); ou por Gertrudes Margarida de Jesus que, entre 1761-1762, empreendeu uma curiosa polémica com um Frei Amador do Desengano (pseudónimo), em duas cartas publicadas em folheto de cordel, suporte acessível em que previsivelmente devem ter tido algum impacto: “Os defeitos das mulheres vêm da ignorância em que teimam os homens em mantê-las”, escreveria ousadamente Gertrudes Margarida de Jesus. Este silêncio da historiografia do feminismo em relação ao século XVIII (na Europa e ainda em Portugal) é tanto mais injusta quanto essas mulheres muitas vezes se deram conta da complexa teia que unia aquelas três áreas consignadas pela História: a dos direitos políticos, a dos direitos da maternidade e a dos direitos económicos. Manuela Tavares, na obra Feminismos (2008) demonstrou já o quanto é prejudicial para a própria causa do feminismo identificá-lo somente com situações-limite ou com posições mais radicais que oponham a “causa feminina” à “causa masculina”, como se o caso se limitasse a uma guerra entre amazonas e donjuans. Colocado como antónimo do Machismo, o Feminismo (como “excesso”) encerrar-se-ia numa androfobia que equivaleria à misoginia. É certo que os termos em que se colocam as polémicas setecentistas são extremadas pela anormalidade dos argumentos “feministas”, muitas vezes publicitados por homens que defendem as mulheres, relembrando as virtudes heroicas das mulheres, mulheres-viris, mulheres-soldados, que defenderam a pátria ou incentivaram os homens a servi-la, como a Notícia de muitas heroínas portuguesas, de Diogo Aires de Azevedo (1730?) ou a obra de Louis R. Saint-Jorry, Les Femmes Militaires (1735). Mas a questão dificilmente se circunscreve a um imaginário masculino, se soubermos que, em 1792, Théroigne de Méricourt, que frequentava a Assembleia Nacional Francesa vestida de Amazona, apresenta a essa mesma assembleia o projeto de criação de uma legião de Amazonas, prontas a lutar fisicamente pela Revolução Francesa. Ou que, na moda feminina, no final do século XVIII, começam a aparecer cortes e adereços que as mulheres tomam aos homens: o formato do casaco para andar a cavalo de pernas afastadas, as franjas que cobrem as testas, o cabelo caído “à amazona”. São essas mulheres-heróis que muitas vezes aparecem em romances, de autoria masculina ou feminina. Entre a realidade e a ficção instala-se uma novidade difusa, que não é menos revolucionária por se disfarçar de futilidade. O tema da mulher-soldado, ou da mulher-caçadora, tem muitas variantes na literatura setecentista: as revisitadas Amazonas, a lembrança terrífica das Valquírias, ou de Diana, a deusa da caça, ou Medeia, feiticeira que se vinga de Jasão matando os filhos comuns, manhosas donzelas que agora desobedecem aos pais para casar com quem amam, e desobedecem a quem amam para reivindicar honra, virtude viril (passe aqui o pleonasmo, já que ambas as palavras derivam desse atributo somente masculino que é ser homem). A honra feminina, coisa antes invisível e muda, passa a reivindicar atos públicos e palavras (Farge, 1990: 581). Muitos são os romances e peças de teatro setecentistas feitas de mulheres que escapam aos homens, confundindo-se com eles, lutando como eles : Marthésie, première reine des Amazones, de La Motte (1699), L’Amazone Française, de Marie-Jeanne L’Héritier de Villandon (1718), Le Faux Chevalier de Warwick, de Dupré d’Aulnoy (1736), as Mémoires de Mlle de Mainville ou Le Feint Chevalier, de D’Argens (1736), Les Amazones, de Anne Marie du Bocage (1749), Corinne, de Mme de Staël (1807), com traduções ou adaptações em italiano, alemão, português. Por paradoxal que pareça, essas mulheres-soldado estão próximas das mulheres mais pobres, apresentadas por vezes como mais livres, porque podem ganhar a vida por si: as empregadas domésticas, as aias, essas variantes das Paulinas e Clarisses que são a principal causa de sucesso dos romances de Samuel Richardson (Pamela, or Virtue Rewarded, 1740, Clarissa, or The History of a Young Lady, 1748). As mulheres aristocráticas reveem-se nessas mulheres presas e usadas, que fogem e lutam pela sua autonomia. La religieuse, de Diderot, é um romance sobre uma mulher que passa de exploração em exploração, até acabar “blanchisseuse”, assalariada, mas livre. A Rainha Marie Antoinette, refugiava-se no Petit Trianon, vestida com uns fatos de camponesa e revê-se nas palavras revolucionárias de Beaumarchais, as mesmas que, anos mais tarde, justificarão a sua morte na guilhotina. A Literatura setecentista é, antes de qualquer movimento feminista do século XIX ou XX, a imaginação sistemática da liberdade, igualdade e fraternidade entre os dois sexos. Imaginar-se livre é uma etapa (onda?) fundamental no processo de ser livre. A Mulher que o não parece, de Manuel de Figueiredo, é uma peça de teatro sobre duas mulheres que não aceitam o casamento como infantilização, ou o convento como prisão. As odes de Catarina de Lencastre proclamam aos soldados a vontade de os seguir, lamentando o sexo em que os atos heroicos estão limitados: [Deus] Já que esta alma me deu, melhor fizera Se aos campos, aonde ides colher louros, Eu seguir-vos pudera. Mas nem sempre, na ordem que nos rege, Vem o poder unido com o desejo. (apud Borralho, 2008: 157) Podemos argumentar, retomando até Simone de Beauvoir na época em que escreveu Le Deuxième Sexe, que toda a historiografia masculina do feminismo (nomeadamente, acrescentaríamos, o feminismo setecentista) o torna desinteressante (Beauvoir, 1981: 28 ss.): com efeito, já muito pouco interessante nos parece a polémica que, em 1800, retoma os argumentos satíricos de Baltazar Dias e Paula da Graça, agora entre dois autores anónimos: A Bondade das Mulheres contra a Malícia dos Homens vs. Malícia dos Homens contra Bondade das Mulheres. Mas o pioneirismo que Beauvoir vê na obra jurídica de Léon Richer, no final do século XIX (cf. Id.,1981: 157), bem poderia ser associado (cum grano salis) à reedição em 1785 de uma “esquecida” Lei sobre as prorrogativas das mulheres, publicada por Ruy Gonçalves no século XVI. E há em Luís António Verney uma inovadora defesa da igualdade feminina, ao defender a importância da escolaridade feminina na última carta do Verdadeiro Método de Estudar (1746: Carta XVI), em termos que muito superam a visão mais tradicional do iluminismo, melhor representada pelas Cartas sobre a Educação da Mocidade de Ribeiro Sanches (de 1760), obra que reserva a educação intelectual às senhoras nobres e se preocupa sobretudo com as virtudes da sua vida doméstica (Sanches, s.d.: 191-2). O mesmo conservadorismo de resto marcará o Rapport sur l’instruction publique, redigido em grande parte por Talleyrand, no contexto revolucionário de 1791 (Talleyrand, 1791). Podemos apontar como vanguardistas algumas considerações de Diderot…, Mas o pensamento dominante então seria bem representado por Rousseau, autor do libertador Contrato Social: “Si la femme est faite pour plaire et pour être subjuguée, elle doit se rendre agréable à l’homme au lieu de le provoquer; sa violence à elle est dans ses charmes; c’est par eux qu’elle doit le contraindre à trouver sa force et à en user. L’art le plus sûr d’animer cette force est de la rendre nécessaire par la résistance. Alors l’amour-propre se joint au désir, et l’un triomphe de la victoire que l’autre lui fait remporter. De là naissent l’attaque et la défense, l’audace d’un sexe et la timidité de l’autre, enfin la modestie et la honte dont la nature arma le faible pour asservir le fort.” (Rousseau, 1817: V, 363) Reconheçamo-lo. Alguma razão terão certas historiadoras para negligenciar a historiografia do movimento feita por homens. Acompanhar a reação nos jornais portugueses de 1911 da polémica provocada por Carolina Ângelo ao inscrever-se nos boletins de voto das primeiras eleições republicanas não deixa de ser uma investigação reveladora de muitos lugares-comuns dos homens sobre as mulheres. Do ponto de vista retórico, a maior parte dos leitores e correspondentes dos jornais são do sexo masculino, escrevem e fazem opinião para o sexo masculino. Mas a leitura dos documentos da época revelaria também, ainda que talvez com menos propriedade, os lugares-comuns das mulheres sobre as mulheres. Muitos argumentos são comuns, ainda hoje, a homens e a mulheres: - a mulher não deve querer ser homem porque fica masculina e perde doçura; - a mulher não foi feita pela Natureza para a vida pública, mas para cuidar dos filhos, do marido e do lar, missão doméstica que a exalta; - a mulher não deve corromper-se com a política, coisa geralmente suja… Outros argumentos parecem mais tipicamente masculinos: - a mulher tem um marido que o faz política por ela…; - a mulher não tem um número significativo de representantes para que a lei se ocupe delas em especial, não porque não constitua uma larga parte da população, mas porque a população que importa no sufrágio (ainda na masculina) é a população que possui meios económicos de subsistência capazes de atestar uma hipotética independência intelectual… No partido republicano, existe também um curioso grupo de comentadores que vê nas mulheres um corpo coletivo reacionário, incapaz de sair das opiniões conservadoras que lhe são formatadas pelos pais, pelos maridos ou pelos padres que as querem submissas. Também o argumento contrário se pode encontrar entre os partidos mais conservadores, A imagem da mulher republicana, maçónica, livre-pensadora, professora, às vezes ligadas a movimentos de espiritismo, colocava em causa a segurança do próprio lar…: representando o voto a evidência da sua autonomia financeira e intelectual, e ainda quando não estava para todos em causa o sufrágio feminino universal (cf., Esteves, 2014: 474 et passim), poder votar era, em geral, “poder ter” opinião crítica. Acresce-se por fim a estes fatores – a complexidade das causas e dos efeitos dos fenómenos de reivindicação e a invisibilidade dos documentos que os podem comprovar – a inexistência da palavra “feminismo” antes do século XIX e a dificuldade da História em estudar o não nomeado. A palavra "feminist" teria entrado em 1894 pela primeira vez no Oxford English Dictionary, e, em 1895, encontraríamos já o substantivo abstrato, "feminism" (v.g., Tandon, 2008: 1). A origem da palavra é francesa, mas a primeira edição de Littré (de 1863-1877) considera somente o verbo “féminiser”, com uma citação de Chateaubriand (Littré, online). Acreditam uns que a palavra foi inventada em 1837 por Charles Fourier, defensor da igualdade jurídica dos dois géneros: segundo Leslie F. Goldstein, teria sido depois divulgada pelos escritos da sufragista francesa Hubertine Auclert. Outros, com boas razões, contestam esta ideia-comum: é que não encontram a palavra “feminismo” ou “feminista” em qualquer texto de Fourrier. Geneviève Fraisse, desenvolvendo diferentes pistas de trabalho (de que já tinha falado aliás em 1984 e 1988), só encontraria a palavra num texto panfletário de Alexandre Dumas Filho, L’Homme-Femme, de 1872 (cf. Fraisse, 2010: 281). O autor d’A Dama das Camélias verifica em alguns homens, nas franquezas amorosas de alguns homens que foram atraiçoados por mulheres, as mesmas características físicas dos doentes de tuberculose. Retomaria então o termo usado num estudo médico, Du Féminisme et de l’Infantilisme chez les Tuberculeux, publicado no ano anterior por Ferdinand-Valère Faneau de la Cour que detetara nos homens tuberculosos sinais de efeminação e infantilização: cabelo fino, pele macia, barba rala órgãos genitais mais recolhidos. A palavra “feminismo” (aplicada assim pela primeira vez aos homens) começa pois por ser conotada com a doença e a falta de virilidade, sendo certo que, no final do século XIX, como o testemunham os dicionários de língua francesa e inglesa, tem já o valor que em geral lhe é dado ainda hoje: em lato sensu, a ideologia em que as mulheres se definem, individual e coletivamente, como seres com direitos iguais aos homens. Esta perspetiva médica porém, tem ainda origem no século XVIII, nos estudos médicos sobre a fisiologia feminina, continuados e sistematizados pela ciência positivista do século XIX. Em 1818, uma Dedução Filosófica da Desigualdade dos Sexos e dos seus Direitos Políticos por Natureza (assinada agora anonimamente por R. F. C.) atribui agora à Natureza o que antes do século XVIII era atribuído a Deus: a criação da mulher e de uma funcionalidade específica: a da maternidade, a do recolhimento do lar. Talvez seja útil analisar os argumentos num livro que marcou grande parte do conhecimento médico sobre a mulher, com sucessivas edições ao longo do século XIX: Systhème de la Femme, de Roussel (1742-1802). Enquanto no homem os órgãos sexuais se encontram em exibição exterior, projetando a sua força criadora, os órgãos femininos são internos, descritos como receptáculos dessa força. O cérebro do homem, segundo medidas rigorosamente descritas, era também maior na generalidade dos homens com a mesma idade: ora sendo o tamanho do cérebro indicador da importância do raciocínio criativo, a mulher manter-se-ia num estado inferior de abstração. Tal argumento seria aliás corroborado pelos traços que mantinha em comum com a criança: enquanto os jovens machos, na puberdade, engrossavam a voz, aumentavam a quantidade de pelos e aumentavam a sua estatura, aa mulher permanecia em geral mais baixa, sem pelos e de pele lisa, com a voz ainda nos tons agudos das crianças. Tudo afinal batia certo na natureza: quando intelectuais, as mulheres eram emotivas; quando levadas pelo desejo sexual, eram histéricas, quando socialmente empenhadas, perdiam doçura de traços. Dando-lhe a natureza mole e fluida uma propensão para a ternura, desviava-a no mesmo grau da disciplina das ciências abstratas e da constância de algumas artes: (cf. Roussel, 1845: 43). Assim, a nosso ver, não devemos negligenciar o papel legitimador que vai tendo o discurso masculino, sobretudo no século XVIII, na afirmação de igualdades jurídicas ao longo dos dois últimos séculos: ele é fruto de um entendimento cada vez mais alargado dos ideais iluministas, ainda que o tenha sido através de polémicas, aparentes avanços e aparentes recuos. A questão historiográfica não deve ser tanto a de quem diz e o sexo de quem diz, mas porque é que diz e como diz. Ao longo do século XVIII, a questão não teria sido aliás somente a de escritores-homens que falam sobre a consideração da igualdade dos sexos como questão simplesmente teórica (cf. Silva, 1983: 875-6). As questões teóricas raramente são somente teóricas: uma teoria é sempre, até na etimologia, um ponto de vista da realidade sensível, cujas implicações não podem deixar de ser práticas: teoria vem do grego “theoría”, "acção de observar, acção de ver uma festa" (cf. Pereira, 1969: 667). Por outro lado, é ao longo do século XVIII que encontramos uma parte significativa das polémicas abertas sobre a igualdade dos géneros, não tanto de autoria masculina, mas maioritariamente com intervenção feminina. Por muito consensual que fosse o texto de Talleyrand, o certo é que La Déclaration des Droits de la Femme et de la Citoyenne, da autoria de Olympe de Gouges, tinha sido redigida para influenciar o Rapport sur l'instruction publique. Incomodaram tanto ou tão pouco as suas ridículas ações que Olympe de Gouges se viu condenada à morte pelo mesmo poder revolucionário que a inspirara. Mas que mal haveria em alguém declarar (teoricamente) que toda a mulher nasce permanece livre e igual ao homem em direitos? « Toute femme naît et demeure libre et égale à l’homme en droits; les distinctions sexuelles ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune. […] La garantie des droits de la femme est pour l’utilité de tous et non pour l’avantage de celle à qui elle est accordée.» (Gouges, 1791, online). E, em 1792, Anna Laetitia Barbauld, acentuaria ainda mais o tom do manifesto político, em tom que depois Marx imitaria cerca de meio século depois: “Yes, injured woman — rise, assert thy right!” (apud Ashfield, 1998, online). Cremos que, na história do feminismo, há uma história a reescrever com mais frequência: a da “onda”/ “fase” setecentista, quando a consciência de ser mulher e a consciência de ser homem se começaram a cruzar. Um mundo que exige agora outras maneiras de ser homem. Em 1788, um autor como José Daniel Rodrigues da Costa, que tantas vezes satirizou os homens efeminados e as mulher masculinizadas do século XVIII, sonha ainda com um "século de oiro", o século XVI, em que tudo era império e armas, quando “Cobrião a cabeça os Portuguezes/ Com férreo capacete;/ Servia-lhes o arnez de sobretudo,/ De curta niza o chapeado escudo./ Huma buida cortadora espada/ De horroso pezo;/ E segundo das forças que prezumo,/ Davão pancadas que botavão fumo” (Costa, 1788: 8 e 10). Os tempos mudaram: exigem agora mais subtilezas. Sendo a mulher cada vez mais homem e o homem cada vez mais mulher, o “feminismo” andou entre um e outro sexo. Como também dirá depois, em 1819, outra personagem de José Daniel Rodrigues da Costa, os homens efeminados decorrem naturalmente de uma reorganização social que lhes exige novas funções e novas competências: saber usar da palavra e não somente da espada, mover-se num jogo de sedução que exige uma nova forma de ser marido ou pai, ou súbdito: “Não duvido do que dizem; mas então cada homem era para sua cousa, hoje todos os homens são para tudo” (Costa, 1819: VII, 21). O mesmo se dirá então e depois para as mulheres. BIBLIOGRAFIA CITADA 50 Anos de Estatísticas da Educação (2009). 3 vols, Lisboa, Editorial do M.E.. Disponível online:http://www.dgeec.mec.pt/np4/172/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=196&fileName=50_Anos_VolI.pdf (acesso em 1/12/15). Ashfield, Andrew (ed.) (1998). Romantic Women Poets (1770-1838). An Anthology, Manchester/ N. York, Manchester University Press. Beauvoir, S. (1981). Le Deuxième Sexe. « Les Faits et les Mythes », 1.º tomo, Paris, Gallimard. Borralho, M. 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Foi sempre nítida a diferenciação de género, que discriminava fortemente o feminino, a ponto de podermos afirmar que a mais invariável das políticas de colonização e de emigração, no caso português, é a proibição geral da saída de mulheres. Os normativos e as práticas em que se traduziu, sob uma capa do protecionismo, não parecem ter suscitado grande oposição pública, nem entre os populares nem a nível das elites sociais e políticas. Talvez o mesmo se possa dizer das próprias interessadas, embora saibamos que algumas quiseram partir com maridos ou pais e obtiveram a necessária autorização régia. E períodos houve de inflexão da estratégia dominante de povoamento e colonização através da miscigenação, da união incentivada ou permitida de portugueses com mulheres nativas. Foi o caso da colonização de casais, ensaiada em várias parcelas do Império, - nas ilhas do Atlântico, Angola, Brasil... - , ou de casamentos das "orfãs d'El- Rey", que iam do reino ao encontro dos maridos que lhes destinavam. Destas relativamente poucas pioneiras da história da Expansão dá-nos Júlia Néry um retrato no seu romance "Da Índia, com amor - a extraordinária e desconhecida aventura das mulheres na Carreira da India". Um retrato, que para além do seu interesse literário, nos leva a pensar nas pessoas, jovens sujeitas aos perigos e incertezas de viagens sem regresso, à vida em comum com homens desconhecidos, em terras longínquas: o preço humano das políticas de Estado, numa leitura feminista. Da literatura à ciência, o olhar retrospetivo sobre as políticas de género na colonização portuguesa, é, ou pode ser, igualmente negativo. CR Boxer, historiador e especialista desta época, que abordou questões de género, mais ou menos negligenciadas por quase todos os outros, dedicou-lhes especial atenção numa série de palestras, publicadas, em 1975, com o título original de "Mary and Misoginy". Na tradução portuguesa, de 1977, o enfoque na misoginia perde-se completamente, num invólucro de contrastante neutralidade, que aponta apenas para "O papel da Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica". Mas,de facto, em múltiplas passagens desta sua obra, Boxer não poupa críticas à situação das mulheres portuguesas, enclausuradas dentro de suas casas por pais ou maridos, tal como nas fronteiras do território por imposição estatal, ao invés com o que acontecia no resto da península. É certo que Boxer compara, sobretudo, a colonização castelhana das Américas com a nossa presença no Império do Oriente, e que o número e proporção de mulheres envolvidas na edificação do Brasil, em condições de vida mais semelhantes às do reino, é bastante superior, como ele próprio não deixa de reconhecer. Contudo, a divergência fundamental persistia: a Coroa espanhola (ou castelhana) fomentava a colonização por famílias inteiras, enquanto a portuguesa barrava a partida das mulheres. Castela legislou, recorrentemente, sobre a obrigação de os homens chamarem as esposas para junto de si, ou regressarem ao Reino para fazerem "vida de casados". Preocupação humanista - ou feminista – que era central no plano de povoamento do Novo Mundo de fala castelhana, e servia, em simultâneo, outros objetivos essenciais, como o da expansão da língua e da cultura. Dimensão ausente nas preocupações dos monarcas portugueses, aparentemente insensíveis, tanto face à sorte das mulheres, quanto à sua importância na preservação dos costumes, formas de estar em sociedade, valores culturais... O papel das mulheres na expansão ibérica que surge como homogéneo no título da edição portuguesa de “Mary and Misiginy” era, pois, muito diferentemente reconhecido pelas duas potências ibéricas que, então, dividiam o senhorio dos mares. Com isso, ao longo dos tempos, desde o Século XVI, terão perdido as portuguesas, os portugueses e, igualmente, Portugal. Como diz Lokchart, ao comparar as estratégias de colonização peninsulares: […] grandes regiões da América espanhola tinham mulheres em número suficiente para permitir manter intactas a cultura e tradições ibéricas, ao contrário do que aconteceu em muitos estabelecimentos portugueses, onde elas eram poucas ou nenhumas, e onde a língua, a religião e a cultura dos portugueses se reduziram drasticamente (Boxer, 1977:37)) Assim aconteceria, depois da partida dos navegadores portugueses por todo o Oriente, salvando-se alguns preciosos núcleos de lusofonia, que a pertença religiosa e, através dela, laços culturais e afetivos vêm mantendo até hoje (pensemos, por exemplo, em Malaca, onde o próprio falar, originário da língua quinhentista, tomou a designação de “kristang” e vem sendo defendido contra o risco de extinção, por professores e dirigentes associativos locais, como Joan Marbeck (Marbeck, 2004), em ligação com universidades asiáticas, e com a Fundação Gulbenkian (1). O português manteve, como sabemos, o seu estatuto de “língua franca”, por quase um século, depois do declínio do império do Oriente. Mas isso revela-nos, essencialmente, que se tornara veículo de comunicação no mundo das transações comerciais, um mundo de homens. Em muitos lugares da antiga presença lusa ficou a pedra dos monumentos, os apelidos dos descendentes dos navegadores, difusas memórias, porventura também afetos, potencialmente criadores de um espaço onde a lusofilia poderá renascer, como, na atualidade, só Adriano Moreira parece ter compreendido, com a convocação dos primeiros congressos mundiais de cultura portuguesa, nos anos 60 do século XX. (2) 2 - DA EXPANSÃO À EMIGRAÇÃO Se na própria colonização promovida pelo Estado o papel das portuguesas foi subavaliado e a sua inclusão contrariada, não era de esperar que o fosse menos na fase de emigração. A marginalidade das mulheres na aventura da exploração dos mares e das terras teve a ver, como Boxer salientou, com uma tradição misógina que se manteve incólume, ao longo de 500 anos. Só ela explica a incompreensão do significado da componente feminina num projeto colonização, em que se visava implantar valores civilizacionais. Não era esse o caso na emigração, vista apenas como meio de ganho material, sem se entrever a autêntica relevância social e cultural das comunidades nascidas de sucessivas vagas migratórias. Na verdade, poucos foram os que, como Afonso Costa, se deram conta da importância da chegada de tantos portugueses ao Brasil independente, para aí ajudaram a manter a matriz lusófona, numa nova situação de concorrência com outros povos europeus. Muitos o fizeram contra leis e políticas extensivas aos dois sexos, mas sempre mais permissivas para os homens. Porquê? Antes de mais, porque os Governos queriam garantir o envio de remessas para o país. O montante atingido por essas verbas– uma infinidade de pequenas poupanças que representavam grandes sacrifícios, a acrescer ao sofrimento da separação familiar dos dois lados do oceano – era de tal ordem, que delas dependia o equilíbrio da balança de pagamentos com o exterior. A reunificação familiar significava o fim das remessas (divisas) e, em muitos casos, também o enraizamento em sociedades estrangeiras. As mulheres subvertiam, perigosamente, o fenómeno migratório. no sentido do não retorno, quer das pessoas, quer das divisas - um mal absoluto! Os académicos foram os primeiros a configurá-lo assim. O Prof. Afonso Costa, que não se opunha (bem pelo contrário!) à emigração masculina, via na abalada de mulheres “uma depreciação do fenómeno migratório”, porque como reconhecia, falando do “emigrante – homem”[…] é quando a família fica na terra que ele envia mais regularmente as suas remessas”: (Costa, 1913: 182). O Prof. Emídio da Silva, outro grande especialista nesta área da investigação, partilhando o mesmo pensamento, escrevia, que a nova tendência de saída maciça de mulheres era “uma constatação tremenda” pelos perigos de “desnacionalização” e “cessação de remessas” (Silva, 1917: 132) Fazedores de opinião, de políticas, numa avaliação puramente economicista das vantagens do “fenómeno migratório”... Porém, não houve discurso, nem lei, nem autoridade que conseguisse estancar o êxodo (nem tão pouco, desviá-lo do destino brasileiro para as colónias que restavam). De facto, na primeira década do século passado, com o embaratecimento dos custos do transporte marítimo, aumentou substancialmente, a reunificação familiar no outro lado do Atlântico. As portuguesas e as crianças que as acompanhavam, constituíam cerca de 30% (um acréscimo de 107% nessa fase, segundo Emygdio. da Silva), percentagem, que, ao longo do século, aumentou, progressivamente, atingindo a quase igualdade na emigração intra europeia. Apesar da proximidade geográfica, também para a Europa, os homens iam à frente, como dantes, mas, os tempos eram outros, com o reagrupamento familiar a ser facilitado, em nome de direitos humanos fundamentais, embora, em muitos países, as mulheres tivessem autorização de residência com um estatuto jurídico de dependência, que não lhes dava acesso ao trabalho – restrição que, porém, quase todas foram eficazmente torneando. E o trabalho salariado mudou o seu destino e, também, o das comunidades portuguesas. Com dois salários e um relacionamento mais igual e mais aberto com os outros, compatriotas ou estrangeiros, se avançou na boa integração do casal e dos filhos. (Leandro, 1995) O mundo associativo refletia esta realidade, do mesmo passo que favorecia a recriação de espaços extra territoriais de língua e de costumes portugueses. A participação de mulheres, de famílias inteiras, transformou os clubes masculinos – muitos criados à imagem de tabernas ou cafés de aldeia - em verdadeiros centros de cultura popular, com o folclore, o teatro, o restaurante de sabores caseiros, o desporto, as escolas. As mulheres contribuíram poderosamente para o enraizamento lá fora e, em grande número, como é sabido, resistem ao regresso, em maior sintonia com as segundas gerações (Ramos, 2009). Mas não se pode ignorar que, em contrapartida, são, sobretudo, elas as guardiãs da língua e da memória das origens, do espírito da Diáspora, em que, bem vistas as coisas, se continua, no povo e na cultura, uma segunda vida da Expansão 3 - UMA REVOLUÇÃO NAS POLÍTICAS DE EMIGRAÇÃO A história das nossas políticas de emigração demonstra que mais facilmente mudaram os regimes do que as políticas, que praticamente se resumiam ao controlo e condicionamento dos fluxos de saída (sobretudo femininos), ao desígnio nacional de captação e exploração das remessas, e a uma constante falta de apoios no estrangeiro. Da monarquia tradicional à constitucional, do regime monárquico à Republica e desta à ditadura do "Estado Novo", neste campo, quase nada mudou. A revolução de 1974 foi a primeira das revoluções que teve uma significativa e imediata repercussão no domínio das migrações: com o reconhecimento da liberdade de circulação e de um estatuto de cidadania dos expatriados. A Constituição de 1976 veio proclamar a igualdade de direitos de ambos os sexos, impondo ao Estado o dever de criar as condições para a sua efetivação, nomeadamente no que respeita à participação na vida pública. Todavia, o organismo constituído para esse fim, uma comissão para a igualdade (cuja designação se foi alterando mais do que as suas competências...) desenvolveu o seu trabalho, prioritariamente, dentro das fronteiras territoriais, sem articular ações com os serviços da Secretaria de Estado da Emigração, que, por seu lado, ignoravam a especificidade das situações das migrantes - só muitos anos depois, num caso exemplar, mas esporádico (a organização de cursos de formação profissional para mulheres, após a nossa adesão à CEE), suscitaram a colaboração da comissão da igualdade (Paiva.2005:14). Omissão constante, num período em que as fronteiras se fecharam aos ingressos de homens trabalhadores e se abriam, apenas, às mulheres, para reunião familiar, em que muito se falava de "feminização" da emigração e de "dupla discriminação" das emigrantes, mas nada se fazia, no plano governativo, perante o manifesto descaso dos movimentos da sociedade civil por estas questões. Aliás, o desinteresse vem de trás: os movimentos feministas, do início do século, nunca olharam, solidariamente, as mulheres das Diásporas (Aguiar, 2008: 1248); o associativismo feminino das nossas comunidades, mais voltado para meritórias obras de beneficência, à maneira convencional, foi tradicionalmente pouco sensível a reivindicações sufragistas e à urgência do“empoderamento” das mulheres; o associativismo misto na emigração, dirigido quase exclusivamente por homens, nunca deu voz às mulheres, nem curou das especificidades da sua situação. O Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), criado em 1980 e eleito dentro do universo associativo (incluindo os meios de comunicação social), veio evidenciar essa realidade, dada a total ausência de mulheres eleitas no 1º Conselho, e, também, a inexistência de recomendações que lhes dissessem respeito. Uma segunda eleição, em 1983, trouxe ao CCP duas jornalistas, Maria Alice Ribeiro, de Toronto, e Custódia Domingos, de Paris. Fica a dever-se à Conselheira do Canadá a proposta inédita de convocação de um encontro mundial de mulheres migrantes, para delinear políticas com a componente de género. O encontro teve lugar em Viana do Castelo, em Junho de 1985, com a presença de portuguesas que se dedicavam ao jornalismo e ao associativismo (as duas componentes do CCP). Aí, as participantes (selecionadas pelo curriculum e pela apresentação de comunicações) procederam a um vasto levantamento de situações e de potencialidades, falando não só de si próprias, mas das comunidades como um todo e do seu futuro. No fim, apresentaram recomendações e fizeram propostas -tornando a reunião numa espécie de CCP no feminino e manifestando a intenção de constituir uma organização internacional feminina da Diáspora. Como quiseram salientar, Portugal tornara-se com este congresso, que foi patrocinada pela UNESCO, um país pioneiro, pois, no respeitante a políticas de“empoderamento” das mulheres, antecipara em 10 anos uma das principais recomendações da IV Conferência das Nações Unidas (Rego, 2012:96) Para implementar as principais recomendações do 1º Encontro e dar seguimento à audição das migrantes, a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas decidiu instituir, em 1987, uma "conferência para a participação das mulheres" a funcionar, periodicamente, na órbita do CCP (3). A queda do governo, nesse ano inviabilizou a sua implementação, tal como o funcionamento normal do CCP, que viria a ser extinto. A experiência pioneira começada em Viana foi interrompida, num interregno de mais de duas décadas. 4 - AS POLÍCAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE Em 1993, algumas das intervenientes do Encontro de Viana instituíram, em Lisboa, com um projeto transnacional, a "Mulher Migrante, Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade - uma ONG inspirada na experiência de 1985, que veio despertar a consciência para o facto do vazio de atuação pública, e para a necessidade de diálogo e de cooperação Estado - sociedade civil, neste domínio. Em 1995, a nova Associação convocou um congresso mundial, com centenas de participantes dos cinco continentes - o maior e mais mediático até hoje reunido no país - sob o lema "Diálogo de gerações". Contudo, nos anos que se seguiram, a cooperação estabeleceu-se, sobretudo, com as comissões para a igualdade, perante o descaso da SECP bem mais atenta à componente da juventude do que às questões de género (4). A rotura com esta tradição de indiferença, por parte da SECP, verifica-se no ano de 2005 e fica, de algum modo, a dever-se, a uma proposta apresentada pela AEMM ao SECP Dr António Braga - para o recomeço do diálogo com as mulheres da Diáspora, decorridos, precisamente, 20 anos sobre a data do 1º Encontro mundial. António Braga imprimiu ao projeto um desenho original: as ações de mobilização ficariam diretamente a cargo das ONG’s, em parceria com o governo, e seriam realizadas em diferentes regiões do mundo, só depois convocando um congresso mundial. Os “Encontros para a Cidadania – a igualdade entre homens e mulheres” foram, assim, da responsabilidade da Associação” Mulher Migrante “, em estreita colaboração com associações das comunidades em cada uma das regiões - América do Sul (Buenos Aires, 2005), Europa (Estocolmo, 2006), América do Norte, costa leste (Toronto, 2007), na África (Joanesburgo, 2008), e América do Norte, costa oeste (Berkeley, 2008). Em 2009. realizou-se o Encontro internacional (em Espinho,) com a participação de relatoras de cada uma das reuniões regionais. (Aguiar, 2009:33-44). Em todas as reuniões, estiveram envolvidas as missões diplomáticas portuguesas e instituições privadas (a Associação da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina, a Federação das Associações de Mulheres Lusófonas (PIKO), na Suécia, a associação "Working Women" e outras, no Canadá, a Liga das Mulheres Portuguesas na África do Sul, as professoras portuguesas do Departamento de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA). O governo esteve sempre presente, através de António Braga, Secretário de Estado das Comunidades, ou Jorge Lacão, Secretário de Estado da Presidência, (com a tutela da comissão para a igualdade). Um paradigma baseado numa dupla parceria: entre Estado/ Sociedade Civil e entre as Secretarias de Estado que tutelam os serviços de emigração e a comissão da igualdade. Em 2005, em Buenos Aires, António Braga manifestava a intenção de retomar nas políticas públicas "a questão de género que tem andado esquecida ao longo dos anos"; Jorge Lacão, no Encontro de 2006 e na Conferência para a Igualdade em Toronto, assumia que o dever constitucional imposto ao governo de promover a igualdade entre mulheres e homens se estende ao espaço da emigração, dizendo que: “No seu programa, o XVII governo português comprometeu-se a estimular a participação cívica dos membros das comunidades portuguesas, tendo como princípio orientador a Igualdade de Oportunidades entre todos os portugueses e todas as portuguesas, nomeadamente a igualdade de género, independentemente de serem ou não residentes em Portugal". Reconhecia, também, que a igualdade de género ganhara o seu lugar central, “através da transversalização da perspetiva de género em todas as áreas prioritárias de política social, económica e cultural (gender mainstreaming), ao qual se associam medidas de carater positivo onde persistem notórias assimetrias de género”.(Lacão, 2009:9) Era esse, incontestavelmente, o caso da (não) participação igualitária no mundo associativo da Diáspora, que, persiste na maior parte dos países de destino, mesmo em sociedades estrangeiras, onde a integração foi não só conseguida como impulsionada pelas mulheres (Ramos, 2009:49). Daí que o foco do programa para a igualdade em 2005/2009 incidisse nas questões de cidadania, de inclusão no plano da intervenção cívica e política, da liderança do movimento associativo. O CCP, órgão de diálogo sobre definição de políticas de emigração onde as mulheres nunca estiveram em número e posição igual, tornou-se o alvo da primeira aplicação da "Lei da Paridade", voltando a ser figurante da história das políticas de género, apesar dos resultados da aplicação da Lei na sua composição e funcionamento terem sempre, até hoje, ficado aquém das metas da paridade (4) Um novo passo significativo foi dado na Assembleia da República com o debate e a aprovação da Resolução nº 32/2010 sobre a igualdade de género na emigração. Nunca antes o parlamento português se debruçara sobre esta problemática, instando o governo a ação imediata e continuada, apontando a via da cooperação estreita entre Estado e ONG's das comunidades, fazendo do "congressismo" - colóquios, debates, jornadas de reflexão - um dos instrumentos privilegiados de sensibilização para a igualdade. O XIX governo constitucional, com o Secretário de Estado Dr. José Cesário (que, na qualidade de deputado, havia sido o autor da referida proposta de recomendação), seguiu as linhas estratégicas contidas na Resolução, com isso, retomando o fio condutor das políticas do Executivo anterior, renovando parcerias com as ONG’s do país e do exterior. Os congressos mundiais de 2011 (na cidade da Maia) e de 2013 em Lisboa, no Palácio das Necessidades, alternaram com encontros e debates em comunidades europeias e transoceânicas, em alguns casos envolvendo a co-organização com prestigiadas universidades, dentro e fora de Portugal, pondo em contacto e interação dois mundos que nem sempre convivem facilmente, o associativo e o político com o académico, cuja colaboração é essencial à definição de políticas que acompanhem as transformações da realidade a que se aplicam, dando ao saber a melhor utilização prática. A maior visibilidade das migrações femininas depende em larga medida dessa cooperação. E, antes do mais, da tomada de consciência pelas mulheres migrantes da importância de viverem a igualdade nas comunidades do estrangeiro. Por outras palavras, do seu “empoderamento”. Conclusão: Nesta breve exposição, centramos a atenção nas políticas do Estado, em séculos de discriminação das mulheres (ou de descaso) e numa década singular, norteada pela ideia da igualdade e pelo acento numa cultura de diálogo, usando o que chamamos “congressismo” como instrumento insubstituível, por um lado, para a compreensão de uma realidade em constante mudança (redimensionada por novas migrações em massa, incluindo as femininas, cada vez mais heterogéneas e dispersas geograficamente), e, por outro lado, para a expressão de projetos próprios da sociedade civil, que cabe ao Estado potenciar com os seus meios, e não dirigir com os seus ditâmes. Assim aconteceu ao longo dos últimos dez anos, numa linha de continuidade que resistiu à alternância democrática de governos. Um tempo demasiadamente curto para falarmos de enraizamento de uma tradição, mas já suficiente para criar a expetativa de que isso venha a acontecer, num contexto europeu e nacional de crescente sensibilidade para as questões de género. Notas (1) Joan Margaret Marbeck foi bolseira da Gulbenkian, e contou com o apoio da Fundação para publicações sobre o “kristang”, uma fala em risco de se perder, como expressão de uma comunidade euro asiática, luso malaia, da qual é é uma dinâmica dirigente (2) Adriano Moreira, na qualidade de presidente da Sociedade de Geografia, tomou a iniciativa de convocar e organizar dois Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa, que constituíram as primeiras grandes reuniões do mundo lusófono, unido pela Cultura – tornando-se um verdadeiro precursor da CPLP (3) Foi o CCP que aprovou uma recomendação para a criação de várias conferências – para o ensino, a juventude, os assuntos económicos - não, porém, a destinada a incentivar a participação das mulheres, a única que foi acrescentada àquela lista, por iniciativa do próprio Governo (4). Algumas das poucas iniciativas tomadas pelo CCP, neste campo, foram muito importantes, mas circunscreveram-se ao nível local, com destaque para o Canadá, EUA e Uruguai. No Canada, o coordenador do CCP, Conselheiro Manuel Leal, promoveu uma série de seminários e ações de sensibilização para a igualdade, acompanhado, sobretudo, pela Conselheira Maria Alice Ribeiro. Nos EUA, foi a Conselheira Manuela Chaplin quem desenvolveu algumas ações semelhantes, com o apoio do coordenador do CCP neste país, conselheiro João Morais. Na América do Sul distinguiu-se o Conselheiro Luís Panasco Caetano, que representava o Uruguai e um conjunto de outros países com pequenos núcleos de portugueses, e mantinha contactos estreitos com o movimento associativo no sul do Brasil e Argentina (é um dos históricos organizadores dos “Encontros do Cone Sul”).. Em vários desses países, foi ele que diligenciou uma multiplicidade de encontros informais, visando o envolvimento das mulheres no associativismo, em colaboração com a associação “Mulher Migrante”. BIBLIOGRAFIA Aguiar, Manuela (2008), “ Mulheres Migrantes: Trabalho profissional e Intervenção cívica” em Rosa Maria Neves Simas “A mulher e o trabalho nos Açores e nas Comunidades, Ponta Delgada EGA Aguiar, Maria Manuela (2009), "Os Encontros para a Cidadania" em Maria Manuela Aguiar e Teresa Aguiar (org), Vila Nova de Gaia, Edição Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade Boxer, C R (1977), "A Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica", Lisboa, Livros Horizonte Costa, Affonso (1913), "Emigração", Lisboa, Imprensa Nacional Gomes, Rita (2014) “A Emigração portuguesa nas vésperas da revolução” em Maria Manuela Aguiar, Graça Guedes, Arcelina Santiago (coord),”40 anos de Migrações em Liberdade, Espinho, Edição Mulher Migrante –Associação de Estudo, Solidariedade e Cooperação Lacão, Jorge (2009) « Conferência de Toronto » em Manuela Aguiar (coord) Cidadãs da Diáspora, VN Gaia, Rocha/ Artes Gráficas Leandro, Maria-Engrácia(1995), “Familles Portugaises Projects et destins”, Paris, Éditions L Harmattan Marbeck, Joan Margaret (2004), "Linggu Mai", Lisboa, Gulbenkiam Calouste Foundation Néry, Júlia (2012), "Da Índia, com Amor - a extraordinária e desconhecida aventura das mulheres na Carreira da Índia", Porto, Porto Editora Paiva, Maria Amélia (2005), “Mulheres Migrantes Duas Faces de uma Realidade”, Lisboa, Cadernos da Condição Feminina Ramos, Maria do Céu (2009) “Mulheres Portuguesas na Diáspora Mobilidade, Trabalho e Cidadania”, em Maria Manuela Aguiar (coord) “Cidadãs da Diáspora”,VN Gaia, Rocha/Artes Gráficas Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas (1986), "1º Encontro Portuguesas Migrantes no Associativismo e no Jornalismo", Porto, COPAG, CRL MULHERES, FIGURAS DE NAÇÃO. ROSALÍA DE CASTRO E MATUA DA FONTE José Viriato Capela Professor Catedrático e Presidente da Casa Museu de Monção/Universidade do Minho A ideia de Nação e Nacionalismo, como é sabido, é uma ideia “moderna”, do nosso século XIX, depois levada ao paroxismo com os Estados-Nação do século XX. Na base tem comumente o sentido de construção e reforço de identidade nacionalista e patriótica dos povos, com horizontes expansionistas assentes em múltiplos fatores, linguísticos, étnicos, geográficos, históricos, económicos, entre outros. Na Península Ibérica eles também atuariam no sentido de reforço dos Estados e estão na origem da construção de Estados totalitários – Franquista e Salazarista – que se formaram em paralelo dos violentos Estados Fascistas italiano e nazi-alemão. No que diz respeito a Portugal e Espanha, no seio da Península Ibérica, eles serviram para firmar as identidades e claras separações entre os dois Estados Peninsulares, isto sem embargo, algumas colaborações e aproximações entre ambos os regimes. A construção do Nacionalismo unitário franquista em Espanha teve, de algum modo, de se construir com e contra os nacionalismos e autonomias regionais; em Portugal o Nacionalismo português não se debateu com projetos de nacionalismos ou autonomias regionais. Reforçou a identidade nacional face a Espanha, de algum modo também o todo unitário de Estado colonial. E na Historiografia desenvolveu os estudos na perspetiva de valorizar dos fatores da identidade e singularidade da História portuguesa no conjunto peninsular. A História Portuguesa, tem sido construída na base de uma Historiografia escrita por homens. Em particular, esta História dos Nacionalismos, que sendo um capítulo que envolve, de modo especial, domínios ligados a Ação política e militar, tem sido escrita sobretudo com base na História Política e militar e dos feitos heroicos dos portugueses. As formas de nacionalismos, de base regional, que querem exprimir a força e identidade dos povos, numa perspetiva da sua afirmação particular em conjuntos mais vastos, que não passam necessariamente pela construção de grandes Estados, é uma realidade que não deve ser esquecida da História dos Povos, até porque eles põem em marcha outros agentes e referentes. E relativamente a Espanha aí estão as múltiplas formas históricas de lutas, com base nas suas identidades «nacionais», pelos regionalismos, pelos estatutos autonómicos, pela própria independência nacional. Em Portugal, as manifestações desta índole nunca foram além de reivindicações regionalistas, sem horizontes políticos que não sejam o de defesa e promoção dos interesses regionais e num vago Provincianismo de base administrativa. A Língua Portuguesa – que é única e forte no todo nacional e nas terras da Expansão Portuguesa – e a precoce construção de um Estado centralizado nunca propiciaram desenvolvimento de entidades regionais. O que é facto é que estes Estados fortemente centralizados provocam os maiores desequilíbrios no desenvolvimento nacional, que tanto ou mais que outros sentimentos de secundarização política, social, ou cultural, provocaram os movimentos reivindicativos regionais. São conhecidos em Espanha desde o século XIX as lutas de algumas regiões, designadamente na nossa vizinha Galiza que desembocaram nos Estatutos Autonómicos. São também conhecidos em Portugal as reivindicações regionalistas da mesma etapa, que acabam por definir prosaicamente e temporariamente a Província (1936) como entidade administrativa. A tradição municipalista entre nós, desembocou, no Poder Local. A História dos movimentos regionalistas e pela autonomia ou mais prosaicamente, pela defesa das tradições e «liberdades» dos povos – face às Culturas e Estados Nacionais – escreve-se na Galiza e em Portugal, também com o nome de duas mulheres, Rosalía de Castro e Maria da Fonte. Elas vão associadas a processos de defesa e construção de identidades nacionais no século XIX de base regional e deixam bases para o futuro. Nessa perspetiva se lhes aplicará também o epíteto de Figuras de Nação, porque vão associadas à construção das bases e ideias dos Nacionalismos para as suas terras e regiões (caso de Rosalía) ou de outro modo de conhecer (defender) a Nação tradicional Portuguesa face às mudanças do Liberalismo (Maria da Fonte). Apesar destas circunstâncias, não parecerá a muitos admissível a aproximação destas duas figuras, que exprimem a sua intervenção de modo muito diferenciado. De facto, uma, Rosalía de Castro, figura histórica bem fixada, na sua terra natal, na sua biografia, na sua obra literária e cultural; outra, Maria da Fonte, de difícil se não impossível fixação pessoal – identitária, mais expressão de movimento coletivo de mulheres, do que ação individual, isto é, mais mito do que realidade. Mas a razão desta aproximação decorre do papel que ambas as figuras tiveram no processo de defesa e construção de identidades locais e regionais, em tempo de ativa absorção estadual e cultural dos seus territórios, a Galiza no grande Estado e Nação de Espanha, o Minho, e por ele uma certa personalidade e identidade social e cultural, no Estado e Nação Portuguesa, no século XIX. São ambas contemporâneas do processo de abolição do Antigo Regime e de construção do Liberalismo em Espanha e Portugal, de disputas entre liberais e absolutistas e dos seus diferentes projetos de Sociedade. Atentam ambas por meados do século XIX, num estádio já desenvolvido da implantação do novo Estado Liberal, mais centralista que o Estado Absolutista do passado. E vivem e refletem o quanto essa evolução política tem sido feita contra ou a desfavor dos Povos e das Culturas das suas regiões e províncias. Rosalía fixará por então desde meados do século XIX em prosa e poesia a mais dolorida expressão a que está a ser votado o Povo Galego, pelo desprezo e desclassificação a que está a ser votada a Língua galega e sua Cultura no seio de outras Nações peninsulares, face a Castela, sobretudo. E também, às forças económicas e anímicas da Galiza, que se estão a exaurir sob o efeito da Emigração. Galiza que considera e elege como mais rica e úbere região de Espanha se a libertarem dos estrangulamentos a que vai submetida. Maria da Fonte, de armas na mão, a partir da Póvoa de Lanhoso, também a meados do século, desde 1846, mobilizará o povo minhoto e nortenho contra as instituições do Liberalismo e do Cabralismo em defesa das «Santas Liberdades» que aqui são a uma expressão mobilizadora a defesa das velhas tradições contra um Estado e Governo Ditatorial. Aproxima então Rosalía de Castro e a Maria da Fonte o mesmo sentido de defesa da autonomia das terras e das regiões e vontade da sua afirmação política e cultural, em tempos, em que regiões e províncias periféricas como a Galiza e o Minho estão a ser secundarizadas e diminuídas. Estamos em face de movimentos de natureza diferente: um que pelas Letras e Cultura quer defender e promover o seu povo e lançar os fundamentos do resgate do Povo galego; outro que pelas Armas quer combater um Estado centralista e opressor que governa contra a Nação, isto é, contra os Povos. São conhecidas as armas e as gestas militares da Revolução da Maria da Fonte que logo se estenderá a todo o Minho e que tomará a designação de Revolução do Minho. Para Rosalía de Castro é a Cultura e a Língua que devem ser as Armas defesa do Povo Galego. Vale a pena fixar aqui a apresentação de Rosalía à sua mais notável obra que virará matriz do galeguismo, os «Cantares galegos» (1ª ed., 1863; 2ª ed., 1872).. «E a nossa língua não é aquela que bastardeiam e champorrem torpemente nas mais ilustradíssimas províncias, com uma risa de mofa, que a dizer verdade (por mais que esta seja dura), demonstra a ignorância mais crassa e a mais imperdoável injustiça que pode fazer uma provincia à outra provincia irmã, por pobre que esta seja. Mais é aqui que o mais triste nesta questão é a falsidade com que fora daqui pintam, assim os filhos da Galiza como a Galiza mesma, a quem geralmente julgam o mais despreciado e feio de Espanha, quando acaso seja o mais fermoso e digna de alabança». Qual o diferente legado das ações e obras destas duas figuras (movimentos)? Em Rosalía de Castro o mais profundo sentido otimista do destino do Povo e Nação galega. E também do papel e lugar da sua Língua que com a sua obra será a verdadeira fundadora do Galego como Literatura Moderna. Na Maria da Fonte e Revolução do Minho, o sentido da luta contra os autoritarismo e despotismos e a defesa dos valores tradicionais dos povos e regiões. A Maria da Fonte, como ação política teve efeito imediato no Levantamento Minhoto, Nortenho e Nacional contra o Governo de Costa Cabral e suas medidas, que levam à sua queda. A obra literária e poética de Rosalía de Castro só será o fundamento da luta pelo nacionalismo galego, mais tarde, porque a sua obra só será publicada lida e reconhecida, por finais do século XIX e no século XX em que perduraria pela «atração insuperada dos seus versos regionais». De qualquer modo ambas tiveram um papel importante nos processos dos ressurgimentos nacionais e nacionalistas de finais do século XIX, que preparam os movimentos republicanos, em Espanha e Portugal, e que passam, em ambos os casos pela valorização, papel e lugar que devem ter os territórios, as províncias, as regiões no processo global dos Ressurgimentos Nacionais. Rosalia de Castro virará a maior referência dos promotores do Nacionalismo Galego. Maria da Fonte, suporte de um vago Regionalismo e Provincianismo bandeira de forças liberais e conservadoras, na sempre expressão da capacidade das terras e regiões de afirmar a sua identidade e tradição. No final de contas, também, dois modos diferentes de intervir, de base feminina: o literário, o cultural, da obra individual que mobilizará as vontades a mais largo prazo do povo que contra e a quem se dirige; o belicoso e guerrilheiro do movimento coletivo, de rutura e gestos violentos mas que sempre também se perpetuam e vem à memória. EXPRESSÕES DE CIDADANIA NO FEMININO Nassalete Miranda Diretora do Jornal “ As Artes entre as Letras” Agradecer e felicitar, dois verbos que se impõem para falar da excelente e oportuna iniciativa cultural e cívica que foi a que teve como título: “Expressões de Cidadania no Feminino” e que aconteceu em Monção em 5 de Setembro do ano da Luz 2015. Agradecer ao Município de Monção, à Reitoria da Universidade do Minh e à Casa Museu de Monção todo o apoio dado, e desde o primeiro momento, à ideia de levar a terras de Deu-la-Deu, um debate e uma exposição de pintura e de escultura, em acto de efectiva descentralização da Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante. Associação a que é devida uma palavra de felicitações, nas pessoas das Dras. Manuela Aguiar, Rita Gomes e Arcelina Santiago – obreiras incansáveis que teimam em não cruzar braços no que respeita ao apoio da integração da mulher portuguesa emigrada mundo fora, através precisamente da Cultura, no sentido mais abrangente e global da palavra e da solidariedade. Coube-me a honra de moderar um debate rico pela qualidade dos intervenientes e que teve sobre si o olhar sorridente da figura emblemática e mítica de Deu-la-Deu Martins - que muitos ainda pensam que foi homem…mas não – foi mulher e resolveu, pela astúcia e com pão, o cerco a Monção durante as guerras fernandinas, no séc. XIV. Falou-se do futuro, nessa tarde que reuniu mulheres e homens não só de Monção, mas idos de várias partes do País e que na secular Casa Museu partilharam saberes, experiências e sobretudo, projectos, na certeza que o passado interessa estar presente na justa medida em que impulsiona para a concretização dos objectivos futuros. A Reitoria da Universidade do Minho fez-se representar através do Prof. José Viriato Capela, director da Casa Museu de Monção, o Município de Monção na pessoa do seu vice-presidente, a Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante, através das presenças das Dras. Manuela Aguiar, Rita Gomes e Arcelina Santiago e a Universidade do Porto na pessoa da professora Maria Luísa Malato. Um agradecimento particular dirigido ao senhor Alcaide de Salvaterra do Minho, que se fez representar pelo Dr. E que com o seu apoio titulou como internacional e transfronteiriça a referida sessão que contou com o apoio da Quinta de Santiago e do jornal As Artes entre Letras. Há que felicitar também todos os que se envolveram directa ou indirectamente para dar luz ao evento, destacando e agradecendo a presença dos artistas que integraram a exposição colectiva de pintura e de escultura, comissariada pela Drª Arcelina Santiago, a abelha mestra e mediadora daquela inesquecível tarde. Todas as intervenções foram dominadas pela preocupação com a igualdade de género, através da Cultura e da Educação sendo de salientar o trabalho pedagógico e contínuo do município de Monção no combate à violência doméstica, já com resultados positivos. O Dr Paulo ESteves, um estudioso da matéria, mostrou a firme vontade de continuar este trabalho na certeza de que o ser humano afirma-se pelo que decide e que qualquer fatalismo é sempre contraditório à humanidade Neste sentido e sob o lema “Nenhuma pessoa é estrangeira numa sociedade que vive os direitos humanos”, nasceu a Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante que já conta com mais der duas décadas a desempenhar papel importante e transversal entre a Cultura e a Cidadania, ajudando a manter vivas as tradições e língua lusa com um trabalho exaustivo junto das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, dando destaque e revalorizando o desempenho da mulher nesse sentido. “Expressões de Cidadania no Feminino” foi o tema do colóquio que apenas figura no passado do calendário, porque há um movimento para que este tema mantenha vivo o interesse de outros debates também no mundo de todas as expressões no masculino. A Profª Maria Luísa Malato, da Faculdade de Letras da UPorto levou a debate a figura de Catarina de Lencastre, 1ª Viscondessa de Balsemão, mulher que marcou literariamente o século XVIII e XIX e que foi alvo da sua tese de doutoramento. Apesar de estar esquecida no tempo, ou até talvez por isso mesmo… continua a levantar a questão, entre outras, da existência de uma escrita no feminino. Numa época em que só existe o que é visível, levar àquela sessão o nome de Catarina de Lencastre foi um enorme desafio a algumas modas intelectuais que teimam em manter fechadas as páginas da História escritas e protagonizadas por mulheres. É que os tempos vão mudando mas há vontades que permanecem! A Dra. Maria Manuela Aguiar, sabemos, os que temos o privilégio da sua atenção, é uma das nossas guerreiras. Deveria entender-se bem com a Deu-la-Deu… A intervenção da Dra. Maria Manuela Aguiar foi viva e recheada de episódios de vivências nos cinco continentes onde mulheres portuguesas se encontrar emigradas. Presidente da Assembleia Geral da Associação "Mulher Migrante" da qual foi uma das fundadoras, a Dra. Maria Manuela Aguiar possui um curriculum vasto e rico, sendo o denominador comum da sua viva a defesa dos direitos no que respeita a igualdade de género. Se eu tivesse que escolher uma ”dama de ferro” portuguesa, nesta nossa contemporaneidade, seria sem dúvida a Dra. Manuela Aguiar que se assume feminista sem ocultar o feminino e que se entrega à Diáspora em trabalho missionário! Professora Arcelina Santiago, Mestre em Ciências Sociais Políticas e Jurídicas pela Universidade de Aveiro, está ligada a Monção por laços familiares e a um projecto de vinho Alvarinho e a sua intervenção foi dominada presença literária e histórica de Ana Harthely que fez da sua viva um cruzamento entre história, diáspora, arte e literatura. Detentora de palavra viva aproveitou a ocasião para lançar o desafio da criação do projecto cultural Monção/Salvaterra do Minho - Euro Cidade. Pois que é preciso que este projecto saia do papel… O Prof. José Viriato Capela foi o último palestrante. A presidir desde 2002 à Casa Museu de Monção - que é um braço cultural da Universidade do Minho, integra o corpo docente daquela Universidade bem como o Centro de Investigação transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, desta Instituição de Ensino Superior. Foi o nosso anfitrião numa Casa que é o exemplo vivo de como uma Universidade pode e deve estar ligada ao meio. Intervenção que recolocou no debate a importância da descentralização deste tipo de iniciativas, pontuada pelo relato de factos históricos que catalogam Monção como uma terra de História, de vinho, de tradição e quer também afirmar-se pela Cultura num esforço conjunto entre a Academia, o Município e o desafio transfronteiriço. Seguiu-se a inauguração da exposição A Arte no Feminino integrada por 6 mulheres: Luísa Prior, as Filomenas Fonseca e Bilber, Maria André, Teresa Heitor, Lena Álvares, e um homem o artista monçanense Ricardo de Campos – não, este artista não foi a cereja no topo do bolo – foi o homem/pintor convidado porque o feminino também se cumpre no masculino! Passado que está este tempo sobre essa tarde de fim de verão em Monção, na Casa Museu, mantenho vivas as cores das telas, as formas das esculturas, as palavras dos intervenientes, a frescura e o gosto do Alvarinho da Quinta de Santiago e sobretudo o sorriso de todos e aquela sensação indescritível de que durante umas horas o mundo avançou e com ele o nosso País e a nossa Gente! Havemos de voltar ao lugar onde fomos felizes! - Colóquio "Diálogos sobre Cultura, Cidadania e Género, Sorbonne Nouvelle O PAPEL DOS MEDIA PORTUGUESES NA EMERGÊNCIA DE UMA DIÁSPORA LUSÓFONA José Arantes Diretor da RTP África No dia 27 de junho de 1214, o rei Afonso II escreveu um texto muito curioso: “Eu rei Afonso pela gracia de Deus Rei de Portugal, sendo sano e saluo, (…) fiz mia mãda per que depois mia morte meus filios e meu reino e meus vassalos e todas aquelas cousas que Deus mi deu en poder sten en paz e folgãncia”. O testamento do rei Afonso, já lá vão oitocentos anos, constitui o primeiro documento escrito nessa língua singular que tomaria o nome de “Português” e passaria a representar o início da grande aventura da língua portuguesa. Uma aventura, portanto, de oito séculos, vivida através de mares tenebrosos, florestas tropicais, praias exóticas, até ao extremo oriente ou à ponta sul das Américas. Claro que no séc. XIII a língua já era falada pelo povo mas teria pouco relevo se o rei Afonso não a tivesse utilizado num documento oficial de tamanha importância. Confinado a um pequeno espaço na ponta ocidental da Europa, o português assim permaneceu por dois séculos até à grandiosa epopeia das navegações portuguesas do séc. XV. Com os Descobrimentos, levámos a bordo das naus portuguesas a nossa maneira particular de ver o mundo, a nossa língua. O português navega para sul, ganha expressões regionais, torna-se língua de comércio e de tráfego, lança as bases da sua futura internacionalização. Torna-se também a língua de outros povos. Por quatro séculos a língua portuguesa fica entregue ao acaso e à necessidade. O séc. XX, já para lá do seu meio, apenas conhece dois países de língua portuguesa: Portugal e Brasil. Sem concertação de políticas ou de interesses, muitas vezes sem democracia nem liberdade de expressão, nenhum dos dois foi capaz de articular uma política da língua ou uma estratégia para a sua projeção. Com a democratização portuguesa em 1974, inicia-se a chamada “3ª Vaga da Democratização” que se estenderá ao Brasil. Em África surgem cinco novos países de língua portuguesa. Em conjunto, este grupo de sete países criará, 22 anos depois, a Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa – CPLP. A CPLP é uma comunidade de estados muito particular. Todos os seus membros são países marítimos, têm problemas de desenvolvimento assimétrico, não têm fronteiras partilhadas e, com exceção de Portugal, são ricos em petróleo e hidrocarbonetos. Hoje a CPLP é composta por nove membros efetivos, estando pendentes dois pedidos de adesão, seis membros associados e treze pedidos para membros observadores. Esta espantosa evolução é muito bem ilustrada pela importância do português no mundo: é falado por 250 milhões de pessoas, é a primeira língua no hemisfério sul e a terceira na internet, é língua oficial em vinte e seis organizações internacionais. Esta projeção não seria possível, ou pelo menos não teria a dimensão que tem, sem todos aqueles que, espalhados pelo mundo, falam o português. As comunidades lusófonas, criadas ao longo de séculos com sucessivos movimentos migratórios, são o protagonista central desta aventura da língua, iniciada há oitocentos anos. Devemos à emigração muita da importância da nossa língua. Assistimos hoje a um novo movimento migratório, traduzido na saída do país de jovens qualificados, em busca de realização pessoal e profissional. Podemos ver neste fenómeno algo de negativo, um movimento que empobrece o país, privando-o de parte da sua gente mais jovem e mais qualificada. É sem dúvida verdade, embora não toda a verdade. Quem hoje deixa Portugal, munido de boas qualificações e de altos graus académicos, ocupa muitas vezes lugares de destaque em importantes empresas, universidades e várias organizações internacionais. Todos estes portugueses constituem um ativo importantíssimo para o nosso país. Em conjunto formam uma rede de contactos, influencias e conhecimento que pode ser posta ao serviço do interesse nacional. Assistimos hoje à constituição de novas comunidades portuguesas, mais pequenas, mais dispersas e mais atomizadas mas muito influentes e prestigiadas. O grande objetivo terá de ser o de pôr toda essa gente a colaborar em rede e de lhe dar unidade e coerência. É um trabalho diplomático e consular mas também das associações portuguesas e de toda a sociedade civil. Portugal dispõe, neste início de séc. XXI, de três ativos importantes: a nova plataforma continental e as possibilidades de exploração marinha que ela oferece, a relação privilegiada com África e o seu potencial económico e cultural e as Comunidades Portuguesas e o seu peso nas relações internacionais. Estes ativos, sobretudo os dois últimos, assentam na língua portuguesa e na capacidade de orientar politicamente e de forma coerente o “bloco da lusofonia”. Criar um “sentimento de pertença”, comum a todos quantos no mundo falam o português, é um grande desafio posto aos países lusófonos. Esse desafio só poderá ser enfrentado com êxito se incorporar uma vertente sólida de comunicação social; ela é o instrumento mais poderoso na criação desse “sentimento de pertença” e na construção de uma plataforma cultural onde se revejam todos quantos falam o português. Na sua diversidade, é esse o papel que podem assumir a televisões, rádios e jornais, nacionais e comunitários. As Comunidades sempre evoluíram mais rapidamente do que os órgãos de comunicação social. Por isso cabe aos jornalistas e toda a indústria de media encontrar formas de suprimir esse atraso, encontrar novas formas de intervenção, acertando o passo pela dinâmica das comunidades, num esforço de modernização e de maior relevância junto dos seus públicos. Os media portugueses terão de ser o elemento central na criação de um “lóbi português” à escala mundial, o que pressupõe também um entendimento estratégico entre os nove Estados da CPLP. Só assim poderemos dar continuidade a essa aventura, velha de oito séculos, que é a Língua Portuguesa. ccc ORIGENS E EVOLUÇÃO DO 1º CONSELHO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS (1980-1987) O seu papel na génese das políticas de género na emigração: o 1º Encontro das Mulheres Portuguesas (1985) e os "Encontros para a Cidadania" Maria Manuela Aguiar I - O PARADIGMA FRANCÊS Na primeira metade do século XX, dois Conselhos de Emigrantes foram criados na Europa, como instrumentos de representação dos cidadãos residentes no estrangeiro, e ambos estão em funções no século XXI - o suíço (1916) e o francês (1948). Um e outro são oriundos de grandes movimentos transnacionais, configurando, porém dois modelos distintos. A "Organização dos Suíços no Estrangeiro", suporte do conselho e dos congressos anuais dos suíços expatriados, mantém a sua natureza privada como porta-voz dos interesses dos expatriados junto do governo, ainda que beneficie de subsídios para atividades nos domínios social e cultural (ensino, campos de férias para jovens ), e na área da informação. (AGUIAR e GUIRADO, 1999:16). O Conselho Superior dos Franceses do Estrangeiro é um órgão instituído pelo Estado, muito embora tenha surgido como resposta a uma reivindicação da "Union des Français de l' Étranger" (UFE), que, praticamente desde o seu início, em 1927, apelou a uma institucionalização da colaboração com o governo, colocando o enfoque na igualdade de direitos entre residentes e expatriados, e no direito de voto nas eleições nacionais. O início de novecentos foi um tempo de grande expansão de movimentos associativos dos expatriados europeus, que formaram extensas redes internacionais, com as suas cúpulas federativas (M Böhm, 1993), a coincidir com o aumento de vagas migratórias da Europa para as Américas, favorecido pelo progresso tecnológico e pela diminuição dos custos das viagens transoceânicas. Esta é uma realidade que nós próprios conhecemos bem, com um êxodo para o Brasil em números jamais vistos, sem, contudo, acompanhar a tendência para a internacionalização do associativismo, que era fortíssimo a nível local, mas avesso a ultrapassar as fronteiras de uma cidade, ou, quando muito, de um país. (1) (2). Nessa época, só em França, no discurso da UFE, aflorou a clara consciência da situação de discriminação dos expatriados no plano político, com a reclamação da igualdade de exercício de direitos da cidadania face ao país de origem. A pertinência dessa pretensão era evidente, reconhecidos os laços de pertença culturais, económicos, afetivos, que guardavam com a pátria, mas a força do dogma territorialista - a soberania exercida dentro de fronteiras - assim como a preocupação de não abrir precedentes que obrigassem a dar reciprocidade a estrangeiros, num país de imigração, mais do que de emigração, levou sucessivos governos a rejeitarem uma proposta tão ousada. Como se explica o pioneirismo do Conselho francês? Em parte, certamente, pela história da República, de uma tradição de representação das antigas colónias pela via de Conselhos Superiores, mas também pela visão e cultura política do fundador e principal dirigente da UFE, Gabriel Wernlé, num tempo em que a igualdade de direitos de cidadania dos emigrantes era uma utopia. Teve, naturalmente, a invencível oposição de sucessivos Governos e da Diplomacia francesa, mas soube contornar os obstáculos e encontrar uma solução de compromisso: avançou com a fórmula inovadora da intervenção dos expatriados no espaço público através de um órgão de consulta governamental, que, após duas décadas de porfiados esforços, viria a ser criado em 1948 - o "Conseil Supérieur des Français de l' Étranger" (CSFE). (4) A sua constituição fora precedida pela presença de um pequeno núcleo emigrantes franceses no Conselho Consultivo da Resistência Francesa, que funcionou como forum da França livre, durante a 2ª Guerra mundial, sob a égide do General De Gaulle. Na sua 1ª reunião, em 1943, na Argélia, reuniu 83 homens, 5 representantes dos expatriados, e apenas uma mulher, Marthe Simard, membro da resistência no Canadá. (GARRIAUD-MAYLAND, 2008: 19) Essa primeira ligação entre expatriados em razão da guerra e emigrantes, em sentido estrito foi continuada no CSFE, onde os antigos combatentes, enquanto tal, tiveram, desde a primeira hora, assento entre os “membros de direito”, juntamente com representantes da UFE, das Câmaras do Comércio e dos professores, a par dos 45 “membros eleitos” pelas associações e dos 5 “membros nomeados” (pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros e presidente do órgão consultivo). Entre as mais importantes prerrogativas do "Conselho" estava - como está atualmente na Assembleia dos Franceses do Estrangeiro - a de escolher os senadores dos franceses residentes fora do país, processo em que só intervêm os membros eleitos. O voto dos expatriados para a Assembleia Nacional tardaria a ser reconhecido, pelo que o Conselho, como um dos colégios eleitorais do Senado, foi a sua primeira instância representativa. E depois que os direitos de participação política foram sendo atribuídos, não perdeu importância, enquanto órgão de representação específica dos emigrantes. Foi, aliás, nesta veste que influenciou todos os organismos públicos criados, na década de 80, nos países europeus de emigração tradicional– Portugal, Itália e Espanha. (AGUIAR, 2003: 9). O CSFE reúne em plenário anualmente (funcionando entre as sessões anuais, com regularidade, a Comissão Permanente) e aprova relatórios, resoluções, dá pareceres, faz interpelações sobre matérias que interessem aos residentes no estrangeiro, nomeadamente, direitos políticos, nacionalidade, ensino, pensões, assuntos económicos. (5) Em 1982, passou a ser eleito por sufrágio direto e universal (o modo de eleição que foi adotado pelos homólogos italiano e espanhol, que são posteriores a essa data, e pelo CCP, a partir do seu ressurgimento, em 1996). Em 2003, foi “constitucionalizado” (no art. 39 da Constituição) e, em 2004, alterou a sua designação para "Assemblée des Français de L' Étranger" (Assembleia dos Franceses do Estrangeiro). Na última das numerosas reformas que marcam o percuso do CSFE e da AFE, na sequência da instituição, por sufrágio direto dos "Conselhos Consulares" (Lei de 22 de julho de 2013), a AFE passou a ser eleita pelos conselheiros consulares, por sufrágio universal indireto, e integra os deputados eleitos pelos franceses residentes no estrangeiro (cerca de 2 milhões) e os 12 senadores, eleitos de entre os seus próprios membros. Cada um dos Conselhos existentes na Europa tem, evidentemente, a sua própria história, com soluções e modos de atuação concreta muito diversos. Apesar de prosseguirem finalidades em larga medida análogas, nunca procuraram refletir, em conjunto, sobre os seus êxitos e dificuldades, como meio de aperfeiçoar os seus poderes e sua "praxis". (6) A partilha de experiências, se vier a ser tentada, poderá ser especialmente proveitosa para Portugal, pois o CCP foi, de todos os congéneres europeus, o que teve vida mais acidentada (AGUIAR, 2008: 259). A visão comparativa ajudará, certamente, a compreender algumas das razões do sua maior instabilidade e a procurar formas de o solidificar como instituição - por exemplo, integrando - o na arquitetura da Constituição, tal como aconteceu em França em 2003, ou indo ainda mais longe, configurando-o como órgão de Estado, fora da esfera de competência do governo. Estas soluções novas foram, em Portugal, aventadas em duas audições parlamentares, promovidas pela Subcomissão das Comunidades Portuguesas sobre "mecanismos específicos de representação de emigrantes", em 2003 e 2004 (BARBOSA DE MELO, 2004: 33). Sendo estes mecanismos instrumentos de uma cultura de diálogo, de aproximação a pessoas e instituições geograficamente mais distantes dos centros de poder, expressão da democracia participativa, não pode deixar de se colocar em relação a eles a questão da igualdade de género - em França já alcançada em termos mais equilibrados do que na Assembleia Nacional e no Senado, em Portugal, mantendo, apesar da aplicação obrigatóriada Lei da Paridade, um perfil predominantemente masculino - longe do patamar atingido na Assembeia da República, quer´do ponto de vista quantitativo, quer no acesso às instâncias de coordenação. e à presidência de comissões II - O CONSELHO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS (CCP) - Conselho das Comunidades ou Conselho de Emigrantes? Nas eleições intercalares de 1979, o programa eleitoral do governo da AD previa a criação de um "Conselho das Comunidades Portuguesas no Mundo", onde estas se poderão fazer representar". (7) O único paradigma que se oferecia ao legislador era o Conselho francês, apesar da diversidade das realidades a que procuravam ajustar-se. No nosso caso, sem qualquer âncora no passado colonial ou na situação dos antigos combatentes, por um lado, e, por outro, num quadro constitucional que consagrava já a representação dos emigrantes na Assembleia da República, as sem o suporte de um forte associativismo a nível internacional. (8) Em França, como dissemos, a UFE foi o grande paladino do Conselho e o parceiro de primeira hora. Em Portugal era o Governo que queria promover a agregação numa "casa comum" do movimento associativo desprovido de qualquer rede e cúpula transnacional. Uma "casa comum" da lusofonia e da lusofilia e não apenas da emigração. A "União das Comunidades de Cultura Portuguesa", que poderia ter sido, como a UFE o interlocutor privilegiado, já não existia. Fora criada em 1964 e tivera vida breve. (9) Havia que adaptar figurino alheio a realidades próprias e trabalhar contra o tempo. O horizonte do governo, oriundo de eleições intercalares era curto, tudo era urgente e o Conselho ainda mais... Foi constituído, no começo de janeiro, no gabinete da Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas (a quem estava cometida a tarefa), um grupo de trabalho, coordenado pela Dr.ª Fernanda Agria. (10). Cerca de um mês depois, ouvidos especialistas e funcionários da SEECP,diplomatas e deputados da emigração, o anteprojeto estava concluído e foi enviado a Conselho de Ministros. Depois da tramitação para parecer dos diversos departamentos ministeriais,foi aprovado, com pequena emendas, a 1 de abril. A falta de ampla audição das comunidades seria suprida, através da consulta posterior aos eleitos, a quem caberia, na primeira reunião do CCP, repensar as suas grandes linhas e apresentar sugestões de alteração. O próprio governo tomou a decisão de destinar à revisão uma das seis secções previstas. Essa foi a secção, onde se verificaram as maiores polémicas e afrontamentos, e onde se forjou, em compromissos e consensos, a vontade comum de existir, que verdadeiramente fez do CCP uma realidade viva. Tal como em França no "Conséil Superieur", no CCP coexistiam três categorias de participantes - membros eleitos (os representantes das comunidades do estrangeiro), membros natos (representantes dos governos, nacional e regionais e do parlamento) e nomeados (representantes dos parceiros sociais, peritos, funcionários de serviços de apoio). Mais do que pôr os conselheiros frente a frente, numa sala de reuniões fechada, a falarem entre si e com Ministros ou Secretários de Estado do governo, pretendia-se assegurar o contacto com a sociedade civil, com responsáveis da administração pública ecom os "media" nacionais. Essa foi a razão, ainda hoje largamente incompreendida, que determinou a heterogeneidade da composição do órgão consultivo e o facto de todos poderem participar nas sessões de trabalhos, As assessorias (dos diversos departamentos ministeriais) viriam a dar, como se esperava um contributo facilitador das recomendações e pareceres dos eleitos. As recomendações das primeiras reuniões (1981-1985), publicadas pelo Centro de Estudos da SECP, assim como as atas das diversas secções da 1ª reunião, revelam total predominância das intervenções dos Conselheiros eleitos, face aos demais, que raramente intervieram e, quando o fizeram foi, quase sempre, para prestar esclarecimentos. Os conselheiros manifestaram o propósito de reduzir o CCP ao núcleo dos eleitos, mas logo abriam, pela via de convites seus, as portas dos CCP a todas as categorias de participantes previstos na lei - uma forma de reconhecimento das vantagens de dialogarem com uma pluralidade de participantes em forum alargado. - O nascimento da Instituição. Se foi célere a elaboração da legislação, em 1980, durante o VI Governo Constitucional, não o foi menos, em 1981, no VII Governo Constitucional, o processo de organização das primeiras eleições, de acordo com as normas transitórias previstas no DL 373/80 de 12 de setembro: por convocatória pelas embaixadas ou consulados dos delegados das associações legalmente constituídas na sua área, para a eleição de um determinado número de representantes, que decorria da aplicação dos critérios legais. Futuramente, as "Comissões de País" reuniriam, para o efeito, por direito próprio, como colégios eleitorais do Conselho. A lei não definia o seu modo de organização e funcionamento, a nível de país ou área consular: o número de efetivos, o programa, as atividades,(e tudo o mais), a nível local, era decidido pelos respetivos membros, ( todos eleitos de entre as associações legalmente constituídas), que se inscrevessem na "Comissão". Estabelecia-se, assim, uma completa descentralização, julgada imprescindível face a realidades tão díspares, como são as das comunidades dos cinco continentes. Onde existisse já uma federação - caso do Brasil - podiam funcionar quase só como colégio eleitoral. Em comunidades mais divididas, esperava-se que pudessem contribuir para reforçar a cooperação inter associativa e a sua expansão. Mas, nem o governo nem os consulados interferiam. O VII Governo Constitucional tomou posse em Janeiro de 1981 e a reunião realizou-se, decorridos 3 meses, em abril, no salão nobre do Palácio Foz. A abrir os trabalhos, a Secretária Geral, Fernanda Agria lembrava que "o próprio diploma criador do Conselho está, de certa maneira, e ser testado na realidade da prática". Na qualidade de Presidente do Conselho das Comunidades, eu própria salientei o carater histórico daquele momento: "Estamos a participar no primeiro ato da vida de uma nova instituição - o CCP - que, estou certa, virá a desempenhar, como todos esperamos e desejamos, durante muito tempo e ao longo de muitas gerações, um papel de relevo, meritório e eficaz, no conjunto das instituições nacionais" [...]: "Não temos, infelizmente, em Portugal, uma tradição muito rica neste género de instituições [...] o CCP, no seu processo de funcionamento, terá, pois, menos uma tradição a seguir do que uma tradição a criar; terá uma forma própria a assumir e não um modelo rígido a limitá-lo". (AGUIAR, 1986:91) Quando a Secretária-geral se preparava para dar sequência à ordem do dia do plenário, ouviu-se a primeira voz contestatária, prenúncio da partidarização, que viria da Europa e, sobretudo de Paris, e daria da instituição uma imagem pública de conflitualidade, só parcialmente verdadeira. O incidente, em si, não prejudicou o andamento dos trabalhos, mas foi ampliado em toda a imprensa afeta ou próxima do PCP, sobretudo em "O Diário" (11). Foi apenas a primeira de muitas vezes em que a estratégia de confronto e de ataque político ao governo foi ensaida, por parte daquela pequena minoria. Aconteceu, porém, sempre, à margem da procura de soluções para problemas concretos da emigração, onde o consenso era, naturalmente, desejado por todos. Este duplo aproveitamento do CCP, imposto por alguns aos restantes conselheiros, colocou o CCP nas antípodas do seu modelo francês, caraterizado, desde o início, pela boa vontade geral de alcançar compromissos - modo de ser e de estar que não seria alterado, nem mesmo pela mutação, em 1982, para um novo paradigma, o de sufrágio universal, com intervenção de partidos políticos na contenda eleitoral. - CCP - Plenário e Secções O programa delineado para a primeira reunião mundial previa a alternância de plenários e de debates em seis secções - Educação e Ensino, Segurança Social, Regresso e Reinserção, Comunicação Social, Revisão do DL 373/80 e Secção Especial (temas livres). O plenário do Conselho foi o grande palco mediático da confrontação e as secções, como, em regra, acontece na Assembleia da República, com as Comissões Parlamentares, converteram-se no espaço privilegiado de análise de propostas e de compromissos, quase sempre conseguidos, como de constata nas 102 recomendações aprovadas pelo coletivo. O espírito de grupo nasceu, verdadeiramente, entre os conselheiros, assessores (constantemente elogiados pelo seu competente apoio técnico), dentro do círculo que constituiu cada secção, incluindo aquela que mais diretamente pensava o futuro do CCP. As recomendações dão uma imagem objetiva da construção do órgão como coletivo, através de um impressionante conjunto de propostas- desfecho que, depois de um começo fraturante, não parecia, de modo algum, garantido. Uma parte das recomendações são programáticas, algumas delas mera enunciação de matérias, testemunho de preocupações globais expectáveis numa reunião sem passado, sem experiência - mas outras houve que apontavam para já soluções precisas. e inovadoras, que vieram a inspirar políticas com concretização no imediato ou a prazo, designadamente as seguintes: criação de Institutos de Língua Portuguesa; integração do português nos "curricula" escolares dos países de imigração; recrutamento, preferencialmente, de professores oriundos das comunidades; organização de cursos de férias e intercâmbios, cursos de formação para professores de português no estrangeiro, alargamento do regime de inscrição voluntária de emigrantes na segurança social portuguesa, (instituído em data recente, pelo Decreto Regulamentar 7/80 de 3 de abril); aumento das isenções alfandegárias e fiscais (que começaram a ser regulamentadas, logo depois da revolução de 1974, para incentivar os regressos e atrair remessas); realização de programas de apoio a rádios das comunidades; distribuição generalizada dos noticiários da ANOP (que a SEECP passaria a assegurar, para os terminais de telex dos próprios media ou dos consulados); aproveitamento dos programas de televisão, produzidos, para os emigrantes de França e Alemanha (desde 74/75), para canais ou emissões de televisão das comunidades em outros continentes (o que seria dificilmente negociado com a RTP...); o porte pago; a realização de um Encontro Mundial dos Órgãos de Comunicação Social das Comunidades, (logo convocado para o ano seguinte); exigência da dupla cidadania (acolhida na ordem jurídica poucos meses depois); voto na eleição presidencial (alcançado em 1997); alargamento do número de deputados da emigração (ainda não aceite atualmente). Reforço dos serviços da SEECP, com aumento de delegações no estrangeiro e abertura de balcões de apoio aos emigrantes nos aeroportos (prontamente conseguido).~ - A Secção para "a revisão do DL 373/80 de 12 de setembro" A Secção, que foi a verdadeira “alma mater” da instituição nascente, considerou “aprovadas todas as disposições constantes do DL 373/ 80, que não colidam com a recomendação infra”. Nessa recomendação (nº 99), as principais inovações apontam para: a composição do órgão apenas por membros eleitos; escolha do presidente de entre emigrantes ou ex-emigrantes residentes em Portugal; a nomeação do Secretário-Geral pelo conselheiro eleito presidente do CCP, embora continuando a ser apoiado pelos serviços da SEECP; a eleição do CCP no círculo das associações, (com a possibilidade de ser complementada pelo sufrágio direto de candidatos fora das associações). . As traves mestras e as finalidades principais da legislação apresentada ao exame crítico dos conselheiros não eram postas em causa, "maxime" as prioridades do legislador de 1980 – a “salvaguarda da identidade da cultura lusíada no mundo” e a “promoção do movimento associativo, com respeito pela sua liberdade estatutária e identidade própria”. A recomendação da eleição do presidente do CCP entre os eleitos (que não levantara, note-se, oposição do Governo), foi alterada em 1983, com a aceitação da norma em vigor (presidência pelo MNE, ou pelo SECP). – Um CCP em construção Avanços e retrocessos, controvérsias e roturas assinalaram a trajetória do CCP, num ciclo de sete anos. No VIII Governo Constitucional, em 1982, o novo Secretário de Estado e Presidente do CCP decidiu não convocar o plenário, invocando a necessidade de rever previamente a lei, de acordo com as recomendações de 1981. O funcionamento do Conselho foi retomado no IX Governo Constitucional, em 1983, com o regresso ao cargo da primeira Presidente e teve o seu período de maior estabilidade até 1987. Voltou a ser desconvocado a partir de 1988, durante o XI Governo Constitucional, até ser extinto em 1991. Na base da pirâmide, a nível das áreas consulares, as “Comissões de País”, mantiveram sempre um regular funcionamento, graças à sua completa independência da convocatória do governo ou dos consulados. (13) Ficou, assim, por demais, evidenciada a dependência do funcionamento do CCP mundial da vontade dos titulares da pasta da emigração, ou seja, a sua fragilidade institucional - consequência da falta de tradição do órgão e, porventura, também da falta de tradição democrática de um país saído de cinco décadas de ditadura. Ao radicalismo político de um setor minoritário, acabou por responder o poder político, adotando uma fórmula que punha em causa a autonomia de todo o órgão, em vez de lidar com essa minoria, como ficou provado que era possível, durante a sua fase mais estável. Durante esse período é de destacar: - A realização da 2ª reunião plenária (1983), que decorreu no Porto e em Aveiro, e aprovou, entre outras, duas importantes recomendações o enquadramento dos órgãos de comunicação social numa " Secção Permanente", e a criação de quatro Conselhos Regionais (África, América do Norte, América do Sul e Europa). Contrariando a orientação do 1ªreunião, os conselheiros aprovaram a continuidade da presidência do órgão pelo MNE (ou pelo SEECP, por delegação de competências). - A "regionalização" do CCP foi consagrada, pelo DL 367 /84 de 25 de novembro, nos termos do qual o Conselho passava a reunir no País, por secções, e, alternadamente, nas comunidades, por regiões. O Conselho da América do Norte teve lugar nos EUA, em Danbury, Connecticut, o da América do Sul e África em Fortaleza, Brasil, no último trimestre de 1984. O da Europa, previsto para La Rochette, foi adiado "sine die", por oposição dos conselheiros de França (13). Em 1984 foi ainda constituída, por proposta dos conselheiros, uma "Comissão Permanente de Peritos", destinada a garantir o apoio técnico constante e maior operacionalidade aos trabalhos do Conselho. A Comissão, nomeada livremente pela presidente, era formada por 3 mulheres e 3 homens. - O "1º Encontro de Mulheres Portuguesas no Associativismo e no Jornalismo" , convocado nos termos de uma recomendação aprovada na Reunião Regional da América do Norte em Danbury, no ano anterior. - A constituição de uma "Comissão Permanente" integrando dois conselheiros de cada uma das quatro regiões, e, ainda, o representante da Austrália, em cumprimento de uma recomendação da 3ª reunião plenária. que ocorreu em Porto Santo e no Funchal, em 1985. Na sessão inaugural, em Porto Santo, foi anfitrião o Presidente do Governo Regional, a comprovar a boa cooperação entre governo da República e governos Regionais, no domínio da emigração, com reflexos num órgão de consulta oficial, onde partilhavam, harmonicamente, o papel de interlocução. As Regiões Autónomas tinham já então as suas instâncias próprias de representação ou de reunião das suas comunidades (Rocha- Trindade, 2014: 19), e, embora o governo da República nelas não tivesse assento, a SECP foi sempre convidada e esteve presente nos seus trabalhos. - Em 1986, o "Conselho por Regiões" repartiu-se entre Toronto, Canadá (América do Norte), Maringá, Brasil (América do Sul) e Estugarda, Alemanha (Europa). Na Reunião Regional da América do Norte, esteve presente o Presidente do Governo Regional dos Açores. Em 1987, secundando pareceres do Conselho, foi criada uma "comissão interministerial", (com competência específica para preparar a próxima reunião plenária, agendada para o último trimestre do ano, assim como para dar, depois, sequência às recomendações do CCP - um sinal da sua crescente importância política), e constituídas várias “conferências” junto do CCP - “Ensino”, “Assuntos dos Jovens”, e “Investimentos e Assuntos Económicos e Financeiro”, e "Promoção da Participação da Mulher". Esta última não expressamente prevista pelos Conselheiros, era uma prioridade governamental, o gritante desiquilíbrio de género. Pretendia-se, por este meio, valorizar a participação horizontal no órgão consultivo, e reforçar fortemente a audição de mulheres e de jovens . A queda do X Governo, no verão de 1987, veio colocar um ponto final no que parecia o estádio da definitiva afirmação do CCP. Durante a 4ª reunião plenária realizada no Algarve (Albufeira) todos pressentiam que seria a última, como realmente foi. Todavia, em alguns países, Brasil, França, Argentina, os Conselhos das Comunidades (antigas Comissões) continuaram ativos como federações associativas, mantendo uma dinâmica que vinha de trás, ainda que circunscrita à esfera privada. Em 1996, após quase uma década em suspensão, o CCP ressurgiu, eleito por sufrágio universal, desligado da memória da sua primeira vida e das suas origens associativas, embora prossiga os mesmos fins e continue a emergir, essencialmente, do viveiro de lideranças, que são as grandes instituições das comunidades portuguesas.(14) III - DESIGUALDADE DE GÉNERO - UMA CONSTANTE NO CCP Não havia mulheres entre os membros eleitos, os observadores da Comunicação Social, os deputados, os representantes das Regiões Autónomas, entre os representantes dos parceiros sociais (nomeados por indicação das respetivas corporações), mas o Conselho português foi, historicamente, o primeiro a ser presidido por uma mulher, a Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas. Por sua nomeação, algumas funcionárias públicas, participaram na reunião de 1981, como peritas - além da Secretária-geral, Fernanda Agria, as moderadoras e relatoras Maria Beatriz Rocha Trindade (Secção da Educação e Ensino e Secção Especial - 2ª geração e identidade cultural) e Rita Gomes (Secção Regresso e Reinserção) e as que exerceram a assessoria das secções, Alexandra Lencastre da Rocha (Secção Especial), Maria Helena Lúcio (Segurança Social e Secção Especial) e Maria Manuela Machado Silva (Ensino e Educação). Em 1983, as primeiras mulheres Conselheiras, Maria Alice Ribeiro, do Canadá, e Custódia Domingues, de França, representavam, ambas, os meios de comunicação social. Maria Alice Ribeiro, diretora do mais antigo jornal português de Toronto ( "O Correio Português"), foi a proponente da convocatória de um congresso mundial de mulheres migrantes . O "1º Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas no Associativismo e no Jornalismo" realizou-se em junho de 1985, tal como o próprio CCP, de onde dimanava, reuniu as componentes "associativismo " e "media", chamando a Portugal 35 mulheres com largo curriculum nesses dois domínios. À semelhança dos plenários do CCP, o "Encontro" foi um espaço democrático de debate, de audição de representantes da sociedade civil (mulheres) pelo governo, de procura de soluções em conjunto. Foi, obviamente, a forma possível de dar à metade feminina das comunidades a voz que lhe faltava no órgão oficial de consulta. Significou, por isso, o primeira passo nas políticas públicas para a emigração, com uma componente de género. Nesse anos de 1985, como referimos, a paridade foi assegurada na "Comissão Permanente de Peritos".. A preocupação face à desigualdade em razão do sexo, foi visível, na esfera de decisão do governo ao longo do percurso do 1º CCP, em tudo o que não interferisse na genuinidades dos processos eleitorais, Mas,sendo então impraticável o sistema de quotas, incidiu, de início, ao seu suporte técnico e administrativo, e evoluiu para formas de consulta paralela - no encontro mundial de 1985, na conferência instituida em 1987, que não chegou a realixzar-se.. . E não teve, nunca, eco entre os Conselheiros - homens, numa instituição, onde apenas uma mulher, por uma vez, fez toda a diferença. Comprova-o a ausência do feminino, também, no que respeita às recomendações - as especificidades das migrações de mulheres são praticamente ignoradas. Entre 1981 e 1985, apenas uma se refere diretamente às mulheres, usando a palavra “mulher” e para manifestar a preocupação pelo facto de, na Austrália, terem, em certos casos, melhores condições de trabalho do que os homens, facto que poderia levar a conflitos familiares (recomendação 35). Podem, é certo, considerar-se como dirigidas especialmente às mulheres, embora sempre designadas como “cônjuge”, algumas, poucas, recomendações aprovadas, em matéria de reagrupamento familiar. Foi, pois, através de uma só proposta da Conselheira Alice Ribeiro, que o Conselho fica ligado ao início das políticas de género, em Portugal, com o encontro mundial de mulheres portuguesas, em 1985. A Conferência para a Promoção da Participação das Mulheres, que lhe dava continuidade, no âmbito do funcionamento do CCP, teria feito história em direito comparado, antecipandoz, em 20 anos, as medidas tomadas pelo seu homólogode francês em direção à paridade. A Lei da Paridade viria a ser aplicada aos respetivos órgãos consultivos de emigrantes, nos dois países, em 2007. Com uma diferença a iniciativa para a adoção das regras para a promoção da igualdade em França veio de dentro do próprio órgão, por proposta dos senadores dos franceses do estrangeiro (isto é, de conselheiros da AFE), e foi secundada por uma enorme maioria dos membros da Comissão das Leis e Regulamentos da AFE (GARRIAUD- MAYLAND, 2008: 51). Em Portugal, mais uma vez, a decisão partiu do Governo... Acresce que a proporção de mulheres no CSFE já antes da aplicação da Lei da Paridade, era superior a 36%, enquanto no CCP ficámos muito àquém dessa meta, apesar da ligeira melhoria quantitativa registada nas eleições de 2007. Se o caso francês demonstra que um elevado nível de participação feminina se pode alcançar sem qualquer forma de ingerência legislativa, o caso português revela as dificuldades de atingir os objetivos de leis deste tipo, quando depara com grandes resistências de facto. (15) As causas desta realidade não estão estudadas. De entre as hipóteses que se podem aventar para a persistente desigualdade de que falámos nesta instituição, uma - sobretudo na sua atual configuração - é o desinteresse das próprias mulheres na corrida às eleições (desinteresse por terem o seu enfoque principal em questões que consideram fora das prioridades do CCP?), Outra é, porventura, a da sua marginalização num movimento associativo que conserva uma grande importância na organização de listas e no desenvolvimento de campanhas eleitorais (atualmente, o grau de participação de meulheres e homens, é, ou não, diverso no mundo do associativismo e no Conselho?). Por outro lado, podemos também perguntar se a obrigação do Estado de garantir as condições de igualdade de participação se esgota na aprovação da Lei da Paridade. Desde 2005, a SECP relançou as políticas de género, nomeadamente, através dos "Encontros para a cidadania - a igualdade entre homens e mulheres", que tiveram sequência em novos encontros mundiais de mulheres e em multiplas ações que se enquadram na designação de "congressismo". Contudo, o CCP poucas vezes esteve (se é que alguma vez esteve) no centro desses debates. Dar a esta instituição prioridade na luta pela igualdade de participação será, porventura, tão importante para as mulheres migrantes como cidadãs. como para o CCP, enquanto instituição verdadeiramente representativa da realidade das comunidades portuguesas. Notas (1) Para além da França, com a UFE, da Suiça com a "Organização dos Suiços no Estrangeiro" (da qual é oriundo o Conselho suíço) também, por exemplo, a Áustria Associação Mundial dos Austríacos no Estrangeiro,)a Bélgica ("Flamengos no Mundo" e "Union Francophone des Belges à l' Etranger"), a Alemanha ("Associação para a Cultura Alemã no Estrangeiro", fundada em Berlim, em 1881, com o nome de "Associação Geral das Escolas Alemãs"), a Espanha ("Fundação dos Espanhóis no mundo"), a Inglaterra ("Associação para os Direitos dos Ingleses no Estrangeiro"), a Itália ("Sociedade Dante Alighieri, a "União dos Italianos do Estrangeiro" e organizações regionais, como "A família Veneziana" e "A Família Milanesa"), a Polónia (com "Comunidade Polaca", criada em 1990), a Suécia (com duas associações internacionais "A Suécia no Mundo" e a "Associação Educativa das Mulheres Suecas") - organizações sobre as quais incidiu o relatório de M Böhm, aprovado na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. O relatório não menciona a "União das Comunidades de Cultura Portuguesa", talvez pelo seu carater efémero, apesar de se enquadrar nesta forma de associativismo. A "União das Comunidades de Cultura Portuguesa" foi instituída durante o 1ºCongresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, organizado pela Sociedade de Geografia, então presidida por Adriano Moreira. O 2º Congresso decorreu em Moçambique, em 1967. O 3ºCongresso, que iria realizar-se no Brasil, deparou com obstáculos levantados pelo governo de Marcelo Caetano. Foi adiado "sine die" e a "União", ainda em fase embrionária, e, por isso, sem verdadeiro enraizamento na Diáspora, foi desativada. Não era um órgão governamental, do tipo do Conselho Superior francês, não precisava de apoio oficial para existir. Contudo, num regime anti-democrático, não gozou de liberdade para continuar, porque tinha a sua sede numa instituição de Lisboa e não nas comunidades do estrangeiro, que escapavam ao controlo da ditadura. (2) Uma das explicações para a não existência de um movimento internacional da Diáspora portuguesa poderá ser o facto de uma grande proporção dos fluxos migratórios se dirigir a um só destino, o Brasil. A Federação das Associações Portuguesas e Luso Brasileiras, nunca ultrapassou as fronteiras quase continentais deste país. (3) O Prof Emygdio da Silva, no início do século, rejeitava a ideia do voto nacional dos emigrantes, e apontava já para um sucedâneo, que seria a representação dos emigrantes num órgão próprio. Um verdadeiro percursor dos Conselhos, no plano puramente teórico. (4) O papel desempenhado pela UFE na criação do Conselho explica a preponderância do associativismo na sua composição. Os candidatos às eleições deviam ser, obrigatoriamente, membros de uma associação do estrangeiro e ter, cumulativamente, a nacionalidade francesa. (5) Jöelle Garriaud - Mayland, Conselheira e Senadora pelos franceses do estrangeiro, ao historiar o percurso do CSFE, destaca o seu papel no domínio do ensino, da proteção social e pensões, na aceitação da dupla nacionalidade e do lado menos positivo, refere a pouca notoriedade de que goza, apesar da sua importância, quer dentro de França, quer também entre os expatriados (GARRIAUD-MAYLAND, 2008: 44). Este é certamente um problema com o qual se confronta, igualmente, o CCP. (6) Os Comités de Italianos no Estrangeiro foram criados, em 1985, sob a égide dos consulados, com eleições por sufrágio direto, exceto nos países onde proíbam o processo eleitoral, caso em que são nomeados. Em 1989, foi instituído o Conselho Geral dos Italianos no Estrangeiro, presidido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, com 65 membros eleitos e 29 nomeados pelo governo. Os "Conselhos de residente espanhóis", que tal como os "Comitati" italianos funcionam junto dos consulados e o "Conselho Geral da Emigração" foram instituídos em 1987. O Conselho Geral era composto por um presidente nomeado pelo Ministro do Trabalho. e por 60 membros eleitos (inicialmente, 36) e nomeados (oriundos de entidades regionais, profissionais, sindicais ou da administração pública). (AGUIAR e GUIRADO, 1999: 18) 7) O Programa Eleitoral da AD, no capítulo da Política Externa distinguia políticas para a "Emigração" (medidas de proteção aos emigrantes e seus descendentes, acento no ensino, na cidadania, nos direitos de participação política, na facilitação do regresso), e para as "Comunidades Portuguesas no Mundo", como realidade que exigia meios próprios, gestos de aproximação das comunidades da Diáspora, antes de mais a criação de um conselho representativo : "Para além dos núcleos de emigração antigos e recentes, existem espalhadas pelo mundo numerosas comunidades portuguesas ou de descendentes de portugueses cujo significado histórico, cultural e patriótico se impõe reconhecer e preservar. [...] Assim, o Governo da Aliança Democrática criará um Conselho das Comunidades Portuguesas no Mundo, onde estas se poderão fazer representar e conceder-lhes-á apoio constante e permanente." (8) Contemporânea da "União", também nascida dos Congressos de 60, é a "Academia Internacional de Cultura Portuguesa", mas de “criação governamental" (MOREIRA, 1988: 7). Os Congressos de 60 assumiam já, a meu ver, pela sua natureza civilista e fraterna, uma feição pós-colonial, acentuada pela prioridade dada ao relacionamento das diásporas lusófonas, à língua, à expansão da "fronteira cultural" e, latamente, à lusofilia. Poderão mesmo ser considerados precursores da CPLP, como os via o maior impulsionador desta comunidade, Embaixador José Aparecido de Oliveira, sobretudo se, como ele queria, se valorizar futuramente, a componente das culturas, da união dos povos e não só dos Estados. 9) Não era exigido aos conselheiros o vínculo da nacionalidade, nem sequer o de ascendência portuguesa, apenas o sentimento de pertença, que se comprovava pela participação ativa e relevante no universo do associativismo lusófilo. Tão grande abertura era uma singularidade portuguesa, da qual se aproximava apenas o a legislação italiana, ao prever a participação de italo-descendentes, cooptados pelos eleitos no meio associativo italiano.. O 2º CCP perdeu, por completo, esta perspetiva, visto que conselheiros e os eleitores são obrigatoriamente portugueses de nacionalidade. (10) Foi possível ultimar o diploma num período tão curto graças, ao apoio do MNE e Vice-primeiro Ministro Freitas do Amaral e ao trabalho "pro bono" de juristas com uma uma enorme experiência na "arte de legislar": -Fernanda Agria e Eduardo Costa, antigos colegas no Centro de Estudos do Ministério das Corporações e Segurança Social, e Luis Fontoura, colega de curso da Faculdade de Direito de Coimbra. O Deputado José Gama do CD (ex-emigrante nos EUA) e eu própria estivemos, com frequência, informalmente, sentados com eles, à volta da mesa de trabalho. Foi através de José Gama, que conheci o Prof. Adriano Moreira, a primeira das personalidades que era indispensável ouvir. Todavia, não houve maneira de dar, como queríamos, prioridade à vertente cultural (a emigração recente impôs-se, desde a primeira hora), nem meios para desdobrar o CCP num Conselho de Emigrantes e num Conselho da Diáspora. Há, agora, um grupo que se chama precisamente "Conselho da Diáspora": reúne, de vez em quando, com o Presidente da República, porém, sem agenda nem estratégia conhecida. O nome já existe. Pode ser que um novo Presidente lhe queira dar corpo e alma. A propósito de encontros sob a égide presidencial, é de referir que estava previsto, em 1980,integrado nas comemorações Camonianas, o 1º Congresso das Comunidades Portuguesas. Decorriam já, nos termos do DL 462/79, de 30 de novembro, as suas reuniões preparatórias, dentro e fora do país, e a lei apontava para a "institucionalização de formas de representação dos emigrantes junto do país", sem as especificar. Porém, o novo Governo, decidiu adiar o Congresso para junho do ano seguinte, e criar, em 1980, o Conselho das Comunidades Portuguesas. Em resposta ao adiamento "unilateral" do Congresso pelo Governo, o Presidente Eanes reteve o diploma do CCP durante meses (com um "veto de bolso", como correntemente se dizia). A promulgação a 30 de agosto e a publicação em 12 de setembro determinou o adiamento da 1ª reunião do Conselho. E, por isso, Conselho e Congresso das Comunidades aconteceram, respetivamente, em abril e junho de 1981, gerando, na opinião pública e nas comunidades, enorme confusão entre a sua natureza e objetivos, num ambiente de dissenso e animosidade política. O Congresso foi do domínio do efémero, um" happening" irrepetível, que não deixou marcas no percurso do CCP. (11) Segundo "O Diário ", cuja informação factual é precisa: " Mal a Secretária de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas, Manuela Aguiar, terminou o seu discurso de saudação e de votos de bom trabalho, o delegado da Comissão da Comunidade Portuguesa de França, Carlos Duarte Morais, levantou-se e perguntou: Qual é a nossa participação nesta sessão inaugural? Fernanda Agria comunicou-lhe que ele ficava inscrito para falar, o que só se verificou às 11.50. Entretanto os presentes ouviram as exposições de seis funcionários da SEECP, que os informaram sobre o âmbito de competência dos respetivos departamento" . Com o sub título "Protesto", o Diário continua a reportagem: "O representante da CCP de França disse estar ali para protestar contra o facto de isto tudo estar preparado para nós sermos figurantes, constatou a ausência de Manuela Aguiar, exatamente quando falava o primeiro emigrante e comentou o teor das intervenções dos seis altos funcionários".( De facto, a Secretária de Estado ausentou-se numa parte do programa em que estavam previstas apenas informações técnicas dos funcionários). Na parte final do artigo, há breves citações de conselheiros da emigração transoceânica, dissonantes das posições do orador de França. Só um vê escrito o seu nome: Carlos de Sousa (Venezuela), que "fez um apelo à união de todos os emigrantes e disse que considerava o decreto -lei que institui o Conselho como uma "certidão de nascimento" e como tal devia ser encarado". Não obstante o seu cariz partidário, a narrativa é elucidativa do ambiente em que decorreram os debates no "dia um" do CCP: a contestação ensaiada pela Comissão de França, a divisão entre a Europa e todos os outros continentes, que viam o Conselho criado pelo governo como positiva. A falta de consonância, em função das tendência política dos "media" é evidenciada nos títulos dos diversos jornais, a 7 de Abril: O Diário (comunista),"Tudo preparado para sermos figurantes"; Portugal Hoje, (socialista), "Trabalhos abrem com polémica"; Diário deLisboa (socialista/comunista), "Emigrantes exigem um papel ativo e recusam o lugar de "figurantes": Nos jornais mais próximos da AD, ou menos hostis, o tom é neutro a notícia é apenas a reunião: JN: "Houve pouca abertura de alguns setores" - lamenta Manuela Aguiar (crítica que se referia à dificuldade de aumentar a representação política dos emigrantes), A Tribuna: "Conselho das Comunidades teve ontem início"; Correioda Manhã, "Conselho das Comunidades reuniu pela primeira vez"; Comércio do Porto, "Conselho reunido até 6ª feira - Congresso das comunidades já em fase de preparação". O título deste diário portuense comprova a ligação que erroneamente estava estabelecida entre Conselho e Congresso das comunidades. (12) O atraso no processo legislativo - a Lei 367/84 seria publicada só em 25 de novembro - obrigou a que as Reuniões Regionais fossem convocadas, ao abrigo da lei vigente, interpretada no sentido de permitir que a consulta a nível mundial "por regiões", em vez de o ser "por secções". Sendo a lei omissa quanto ao modo de funcionamento do órgão consultivo, a SECP argumentava que a consultaaos conselheiros era mais abrangente na modalidade regional, visto decorrer sempre em plenário, do que na modalidade do plenário, complementado por secções, já que estas ocorriam simultaneamente. Todos os conselheiros da emigração transoceânica perfilharam o entendimento do governo, excepto os de França, que recorreram judicialmente da decisão. Perderam o recurso no Supremo Tribunal Administrativo. (13) A Conferência para a promoção da participação das Mulheres, ao contrário das demais, não esteva prevista na recomendação do plenário do CCP em Porto Santo – foi da iniciativa da SECP. (14). O 2º CCP (1996/2015), tem também conhecido adiamentos de processos eleitorais ou de reuniões plenárias, Continua sob o signo da incerteza e, por isso, a meta da constitucionalização pode ser vista como condição da sua própria existência. A Subcomissão das Comunidades Portuguesas realizou, em 2004, uma audição sobre "mecanismos específicos de representação de migrantes", centrada na questão constitucional com intervenções dos Professores Barbosa de Melo, Adriano Moreira e Bacelar de Gouveia. (15) A Lei da Paridade em Portugal exige apenas a proporção um terço de mulheres ou homens na composição das listas (1 em 3), em França é de 50%. No que repeita aos Senadores representantes dos Franceses do estrangeiro a paridade é perfeita. BIBLIOGRAFIA Aguiar Manuela e Guirado Ana, "Links of between Europeans living abroad and their countries of origin", Estrasburgo, 1999, PACE Aguiar Manuela, "Política de Emigração e Comunidades Portuguesas", Lisboa, 1996, SECP, Coleção Migrações Aguiar Manuela, "O Conselho das Comunidades e a representação de Emigrantes", em Beatriz Padilha e Maria Xavier (org) Revista Migrações, Outubro 2009, ACIDI "Antecedentes, Criação e Percurso do Conselho das Comunidades Portuguesas", Lisboa, SECP, Centro de Estudos, 1985 Böhm, "Les Européens à l' Etranger"., Estrasburgo, 1993, PACE "Conselho das Comunidades Portuguesas, Recomendações de 1981 a 1985 e sua Implementação", Lisboa, SECP, Centro de Estudos Garriaud-Mayland Jöelle, "Qu 'est-ce que L' Assemblée des Français de l' Etranger?", Paris, 2008, L' Archipeord ed)l Helena Alves (coord), "Mecanismos Específicos de Representação de Emigrantes", Edição Assembleia da República Lisboa, 2005 Isolete Ramalho (coord), "Mecanismos de Representação de Emigrantes", Lisboa, Edição Assembleia da República, 2005 Moreira Adriano em "Academia Internacional da Cultura Portuguesa", Lisboa, Boletim nº 9 - 1973/1974/1975 Rocha- Trindade, Maria Beatriz "Le Conselho das Comunidades Portuguesas comme Pièce Centrale de la Politique Migratoire de l' Après-25 Avril" em "La Révolution des oeillets et l' immigration portugaise", 2014, Migrances 43, Éditions Mémoire-Géneriques . MARIA ARCHER O LEGADO DE UMA ESCRITORA VIAJANTE, Lisboa, Fundação Prof Fernando de Pádua, de novembro NAS TRILHAS DA “FILOSOFIA DE UMA MULHER MODERNA”: CONFIGURAÇÕES DA VIDA SOCIAL E AS CRÔNICAS DE MARIA ARCHER. Elisabeth Battista Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT/Brasil. Diretora da Faculdade de Educação e Linguagem – FACEL. Docente no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – PPGEL, da Pós-doutora pela Universidade de Lisboa – UL Esta leitura articula-se em torno da instigante produção criativa e intensa atividade intelectual de Maria Archer para os meios de imprensa, em meados do século XX, em Portugal, porque nos estudos que estamos realizando sobre a participação de escritoras na imprensa e a circulação literária entre os países que têm o português como língua de comunicação, temos colhido gestos e presenciado a intensa movimentação com vistas à ampliação das relações de trocas e possibilidades de abertura e aproximação cultural nas relações literárias e culturais ibero-afro-americanas. A coletânea Filosofia duma mulher moderna, de autoria de Maria Archer foi publicada em Lisboa em 1950, pela editora Porto e compõe-se de 27 narrativas. As crônicas literárias, em sua maioria voltam-se para o tema da condição da mulher na sociedade portuguesa, fatos vivenciados por Maria Archer, com base na observação da vida social, na qual faz um engajamento literário nas suas obras. A articulação de elementos da vida social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. É relevante afirmar que a produção e o lançamento de Filosofia de uma mulher moderna (1950) é contemporânea ao lançamento da obra O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, publicada originalmente em 1949. A referida obra francesa, amplamente difundida, é construída em uma perspectiva fenomenológica existencial de gênero, a autora volta-se para o estudo da dinâmica das ações femininas e focaliza o conceito de “experiência vivida”, que contribui para compreensão e o “desalinhamento” da perspectiva do status quo. Em sua abordagem, Beauvoir será crítica dos parâmetros discursivos da tradição, que se consagram em princípios lógicos e ontológicos, Beauvoir propõe novas formas de abordagem sobre a condição da mulher. Desta forma, na condição de autora, ao lançar um novo olhar sobre a condição feminina, propiciou a reflexão e o surgimento de uma nova visão acerca do perfil feminino. Beauvoir recusava também enclausurar-se como pensadora e como mulher na esquadria de um sistema de pensamento e, pois, de comportamento já determinado pela história. A condição feminina deveria, então, se voltar para novas vias de ação, de argumentação e de reflexão que não as mesmas trabalhadas pelos homens na história da cultura. (SANTOS, 2012, p.928). Vale lembrar que as lutas de caráter mais radical pelas igualdades e a construção de uma identidade feminina, bem como o surgimento do atuante movimento feminista, naquela altura, estavam apenas no início. Isto porque os ensaios de Beauvoir em O Segundo Sexo produziram sobre o público leitor um efeito prático, modificando a sua conduta, sua visão de mundo e, sobretudo reforçando o sentimento do valor social da mulher. Para a lusitana Maria Archer, contudo, em Filosofia de uma mulher moderna (1950), a vida social e a condição feminina serão o “fermento orgânico“ de que resultarão em fértil produção criativa e a expressão literária de uma diversidade coesa. Isto porque, em suas páginas, a autora leva em conta o elemento social como referência em suas crônicas produzidas para os jornais em Lisboa e, posteriormente reunidas na referida coletânea. Neste sentido, a captação do olhar fixado no território da escrita para os jornais serão a expressão de uma certa época e de uma sociedade determinada, que permite situá-la, não somente em seus aspectos sócio-histórico-culturais, mas como fator preponderante na sua elaboração artística, ou seja, sua coletânea deriva no registro literário que sinaliza a interpretação estética da vida social. O ESBOÇO E O SURGIMENTO DE UMA NOVA MULHER Nas narrativas para os jornais, a autora coloca em cena a mulher na condição de dona de casa, trabalhadora do lar, viúva, separada, e todos os seus atributos humanos como a ambição, a inveja, egoísmo, maledicência, a mulher estigmatizada que se torna “mal vista” perante a preconceituosa sociedade da época. Seus temas derivam para aquilo que afirma Alfredo Bosi (1996, p. 11), É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real. A literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente. Um olhar ainda que superficial pela coletânea de narrativas percebe-se um elemento curiosos e unificador: o absoluto predomínio de personagens femininas na condição de protagonistas. Os homens assumirão papéis secundários, enquanto a autora descreve a personagem feminina em dois ou mais parágrafos, especificando as qualidades da mulher da época, ela descreverá o homem em pouco mais de um período. Outro aspecto que marca a coletânea composta de 27 narrativas é o registro de que o tratamento que será dispensado à mulher está diretamente ligado ao seu estado Civil. Neste sentido, as mulheres casadas obterão reconhecimento social, enquanto as desquitadas e divorciadas não encontravam acolhida no seio social, ficando fadadas ao isolamento e impedidas de contraírem uma segunda união conjugal, fora do plano da clandestinidade. Um exemplo emana da regra explícita de que os funcionários públicos, sobretudo os de cargo elevado, não poderiam contrair matrimônio com mulheres desquitadas ou divorciadas. A crônica Filosofia duma mulher moderna, atendendo ao meio em que fora originalmente publicada, estrutura-se no âmbito de uma linguagem coloquial, de fácil entendimento, a personagem feminina age com a razão e não a emoção, fato que, no plano da narração, é justificado por preferir perder o pretendente a marido, que fora promovido e terá que ser transferido para fora do país, do que arriscar perder o domínio de um vantajoso contrato de locação. Constitui-se uma crônica jornalística, pois ali o que temos são quadros representativos da vida social contemporânea portuguesa. Narrada a partir de uma visão por trás, narrador onisciente intruso, portanto, é contada em 3º pessoa, conforme os estudos de Gancho (2003), “um narrador que fala com o leitor e julga a conduta da personagem, que fica bem explícito no trecho a seguir, [...] Uma maravilha”! Julgo que ela preferia um ataque de bexigas negras, a queda do cabelo, mesmo o reumatismo, a que lhe tirassem a casa [...] (ARCHER, 1950, p. 10). Ao mesmo tempo em que o narrador avalia os desejos da protagonista Teresa, ele coloca a importância que, mesmo alugada, a casa situada sítio nobre, representa para o conforto da personagem e seu único filho e, portanto, abriria de mão de qualquer coisa, entretanto, abrir mão de um antigo contrato que fixava o valor da renda muito abaixo do valor que a casa representa, estaria fora de questão. A personagem, aqui representante de uma classe, deriva para aquilo que Abdala (2004, p. 40) define como: “O conceito de pessoa refere-se ao indivíduo pertencente ao espaço humano, enquanto personagem refere-se à persona (máscara) da narrativa. A personagem é um ser fictício, que se refere a uma pessoa”. O ser da ficção, que é representado por uma pessoa, no caso aqui, a Teresa, que tem seu valor para a economia da obra. As personagens que compõem a narrativa são Teresa, sr. Seabra, o filho deles, Eduardo, a mãe de Teresa e suas amigas. No entanto o Sr. Seabra, as últimas personagens, e o filho de Teresa, são vistos neste espaço como personagens secundárias, atuam na trama, porém, suas intervenções não alteram significativamente seu sentido, diferentemente das personagens centrais, que é o caso de Teresa e Eduardo. A Teresa por sua vez podemos considerá-la ainda, como uma personagem plana, devido as características em que ela se encaixa. Gancho (2003, p. 16) afirma que [...] personagens planos, são caracterizados com um número pequeno de atributos [...] e que pode ser reconhecido por característica típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem[...], reconhecemos essas características quando a escritora nos descreve Teresa: Como ia passar dois anos no estrangeiro mostrava-se imensamente «snob» e impertinente. Exibia-se e luzia-se nos conhecimentos da vida dos povos que habitam para lá do nosso modesto horizonte. Não se calcula como nos irritava! E eram as minucias... Não se ia e vinha, como os caixeiros viajantes... Demorava-se... Viveria num hotel de luxo... Compraria peles preciosas... Vestidos... Perfumes... Voltaria com as malas cheias... Daria passeios lindíssimos... Exercitar-se-ia a falar... Oh! O sotaque, numa língua, dá o tom... (ARCHER, 1950, p. 9). Dentre os elementos que estruturam a narração identificamos, no tocante ao tempo, que a autora narra a sua contemporaneidade e esta se dá em meados do século XX, momento em que Portugal vivia o regime austero da ditadura Salazarista. Enquanto elemento estruturante, de acordo com Nunes (2002, p. 20), ocorre um tempo cronológico, as cenas vão ocorrendo em uma ordem natural, do início para o fim, “[...] Baseado em movimentos naturais recorrentes, como os cronométricos a que já nos referimos, o tempo cronológico, por esse aspecto ligado ao físico, firma o sistema de calendário [...]” (idem), pois, essa cronometria é que coloca a ordem dos acontecimentos e os qualificas. O espaço socialmente verificável em que a trama ocorre é na cidade de Lisboa “[...] A mãe de Teresa deixara o sossego da sua casa da província para viver em Lisboa esses dois anos, de guarda a casa da filha [...]” (ARCHER, 1950, p.13). Abdala (2004, p. 48) diz que o espaço se articula com as demais categorias da narrativa ao nível da história, e podem aparecer ligadas a um lugar físico, onde circulam as personagens e se desenvolve a ação. O ambiente do enredo é mostrado a partir do termino do divórcio de Teresa com o senhor Seabra, já havia nascido um filho, com isso após o desenlace ele deixara a Teresa na confortável casa alugada por uma renda muito accessível. O narrador fornece detalhes do espaço situando-nos acerca do nível de conforto do ambiente.” Imagine-se uma moradia com quintal, e jardim, e um vestíbulo com ferros forjados, e aquecimento central, e três casas de banho, e salas ligadas por arcadas-com o senhorio a morar no primeiro andar e a Teresa no rés-do-chão.” (ARCHER, 1950, p.10). Os elementos do espaço serão, para a economia da narrativa, decisivos para a solução estética, como veremos adiante. Percebemos, pela minuciosa descrição do espaço em que se desenrola o enredo da narrativa que trata-se de uma casa ampla e, em muito bom estado de conservação onde Teresa habita com o seu filho menor. Vale registrar que o ambiente eventualmente está presente através de certas indicações que o artista faz, como descrições, atitudes conscientes das personagens, regular disposição de acontecimentos, inversão de fatos, descrição de lugares, resultado inesperado de certas cenas, etc. Este diz respeito aos aspectos sócio econômicos, ou seja, a situação-ambiente constitui-se, muitas vezes um detalhe não atingível, inapreensível objetivamente na obra, e resulta de uma observação do leitor em torno dos elementos apresentados ou sugeridos pelo artista na combinação das atitudes das personagens e na ação. Entretanto o ambiente faz referência à vida da personagem. Essa descrição também pode considerar como situação-ambiente conforme define Ataíde (1941): A situação ambiente é como um pano de fundo que serve para o desenrolar da ação e a vivência das criaturas ficcionais. É um resultado da experiência sobre o tempo e espaço. (p. 51). Consideramos neste contexto a situação-ambiente, pois, é a partir da fruição desta que veremos o desenrolar da exegese ficcional, além de despertar o interesse pela leitura, aproximando a personagem da representação literária da vida social. De certo modo é neste ambiente que ocorrerá o conflito do enredo, criando o ponto culminante da a história, que podemos chamar de clímax, ou seja, o momento em que a narrativa atinge seu maior ponto de tensão, em seguida, temos o desfecho, a solução estética, o qual o autor nos surpreenderá com um final feliz ou não. Solução esta que segundo Gancho (2003, p. 11) “o desfecho é a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não. Há muitos tipos de desfechos: surpreendente, feliz, trágico, cômico, etc”. O desfecho da narrativa, é surpreendente, pois, Teresa tinha consciência que o Eduardo estava com ela por causa do filho desta, (no seu primeiro casamento) o Quim, todavia, ela não cogitou em levar o menino consigo. Toda gente, nas relações do casal, compreendia o assunto e o discutia. Mas toda a gente supunha, eu incluída, que a Teresa gostava do Eduardo. Por isso estranhei a resposta dela, há dias, quando lhe perguntei se levava consigo o filho: - Fica com minha mãe... O advogado insiste em que o deixe ficar... Calei-me – mas os meus olhos devem ter sido eloquentes porque a Teresa, logo em seguida, diz-me, como quem se justifica: - Olha, menina... Um outro marido como o Eduardo arranjo eu... Uma casa como esta é que não... (ARCHER, 1950, p.16). O final, imprevisto para os padrões romanescos, sinaliza para o valor que materialismo e a razão assumem em detrimento da vivência do romance a sensibilidade, na vida da protagonista. No trecho acima, percebemos que a casa era mais importante para Teresa do que seu companheiro, no recorte selecionado, a importância dos bens materiais prevalecerá para a personagem. AS TRILHAS E A CONDIÇÃO FEMININA A crônica é emblemática e sinaliza para o registro literário do nascimento de um novo perfil de mulher, agora mais consciente e menos dependentes dos ditames sociais e de um status quo. A crônica selecionada por exemplo, permite-nos observar as relevantes mudanças no comportamento da mulher portuguesa que vive no meio urbano, em contato permanente e crescente com a instauração gradativa da modernidade, principalmente no que tange ao processo de formação da sociedade capitalista. A narrativa intitulada “Faça mal quem o fizer quem o paga é a mulher”, à partida já se nota o um trocadilho, a apropriação da linguagem coloquial, que sua estrutura pode ser separada em versos de forma que temos “Faça o mal quem o fizer/ Quem o paga é a mulher”, este é formado de redondilha maior, com rima rica, e de fácil memorização. O conflito gira em torno da personagem Anica, que por ter decidido deixar o marido opressor e acompanhar o amante, torna-se mal vista aos olhos da sociedade. A personagem lança-se ao impulso de suas escolhas emocionais. Anica – um nome próprio no grau diminutivo já é sintomático – será guiada pelo sentimento da paixão, ao invés da razão, não se importando com o futuro. A representação da personagem foi contemplada na ficção de Maria Archer e deriva para aquilo que Anatol Rosenfeld (2011) afirma: A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo: lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação. É neste sentido, pois que, em seu percurso, ao longo da breve narrativa, Anica enquanto protagonista, será construída como personagem esférica. As “personagens esféricas” não são claramente definidas por Forster, mas concluímos que as suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; serão, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender, pois, conforme diz Candido (2000, p.63): A prova de uma personagem esférica é a sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente. Se nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana com pretensão a esférica. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida, — traz a vida dentro das páginas de um livro” (Ob. Cit., p.75). Decorre que “as personagens planas não constituem, em si, realizações tão altas quanto as esféricas, e que rendem mais quando cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica arrisca tornar-se aborrecida” (Ob. cit., p. 70). A narrativa breve indica sumariamente que Anica, embora dispusesse de uma condição financeira estável, andava muito insatisfeita com a vida que levava e, na ânsia de dar um novo rumo à sua existência, ao lado de um novo companheiro, lança-se à nova experiência conjugal, sem, entretanto, assegurar-se, muito menos estudar melhor o caráter do novo pretendente. Desta maneira Anica, como veremos no trecho abaixo, a protagonista inconscientemente assume os riscos, na medida em que não se importou se um dia Ramiro a deixasse e ela viesse a perder tudo, se arrisca para viver uma paixão: A Anica, desvairada de amor, fruia com intensidade o momento presente e não pensava nas consequências temerosas dos seus passos de mulher banida da vida das famílias nem no que poderia ser o seu futuro, um dia, se o Ramiro a amasse menos, a amasse pouco, ou a abandonasse. (ARCHER, 1950, p. 193). A narração é feita por um narrador testemunha, aquele que participou e vivenciou os fatos do enredo, que pode ser justificado com a fala dele, [...] Lembro-me bem daquele dia, há anos, em que o escândalo da sua fuga com o Ramiro ribombou por Lisboa e deixou a sociedade – este meio de gente rica e janota e preconceituosa que a si mesmo se classifica de sociedade – deixou-a espantada e atordoada [...]( Idem, p. 191). Ele narra em 1ª pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos como personagem secundaria que pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. Testemunha, não é à toa esse nome: apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal. (LEITE, 2002, p. 37). Conforme adianta o narrador testemunha, a qual faz o uso do verbo lembrar, no pretérito, dá a perceber que o narrador conhecia Anica, e vivenciou o fato ocorrido. Segundo Ataíde (1941, p.55) o ponto de vista da trama é visto de modo externo, ou seja, está sendo apresentado por alguém que sabe dos acontecimentos, mas não os vivenciou. Ao olhar para a construção da obra, e para a sua ordem temporal veremos que esta obedece ao tempo cronológico, ou seja, o enredo corre de maneira sucessiva, desde que Anica saiu de casa, passou a viver com Ramiro, mudaram de cidade, e ao fim acaba sendo gradativamente abandonada pelo parceiro e ficando sozinha, isto pode ser percebido nos recortes: (ARCHER, 1950, p. 196) “[...] a Anica via-o partir dia após dia, noite após noite [...] Meses consecutivos, com muitos dias e muitas noites em cada mês[...], para Ataíde: O tempo cronológico é aquele que se mede pelo relógio, pela sucessividade dos dias e das noites, pelo movimento da terra e da lua, pela alternância das estações. O tempo cronológico consiste num esforço do homem para opor uma barreira ao tumulto subjetivo, às presentificações da memória à duração interior que é imprevisível e incontrolável. (ATAIDE, 1941, p. 47). A personagem experimenta dupla condenação: o isolamento social por parte dos seus familiares e o afetivo, na medida em que vivenciará o gradativo abandono por parte do amado. Tal constatação deriva do que pode ser percebido na construção narrativa e nos dá a impressão de que os espaços utilizados articulam-se com as demais categorias da narrativa ao nível da história. Na obra são divididos em três sequências, no dizer de Abdala: “Num sentido mais abstrato, é importante que seja considerado o espaço social, a ambiência social pela qual circulam as personagens, e o espaço psicológico, as suas atmosferas interiores”. (ABDALA, 2004, p.48). Desta forma relacionamos os acontecimentos que ocorrera com Anica, através destes espaços, ao qual, no início, ela circulava tacitamente pelas ruas de Lisboa e fazia parte da alta sociedade, podendo relacionar este como espaço social, em seguida ao fugir com Ramiro, se vê obrigada a passar por sua irmã, e aos poucos acaba ficando isolada em casa, num país estrangeiro, não tendo a liberdade de circular pelas ruas, ou seja, este se torna um espaço físico restritivo, sua vida se restringirá aos limites da sua modesta morada. A partir de então, dará vazão à dimensão do espaço psicológico, pois, a restrição dos deslocamentos funcionará como elemento propulsor para Anica na tomada de consciência do espaço que oprime e como estes podem se tornar espaços de fuga. Assim, ao impacto das suas constatações, o desfecho da trama se dá quando Anica deixa Ramiro, e volta para Lisboa sem o parceiro e despojada dos seus bens materiais. Notamos a distinção existente entre os homens da trama, enquanto o primeiro faz questão de dizer que é casado com Teresa, Ramiro omite, ou seja, esconde o relacionamento com Anica, sob o pretexto de não perder o emprego, pois o que predomina para ele é posição social, por não aceitarem homens casados com mulheres que fossem divorciadas. A Anica, nesses anos de peregrinação pelo estrangeiro, desfalcara grandemente os seus haveres. Ao separar-se do Ramiro não dispunha de meios que lhe permitissem fixar residência em Paris. Foi-lhe forçoso regressar a Lisboa, limitar as despesas e viver de pouco. (ARCHER, 1950, p. 199). As crônicas selecionadas são representativas de distintos perfis femininos. A primeiro trata-se de uma mulher ambiciosa e racional que se arrisca a perder o pretendente a marido, a perder a confortável casa onde vive, e na segunda narrativa, temos a representação da mulher que, ao impulso de viver a segunda experiência conjugal, não se importa com os bens materiais, foi capaz de largar tudo para viver um amor. TRILHAS QUE SE ABREM... A coletânea Filosofia de uma mulher moderna, em seu conjunto abordam temas como os vistos acima, exibindo o desafio vivenciado pelas mulheres na luta pela libertação de sua condição de subalternidade, entre outros. As mulheres dos meados do século XX, época da ditadura salazarista, estavam sujeitas a uma hegemonia masculina, contentando-se apenas com os serviços domésticos e a educação dos filhos. A mulher encontrava-se sob um intenso domínio familiar, antes do casamento submissa ao pai e, após o casamento, ao marido. Historicamente, a mulher foi sempre mantida como uma figura emudecida e marginalizada em diversos aspectos. O fato de ter sido tomada por sua suposta fragilidade e incapacidade de viver fora do domínio patriarcal implicou, não raro, o sacrifício de sua própria identidade. A tradição sócio histórica relegou à mulher um papel secundário na sociedade. Na esfera doméstica restavam-lhe as atividades de administração dos afazeres do lar e de educação dos filhos de forma que reproduzissem e perpetuassem os papeis sociais preestabelecidos. (ARAUJO, 2012, p. 14). Da mesma forma, o registro literário na coletânea revela que a condição e o papel reservado para a mulher na vida social daquele momento, onde o lugar privilegiado era destinado aos homens e as personagens femininas, dispunham de espaço restritivo e, não raro, para viver eram submetidas ao regime no qual, sendo vistas como frágeis e incapazes, seu destino seria o casamento. Dessa forma, a literatura de Maria Archer desprende-se do usual, instaura um estilo próprio com seu distinto jeito de escrever, fará aquilo que defende Teixeira: “buscando, por meio de seus personagens, estabelecerem representações que questionam e contestam as posições ocupadas por homens e mulheres na sociedade” (TEIXEIRA, 2008, p. 33 apud MOURA, 2012, p.3). A representação literária de Archer recria o mundo a partir da sua ótica e fala a por aqueles que não tem voz própria. Como se sabe, eram poucas as mulheres que assumiam a profissão de escritoras naquela altura. O papel da escrita literária de várias autoras feminina, vista deste modo, era expor o comportamento dos perfis femininos, ligados ao período em que viviam, desta maneira, em suas publicações a representação literária e o engajamento era constante. Ao recriar na literatura os diferentes grupos sociais é importante um posicionamento condizente com as vivências de tais indivíduos. Compreender o meio social a partir de um único viés não torna possível representar de modo eficaz os grupos que o compõem, já que, mesmo mostrando-se sensíveis e solidários a seus problemas, ainda assim estes não terão as mesmas experiências de vida. (ARAUJO, 2012, p. 34). A literatura pode ser considerada como uma instituição social, que utiliza como expressão a linguagem, ela pode representar a vida, esta é uma realidade social. O artista se apropria da literatura para através dela fazer uma utilidade social, ou seja, apoia-se em suas vivências para se dirigir ao público. Conforme exprimem Wellek & Warren, (1955), ao discutirem a relação entre literatura e a sociedade, é costume começar-se pela frase – derivada de De Bonald - que afirma que “a literatura é uma expressão da sociedade”. [...] Afirmar que a literatura é o espelho ou a expressão da vida será ainda mais ambíguo. Um escritor não pode deixar de exprimir a sua experiência e a sua concepção total da vida; mas seria manifestamente falso dizer que ele exprime a vida total – ou até mesmo a vida total de uma certa época - por forma completa e exaustiva. [...] (WELLEK & WARREN, 1955, p. 114). Desta forma, o artista não é obrigado a escrever sobre aspectos que ocorreram em toda a sua vida, mas sim de determinada época, descrevendo as implicações e relações sociais deste período. Dizer que a literatura exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo; no dizer de Antonio Candido, mas houve tempo em que “foi novidade e representou algo historicamente considerável”. Na atualidade não é necessário enunciar que a literatura representa a sociedade, conforme defende Candido: No que toca mais particularmente à literatura, isto se esboçou no século XVIII, quando filósofos como Vico sentiram a sua correlação com as civilizações, Voltaire, com as instituições, Herder, com os povos. Talvez tenha sido Madame de Staél, na França, quem primeiro formulou e esboçou sistematicamente a verdade que a literatura é também um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre. (CANDIDO, 2006, p. 29). Assim, com base na sua produção e seu legado literário será possível afirmar que Maria Archer recusava enclausurar-se como intelectual e como mulher nos modelos impostos pelos ditames sociais. Essa atitude pode ser colhida nas suas produções criativas, uma vez que a autora alinha-se a um sistema de pensamento e de comportamento não previsto para a condição feminina determinado pela história. Muito pelo contrário, sua atuação revela que a condição feminina deveria se voltar para novas vias de ação, de argumentação e de reflexão que não as mesmas trabalhadas pelos homens na história da cultura do seu tempo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi possível entrever, por meio da representação literária, na qual incumbe-se de exprimir “A filosofia de uma mulher moderna”, como as mulheres, naquela altura, comportam-se perante seus dilemas e suas angústias existenciais. Desde a escolha entre a razão e a emoção, diante do desafio de se entregar a um novo amor, em que a personagem da primeira narrativa, ao mesmo tempo em que ela decide recomeçar sua vida amorosa, ela teme em perder a casa, agindo com a razão, ela decide deixar o filho, assim, estaria segura a sua moradia com o aluguel muito abaixo do valor de mercado. Paradoxalmente, a protagonista da segunda narrativa selecionada, como amostra para a identificação do delineamento dos perfis femininos, sob a ótica de Maria Archer, vimos que a personagem não imaginou que seu romance poderia não vicejar, como seria evidentemente desejável para a protagonista, desconsiderou a possibilidade de vir a perder o conforto em que vivia. Ou seja, a protagonista peca por ceder ao primeiro impulso e ao excesso de sensibilidade. A contribuição literária de autoria de Maria Archer vem sendo gradativamente estudada no âmbito de relação literária e cultural ibero/afro/americana, vimos que autora muito tem contribuído para o avanço da literatura nos países de Língua Portuguesa e pela representação feminina neste contexto literário, uma vez que pela sua visão crítica, produz narrativas que estão muito além da literatura considerada apenas como de “sensibilidade contemplativa” e “linguagem imaginativa”. Suas narrativas são inquietantes porque identificam a opressão, evocam a vida, buscam a emancipação da mulher e, talvez por isso seu nome tenha sido gradativamente apagado e, até certo ponto eclipsado na história da literatura portuguesa. A representação literária na obra de Archer pode ser considerada um genuíno produto de vida social, pois, através de sua criação é possível entrever questões relacionadas a fatos históricos, sociais e culturais, e que ao mesmo tempo pode ser vista ainda, como um modo de comunicação e expressão do seu olhar sobre a sociedade, a qual, por meio do seu gesto de interpretação estética, o conteúdo da mensagem pode alimentar um desejo de mudança no meio social. REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS . ABDALA, Benjamim Abdala Junior. Introdução à análise narrativa. Coleção Margens do texto. São Paulo: Scipione, 1995. . ARCHER, Maria. Filosofia duma mulher moderna. Porto. Editora Simões, 1950. . ARAUJO, Adriana L. de,A representação da mulher no romance contemporâneo de autoria feminina paranaense. Dissertação de mestrado em Estudos Literários, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2012. . ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de ficção. 2. Ed. São Paulo: McGraw-hill do Brasil, 1941. . 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XX Dina Botelho Maria Archer é uma escritora que vale a pena conhecer. Passear os olhos pelas páginas dos seus livros é transportarmo-nos para meados do século XX e, pouco tempo depois, deixarmos de simplesmente passear e ficarmos presos na sua escrita. O realismo da sua escrita é tão grande e intenso que se nós não nos identificarmos com as suas personagens, com elas identificaremos alguém que conhecemos. Considero ter sido um marco para a época em que viveu e é nesse sentido que sempre me deram testemunho quando dela falo com pessoas mais velhas. A preocupação/tema principal da sua obra era a situação da mulher e as dificuldades por ela sentidas. A vida da mulher, a sua relação com a família, com o trabalho e com os homens dominavam os seus romances, novelas e peças de teatro. Mas se o tema dominante era o mesmo havia novidades em todas as suas obras. O estatuto social das mulheres que retratava era diferente, a mulher tanto era vítima como até brincava com os homens e por isso liam-se com empolgamento as suas obras. O seu conhecimento profundo do pensamento da mulher das várias classes sociais permitia-lhe falar com à vontade e realismo das suas vidas. Já João Gaspar Simões falava, em 1950, do seu «superior espírito de observação, penetrante análise social, sólida expressão literária, magistral equilíbrio no doseamento do imprevisto, pelo que não poderia deixar de ser considerada desde já um grande contista, um grande escritor». Maria Archer dizia que escrever era fugir ao longo silêncio a que a mulher da época estava votada. Até o acesso à cultura era negado à mulher na época, como Maria Archer retrata bem na personagem de Adriana (de Casa sem Pão) que tinha de se esconder para ler livros. Maria Archer mostrou as vozes profundas do seu ser, sem nunca recorrer a pseudónimos, o que fez dela única na sua época e no seu meio. Ela partia do real e era esse real que interessava aos seus leitores. Ela própria reconheceu que a literatura feminina da sua época não era criativa «pois a mulher encontrava-se subjugada pela estrutura social e familiar repressiva.» Diz-nos o ensaísta João Gaspar Simões que «se existir um tema nos seus contos este é o tema social: a rebelião da mulher contra as normas sociais sacrificadoras da sua sagrada independência». O conto de Maria Archer é o conto de fundo social, o conto de costumes.» Ela é considerada por ele «um dos nossos primeiros contistas contemporâneos, um dos nossos mais fortes temperamentos de escritor».Como diz o Prof. Fernando de Pádua, seu sobrinho, a propósito destes elogios carregados de masculinidade, «só faltaria dizer que Maria Archer é um homem». Termino com duas confissões da própria escritora, datadas de out. de 1952 (in “Revisão de Conceitos Antiquados”) que mostra bem o que passou, e o que passava qualquer mulher escritora na altura, para escrever: «Saibam quantos fazem coro no desprestígio da obra literária das mulheres que os nossos livros são momentos heróicos. Custam-nos coragem, e angústias, que os homens, para igual feito, desconhecem de todo.» Assim, não retrata só na escrita o que era a vida da mulher no início e meados do séc. XX mas ela própria e a sua vida foram um ótimo exemplo das vivências da mulher da época. Sobre o lançamento do Livro de Elisabeth Battista REVISITAR MARIA ARCHER Rita Gomes Presidente da Direção AMM Começo por felicitar a Profª Elizabeth Batistta pelo pioneirismo, saber e persistência com que se tem dedicando ao estudo da obra de Maria Archer, a escritora viajante, como lhe chama. Desde sempre, tive uma imensa admiração por ela, em grande medida influenciada por meu Pai, que a considerava uma extraordinária mulher e escritora. Era seu primo direito e muito amigo (o pai de Maria Archer era irmão da minha avó paterna, ambos alentejanos) Eu era criança quando a conheci na minha casa de Lisboa, na Graça, e recordo-me bem da sua beleza e espírito comunicativo. Era uma progressista, intelectual de prestígio, defensora dos direitos das mulheres, dos direitos humanos, sociais e políticos. Republicana, como meu pai, enquanto a minha mãe era monárquica. Esse conflito de ideias fazia parte do nosso dia a dia, conviviamos com a política - desde então me habituei ao debate sobre questões políticas. Mas, apesar desses laços de femília e da relação pessoal, não tinha conhecimento de muitos dados e informações, aqui neste livro recolhidas, sobre a passagem de Maria Archer por diversas partes do mundo, sobretudo em África, sobre as honras que lhe prestaram, pelo seu trabalho,mas também sobre tantas adversidades com as quais foi confrontada pela vida, imerecidamente. Até a sua atividade como representante da União das Mulheres Portuguesas Democráticas, filiada no Movimento das Mulheres Democratas Portuguesas, para a qual tinha sido eleita presidente, constituiu uma novidade, que este estudo nos dá. Juntou, assim, a militância em organizações a outras formas de luta que passaram pela escrita. A sua capacidade criativa era, a todos os títulos, excecional e diversificada. Além dos escritos jornalisticos, Conferências feitas em diversas Instituições Culturais, Científicas, Políticas, saliento, a propósito, as conferências que, por exemplo, fez no Liceu Pedro Nunes para Jovens, que muito a admiraram – relato feito por meu marido que foi aluno desse Liceu – e que, desde então, passou a ser um seu grande admirador. Por eu estar ligada a trabalhos sobre a Emigração fui sabendo um pouco mais sobre a sua Vida e Obra , o que melhor me permitiu apreciá-la. Recentemente, de forma inesperada e através de e-mail enviado do Brasil para a Drª Manuela Aguiar, conseguimos contatar em S. Paulo, durante uma Reunião da Associação Mulher Migrante, com as 2 irmãs Blanche de Bonnville e Maria Jorge de Bonnevillle, que a tiveram como percetora na sua casa de S. Paulo. Ambas continuam a ter por ela uma enorme amizade e reconhecimento. Como testemunho dessa amizade, estão publicados pequenos textos das duas referidas Senhoras, na Revista desta Associação, “ A vida e Obra de Maria Archer – Uma Portuguesa na Diáspora” sobre o Encontro realizado em Lisboa, em sua Homenagem, ( dia 29 de Março de 2012), no Salão Nobre do Teatro da Trindade, que teve também como Parceiros a Fundação Inatel, a Fundação Fernando de Pádua, a Câmara Municipal de Espinho e a Mulher Migrante Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade. Já referi, a capacidade criativa de Maria Archer, a todos os títulos excecional e muito diversificada. Tenho relido algumas das suas Obras, recentemente, e delas gostaria de dar aqui alguns exemplos concretos. Recordo, por exemplo, um texto por ela escrito em 1964, num Jornal do Brasil “Portugal Democrático”, nº 83, de Maio de 1964, sobre a Reforma Agrária no Séc X1V. em Portugal: Começa assim: “ Lendo há dias a CRONICA DE D. FERNANDO do venerável Fernão Lopes …… “ “…. É também de notar que no Portugal do século XIV já se reconhecia o valor social da propriedade imobiliária e a prioridade desse merecimento sobre o direito de posse sempre que estivesse em causa a sobrevivência do Reino. O princípio político da encampação da empresa agrícola mal administrada ou, ou subtraída à utilização pública, isto é, desviada do serviço social da Nação, ressalta nitidamente desta legislação medieval. Mais ainda: Encontramo-nos aqui na presença dum postulado que não aparece em nenhum dos projetos de Reforma Agrária contemporâneos e chegados ao meu conhecimento – o de que a indemnização devida ao proprietário ”constrangido” seja “razoável “ e arbitrada pela Justiça, após o que não havendo entendimento entre as partes o direito de posse seria confiscado ao proprietário, e suas terras entregues ao “bem comum”. Não entendo integralmente este termo “bem comum” por estar acentuado de “onde o houvesse” . Cuido que Fernão Lopes se referiu a bens concelhios ou municipais, não aos do Estado. possivelmente logradoiros ou baldios. Se o cronista quisesse indicar bens do Estado teria empregado a palavra “Reino”…. “Não pode haver qualquer dúvida, após esta breve leitura da secular existência, em Portugal, do princípio político da encampação da propriedade, se a mesma tiver sido desviada do seu fim de utilidade social , e com indemnização ao proprietário. Se alguém voltar a afirmar- me que esse aspeto da questão agrária foi gestado pelas filosofias do materialismo dialético, protestarei e dando o seu a seu dono recomendarei ao ignorante que estude a legislação do século XIV.” Muitos outros textos reveladores da sua vasta cultura, e que são pouco conhecidos, podemos encontrar nas Revistas Municipais de Lisboa, entre 1939, 1940, 1941. 1942, 1943 e 1945 - artigos de Maria Archer nos quais se abordam assuntos, como eles dizem, “pitorescos e intimidades citadinas”. Assim, num Artigo de 1939 sobre “TIPOS POPULARES”, é referido que os traços que Maria Archer documenta podem parecer-nos hoje comezinhos… mas terão interesse para gerações vindoiras, justamente por terem aspetos flagrantes do viver de muitos, um interesse de “documentário anedótico” . Entre os diversos TIPOS POPULARES, escreveu sobre: PORTEIRAS Rev. nº 2 Ano de 1939 O ARDINA “ nº3 “ “ 1940 A PEIXEIRA “ nº4 “ “ 1940 A CRIADA “ nº 5 “ “ 1940 O MOÇO DE RECADOS nº 8/9 1941 O COCHEIRO Nº 10 1941 O PADEIRO Nº 11 e 12 1942 OS GANGAS Nºs 13 e 14 1942 O ENGRAXADOR Nºs 24 e 25 1945 Esta diversidade simboliza bem a inteligência crítica da autora, a sua vocação para estudos etnológicos, a sua captação das singularidades de Figuras Tradicionais do SÉC XX . Hoje quem, com a minha idade, se lembra delas no seu quotidiano, acha FANTÁSTICA a CARACTERIZAÇÃO que é registada nestes textos. Razão tinham aqueles que, em 1939, se lembraram de fazer uma recolha sobre TIPOS POPULARES, a pensar nas gerações vindoiras. Estes trabalhos de Maria Archer, sobre a realidade da vida desses tempos, têm, assim, tanto valor literário como interesse humano . É também o que se pode dizer da generalidade das suas Obras.

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