MULHERES E CIDADANIA NA I
REPÚBLICA: MOBILIZAÇÃO E MIGRAÇÃO NA GUERRA DE 1914-1918
Resumo:
Este artigo pretende abordar a
mobilização, activismo e participação pública das mulheres nas primeiras
décadas do século XX, período em que se verificou a emergência e consolidação
do primeiro movimento feminista português, a implantação da República e a I
Guerra Mundial. Através do associativismo, as mulheres tomaram a palavra,
denunciaram problemas, propuseram soluções, defenderam ideias e ideais,
reivindicaram direitos e serviram causas que julgaram justas, nobres e
patrióticas. O movimento feminista português não esteve isolado; esteve
presente nas organizações internacionais e na diáspora. As organizações femininas
que surgiram durante a guerra, partindo embora de diferentes pressupostos e
motivações, empenharam-se no apoio material e moral aos combatentes e na
assistência aos feridos da guerra, apresentando diferentes vias de participação
política e novas formas de cidadania. Feministas, republicanas, monárquicas e
católicas afirmaram-se como elementos agregadores da sociedade e trabalharam
pelo bem comum, agindo como cidadãs de pleno direito.
Palavras-chave: mulheres, associativismo,
cidadania, internacionalismo, diáspora, I Guerra Mundial.
Associativismo e cidadania
A mobilização e o activismo das
mulheres portuguesas durante a Guerra de 1914-1918 não se pode desligar do
movimento associativo feminino e feminista que se iniciou em 1906 e que ganhou
maior expressão com o advento da República. Um grupo de intelectuais,
escritoras, médicas e professoras, que se vinham destacando pela escrita em
periódicos generalistas, regionais, femininos e feministas, reunia-se
regularmente em casa de Ana de Castro Osório (1872-1935) e de Olga Morais
Sarmento da Silveira (1881-1948), onde se debatiam questões de cultura,
literatura, ciência, educação, arte e emancipação feminina. Do intimismo das
tertúlias literárias, as mulheres deram o salto para o espaço público com a
criação das primeiras associações pacifistas e feministas que se propunham promover
a paz entre os povos, reduzir os exércitos e o armamento a nível mundial e resolver
os conflitos através da arbitragem de comités femininos instalados em todos os
países. O pacifismo e a fraternidade internacional tornaram-se assim uma via de
participação pública das mulheres.
A atribuição do Prémio Nobel a
Bertha von Sutner (1843-1914), em 1905, a autora da obra pacifista “Abaixo as
Armas”,
publicada em 1889, que denunciava o crescente militarismo na Europa, as
consequências do nacionalismo exacerbado e os efeitos da guerra, deve ter reforçado
a adesão das mulheres à causa da Paz. Magalhães Lima (1850-1928), o lídimo
defensor da paz universal, e
Alice Pestana (1860-1929), a pioneira que fundou em Portugal a Liga Portuguesa da Paz em 1899,
deram o impulso para o aparecimento deste movimento que se traduziu em 1906
pela criação da Secção Feminista da Liga
Portuguesa da Paz e do Comité Português da associação francesa La Paix et le Désarmement par les Femmes.
A escritora Olga Morais Sarmento da Silveira, a jornalista Virgínia Quaresma
(1882-1973), as médicas Domitila de Carvalho (1871-1966), Maria do Carmo Lopes
(1875-?), Emília Patacho (1870-1940), Adelaide Cabete (1867-1935), Carolina
Beatriz Ângelo (1878-1911) e outras feministas como Jeanne de Almeida Nogueira,
Madaleine Frondoni Lacombe (1858-1936) e Albertina Paraíso (1864-1954) foram as
protagonistas deste movimento pacifista de fraternidade internacional que se
esboroou por ocasião da fundação da Liga
Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1908-1909. O aparecimento desta
associação feminista e política marcou a separação entre monárquicas e
republicanas que até à data tinham convivido e trabalhado por objectivos
comuns. Durante a Grande Guerra os ideais pacifistas foram olvidados por umas e
por outras que estarão novamente presentes no espaço público e unidas pelo
ideal do “bem da Pátria”, no apoio aos combatentes, mas trabalhando
separadamente e em clima de conflito ideológico, alimentado sobretudo pelos
homens que transpunham para as organizações femininas as divergências quanto ao
regime político e às crenças religiosas. No período entre as duas guerras, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e
a Associação Feminina Portuguesa para a
Paz,
alinhados pelo movimento protagonizado pela Liga
Internacional das Mulheres para a Paz e a Liberdade, vão manter vivo o
ideal pacifista através de uma pedagogia e acção a favor da paz universal.
Muitas das mulheres que nesta época militavam no pacifismo eram opositoras
declaradas do regime autoritário salazarista que extinguiu o CNMP em 1947 e a AFPP em 1952.
Com a participação pública no
movimento internacional pacifista as feministas portuguesas iniciaram um
caminho de afirmação da sua identidade, tomando voz sobre assuntos de interesse
colectivo e firmando publicamente compromissos em torno de ideais comuns de paz,
liberdade, emancipação e igualdade de direitos jurídicos, cívicos e políticos.
As associações feministas, maçónicas, políticas, sufragistas, patrióticas e
nacionalistas que se lhe seguiram, antes e depois da implantação da República, foram
laboratórios de ideias, de discursos alternativos ao sistema vigente, de
invenção de novas estratégias de luta e espaços criativos de acção e de
cidadania. Foi através do associativismo e da sua imprensa que as mulheres
deram voz às suas reivindicações, combateram leis e preconceitos seculares que
perpetuavam as desigualdades e questionaram os papéis e esferas de influência
de homens e mulheres na família, na sociedade e na política. Elas tomaram
consciência de que associadas seriam uma força colectiva de interacção social
que poderia revolucionar a sociedade e mudar o estatuto de inferioridade em que
se encontravam.
Nas associações, as mulheres
desafiaram a ordem legal porque foram além do socialmente permitido ao seu
sexo, combateram a subalternidade e a marginalização a que tinham sido votadas
e protagonizaram a modernidade que pretendiam imprimir à sociedade e ao país. Adoptaram
um contra discurso que se afirmou lentamente e se difundiu através da imprensa
associativa, criando uma comunidade alargada de leitoras e leitores e
reforçando o sentimento de pertença a um corpo social comum, na acepção de
Benedict Anderson.
O associativismo e a sua imprensa foram uma janela aberta sobre o movimento
feminista nacional e internacional, sobre o país e o mundo, ao trazerem para o
debate os problemas sociais e políticos e reclamarem para as mulheres o lugar a
que tinham direito. Durante a guerra, a imprensa associativa fez-se eco da
contribuição das mulheres dos países beligerantes para o esforço de guerra
tanto na frente interna como na frente de combate, apontada como exemplo a
seguir pelas portuguesas. Através das associações, as mulheres, embora privadas
de muitos dos direitos que reivindicavam, agiram no quotidiano como cidadãs,
ultrapassando muitas das barreiras que lhes tinham sido impostas.
A luta de um grupo alargado de
mulheres das elites urbanas letradas que, ao longo de quase três décadas
protagonizou o primeiro movimento feminista, saldou-se por algumas conquistas,
como a lei do divórcio, as leis da família que conferiam igualdade de direitos
aos cônjuges, a investigação da paternidade ilegítima, o acesso à função
pública e às carreiras jurídica e universitária e a licença de maternidade para
as professoras. A maior derrota foi, sem dúvida, a não concessão do direito de
voto, derrota mais difícil de aceitar pelo valor simbólico que as feministas
lhe atribuíam a ponto de se tornar a principal bandeira reivindicativa do
feminismo internacional, porque na perspectiva das activistas só o voto lhes
podia conferir a condição de membros da pólis,
dar-lhes a palavra na ágora e
permitir-lhes a participação política na condução da res publica. As feministas republicanas, tal como os seus
correligionários, pretendiam ser cidadãs livres, emancipadas e iguais em
direitos, mulheres modernas numa sociedade democrática que queriam construir ao
lado dos homens. Os símbolos da República eram inspiradores na luta por um
mundo mais justo e melhor, em que os ideais da liberdade, da igualdade e da
fraternidade fossem uma realidade num mundo em constante progresso material e
cultural.
As dirigentes feministas, Ana de Castro Osório,
Maria Veleda (1871-1955), Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Ângelo, mas também Ana
Castilho (?-1916), Mariana Silva (1867-1950), Filipa e Lídia de Oliveira, Beatriz
Pinheiro (1872-1922), Evelina de Sousa (1879-1946), Alice Moderno (1867-1946) e
ainda Elzira Dantas Machado (1865-1942) e as suas filhas, entre muitas outras,
constituíram-se na vanguarda mobilizadora do movimento com um plano
reivindicativo, apoiado no associativismo. Reivindicaram a igualdade de
direitos e intervieram nos acontecimentos, desde a propaganda republicana até à
defesa e consolidação do regime. Sempre que os ideais da República estavam em
perigo, elas marcavam presença, escrevendo, discursando, reunindo, conspirando,
protestando e manifestando-se. Aconteceu nas incursões monárquicas, na ditadura
de Pimenta de Castro e na participação de Portugal na I Guerra.
O feminismo português nas organizações internacionais e na diáspora
Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres
portuguesas fundaram cerca de duas dezenas de grupos e associações com fins
diversos mas todos eles pautados por uma maior intervenção social, cultural,
cívica e política, no desejo e na prática quotidiana de uma mais ampla
cidadania. Este movimento associativo não caminhou isolado mas sim integrado
internacionalmente, através das relações estreitas entre organizações similares
e federações, a permuta de periódicos,
a correspondência e as relações de amizade entre as feministas portuguesas e
estrangeiras, sobretudo com as da Europa e da América Latina. De salientar a
convivência das feministas portuguesas com figuras estrangeiras de destaque que
visitaram Portugal, como Gabrielle Alphen-Salvador (1856-1912), secretária do
Conseil National des Femmes Françaises; Belén de Sárraga (1854-1951), médica
feminista, republicana e livre-pensadora; Madeleine Pelletier (1874-1939),
médica feminista e jornalista que pretendeu reportar a campanha sobre o voto
feminino em Portugal; Paulina Luisi (1875-1949), que visitava frequentemente
Portugal e onde viveu alguns meses entre as suas deslocações aos Congressos
Feministas e Abolicionistas, nomeada sócia honorária do Conselho Nacional
das Mulheres Portuguesas e filiada nas Lojas Maçónicas Humanidade do
Grande Oriente Lusitano Unido e Humanidade do Direito Humano;
Carmen de Burgos (1867-1932), escritora feminista que visitou amiúde Portugal desde
1915 e onde viveu por largos períodos entre 1919 e 1926; Louise Ey (1854-1936) professora
e feminista que trabalhou muitos anos em Portugal e se empenhou na divulgação
do voto de Carolina Beatriz Ângelo na imprensa alemã; Elisa Soriano Fischer
(1891-1964), médica oftalmológica e presidente da Juventude Universitária Feminista
de Espanha que participou no Congresso Feminista e da Educação, em 1928.
O Internacionalismo do movimento português,
iniciado com o pacifismo, prosseguiu com a filiação da Associação de
Propaganda Feminista na International Women Suffrage Aliance, em
1911, e do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas no International
Council of Women, em 1914. Porém, a presença das portuguesas nos Congressos
Internacionais foi escassa, devido sobretudo à falta de recursos financeiros.
Em 1911, a Associação de Propaganda Feminista, convidada a comparecer no 6.º
Congresso da International Women Suffrage Aliance, realizado em
Estocolmo, fez-se representar pela secretária desta organização, Martina
Kramers (1863-1934). Em 1913, as portuguesas também não estiveram presentes no
7.º Congresso realizado em Budapeste, apesar de terem nomeado uma delegação de
sete dirigentes feministas para o efeito. O Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas também se fez representar por Avril de Sainte-Croix no
Congresso de Roma, em 1914, e por Paulina Luisi,
nos Congressos de Genebra e de Oslo, em 1920. O privilégio da representação
portuguesa coube a Adelaide Cabete, nos Congressos de Roma e de Washington, em
1923 e 1925, respectivamente.
Durante a Grande Guerra, as feministas das três associações mais representativas
declinaram os convites para participarem nos Congressos Internacionais
Pacifistas e alinharam pelo discurso patriótico e nacionalista em detrimento do
internacionalismo pacifista.
A influência do feminismo português no estrangeiro
também se verificou através da circulação da imprensa associativa, da
correspondência, sobretudo, a de Ana de Castro Osório com as feministas
francesas, espanholas e sul-americanas, e da mobilidade de algumas feministas.
Depois de Alice Pestana se ter fixado em Espanha, após o seu casamento com o
professor Pedro Blanco Suárez, em 1901, Ana de Castro Osório foi a dirigente
feminista que mais influência terá exercido no país vizinho. Graças à amizade
com a escritora espanhola Carmen de Burgos, deslocou-se a Madrid em 1920 a
convite desta, contactou com as feministas espanholas e influenciou a fundação
da Cruzada das Mulheres Espanholas à semelhança da Cruzada das
Mulheres Portuguesas, fundada em 1916, de que adiante se falará.
A Cruzada das Mulheres Espanholas foi
fundada em 1 de Agosto de 1920, por iniciativa de Carmen de Burgos e com a
participação das dirigentes do Conselho Nacional das Mulheres Espanholas
e da União das Mulheres de Espanha, entre outras. Com objectivos
diferentes da associação portuguesa, a Cruzada das Mulheres Espanholas
era eminentemente sufragista. Reivindicava a reforma do código civil, o
divórcio, a investigação da paternidade ilegítima, a igualdade entre filhos
legítimos e ilegítimos e o direito de voto. Em 30 de Maio de 1921, organizou a
primeira manifestação nas ruas de Madrid para entregar no Congresso um
manifesto com nove pontos que resumiam as aspirações de igualdade jurídica,
civil, social, económica e política e a abolição da prostituição regulamentada.
O manifesto foi apoiado por mulheres aristocratas, intelectuais, professoras,
estudantes, artistas e operárias e a manifestação surpreendeu os deputados, de
acordo com as noticias dos jornais O Heraldo e El Liberal.
Ana de Castro Osório e Elzira Dantas Machado terão
pertencido à Liga Internacional de Mujeres Ibéricas e Hispanoamericanas,
também conhecida como Liga de Mujeres de la Raza, fundada pela mexicana
Elena Arizmendi (1884-1949)
após o Congresso de Baltimore em 1922, para contrariar a hegemonia das
organizações anglo-saxónicas que se sobrepunham às do resto do continente e
menorizavam as mulheres hispanoamericanas. A intenção era contrapor àquelas a
força resultante da união das figuras e organizações ibero-americanas, numa
grande federação de raças que desvalorizasse as nacionalidades, uma utopia da
“raça cósmica”, pelo que as feministas Carmen de Burgos e Paulina Luisi
figuravam na presidência da nova Liga Internacional, com sede em Madrid e
comités em todos os países.
Ana de Castro Osório acompanhou o marido no seu
consulado em São Paulo, entre 1911 e 1914, onde contactou com as feministas
brasileiras, participou na vida cultural paulista e publicou na imprensa local,
como aliás, já o tinha feito antes, ainda que esporadicamente. Manteve
correspondência com Maria Lacerda de Moura,
a feminista rebelde brasileira
que facultou aos leitores da sua revista Renascença textos da feminista
portuguesa. Ana de Castro Osório ultrapassou os círculos feministas quando em
1923 revisitou o Brasil, por ocasião do centenário da independência, e proferiu
conferências em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Pelotas, Porto Alegre e
Santa Maria, das quais resultou o livro “A Grande Aliança”,
e alargou também o seu campo de influência ao público escolar com os seus
manuais didácticos, aprovados pelo governo brasileiro. No Rio de Janeiro, viveu também a feminista
Virgínia Quaresma que trabalhou como jornalista-repórter no jornal A Época
e em Curitiba, fixou-se a escritora Mariana Coelho (1857-1952) que se destacou
nos meios culturais, educativos e feministas do Brasil, caracterizada posteriormente
como a “Beauvoir Tupiniquim”.
O feminismo português também se estendeu a África e
ao Oriente. Em 1929, a dirigente feminista Adelaide Cabete, desiludida com a
ditadura militar instalada em 28 de Maio de 1926, emigrou para Angola e fixou-se
em Luanda até 1934, onde exerceu a medicina, defendeu os direitos dos indígenas
e votou a Constituição de 1933. Domingas Lazary do Amaral, professora feminista
e republicana, foi a representante da Liga Republicana das Mulheres
Portuguesas em Luanda e colaborou nas organizações feministas da época. Escreveu
na imprensa associativa e em 1916 denunciou nos jornais A Capital e A
Semeadora a situação das mulheres que se encontravam no Depósito Geral de
Degredados, sujeitas aos abusos sexuais dos próprios carcereiros e promoveu uma
campanha pela “moralização dos usos e costumes dentro do Depósito…”
que se estendeu à imprensa angolana e à de Lisboa e Porto. Apesar dos cortes da
censura aos seus artigos e de ser processada judicialmente, ela não receou reclamar
uma investigação sobre o que se passava naquele estabelecimento prisional para
que se acabasse com a impunidade e se fizesse justiça. Fixada em Lisboa,
pertenceu aos órgãos directivos do Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas e, na década de vinte, colaborou na organização do Congresso
Feminista e da Educação e do Congresso Abolicionista. A Cruzada das Mulheres
Portuguesas também teve uma subcomissão em Amboim, Gabelas, Angola,
constituída por Beatriz Alves Ferreira, Ema Alves Ferreira e Idalina Carvalho,
para apoiar os combatentes na frente africana.
De Ribandar, na Índia, a professora feminista Maria
Ermelinda de Stuart Gomes fazia chegar ao jornal A Semeadora e às
revistas Alma Feminina e Portugal Feminino textos sobre a
situação das mulheres indianas e asiáticas. Foi conferencista na I Exposição
Colonial Portuguesa,
em que dissertou sobre o mesmo tema e escreveu também algumas obras sobre a
história dos portugueses na Índia. Quando fixou residência em Portugal presidiu
à Secção de Educação do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Já
na década de 30 do século XX, outra escritora feminista se destacou em Goa,
Rosalina Filomena da Cunha e Soares Rebelo (1908-2007) que escreveu na imprensa
local e na revista Portugal Feminino. Os seus escritos feministas e
literários estão reunidos no livro intitulado “Ao sopro das brisas fagueiras do
Índico”,
destacando-se os dez artigos sobre o movimento feminista no mundo, na Ásia e na
Índia portuguesa, escritos em Nova Goa, entre 1930 e 1935.
Mobilização e migração feminina na Guerra de 1914-1918
A I Guerra Mundial surpreendeu as feministas
portuguesas ainda mal refeitas da não concessão do voto feminino na lei
eleitoral de 1913. Entre as esperanças das petições e representações aos órgãos
de soberania e as desilusões que se seguiam a cada legislação e a cada acto
eleitoral, as feministas confessavam-se atraiçoadas pelos correligionários mas
continuavam fiéis à República, porque os ideais estavam acima dos homens. Aos
olhos das pacifistas que, como Maria Veleda,
partilhavam a ideia do “natural” pacifismo feminino, ligado ao mito da
maternidade, a Guerra desencadeada em Agosto de 1914 era fruto da tirania do
imperialismo militarista que, movido pelos interesses económicos e coloniais, fazia
tremer o mundo no regresso à barbárie e punha em perigo os valores da civilização,
da liberdade, da democracia e da igualdade de povos, raças e sexos. Todavia, com
a guerra a alastrar por toda a Europa, as feministas puseram de lado os
compromissos com o pacifismo e a fraternidade internacional e abandonaram a
luta pelo voto para apoiarem os projectos belicistas dos governos nacionais, em
nome do patriotismo, apresentado como “benigna e respeitável forma de
nacionalismo”.
No início, a Liga Republicana das Mulheres
Portuguesas, pela voz da dirigente Maria Veleda, declara “guerra à guerra”
e apela à revolta do povo para esmagar nas suas mãos ciclópicas “a cabeça da
víbora da tirania”
mas, perante a inevitabilidade do conflito, apoia também o programa do Partido
Democrático e defende a participação de Portugal ao lado da Inglaterra. Ana de
Castro Osório, que não acreditava na paz perpétua e defendia o militarismo, via
na guerra uma oportunidade para as mulheres mostrarem o valor e capacidades de
gestão da vida familiar e social, intervir na economia, trabalhar em todas as
actividades e participar nas decisões políticas do país. O exemplo do
voluntarismo e empenho das mulheres dos países beligerantes, belgas, francesas,
inglesas e russas, que trabalhavam no campo, nas fábricas, nos serviços e no
apoio aos exércitos, chegavam a Portugal através da imprensa e serviam de
incentivo para a mobilização das portuguesas. Todas acreditavam que trabalhando
na frente interna em prol dos interesses da Pátria seriam recompensadas com a
concessão de direitos de cidadania.
O futuro iria demonstrar que as mulheres ficam sempre reféns das políticas de
guerra. Durante o conflito, substituíram os homens e asseguraram a manutenção
da sociedade civil, ganharam autonomia e desenvolveram competências e
responsabilidades mas no pós-guerra foram remetidas para o lar para dar lugar
os homens e incentivadas a repor a população perdida; valorizou-se a
maternidade e reforçaram-se os mitos das identidades de género.
Ainda em 1914, Ana de Castro Osório, Ana Castilho
(?-1916), Antónia Bermudez e Maria Benedicta Mouzinho de Albuquerque Pinho
(1864-1939) fundaram a Comissão Feminina “Pela Pátria” para fazer propaganda
patriótica e orientar o trabalho feminino no esforço de guerra. Comprometeram-se
a bordar uma bandeira para os soldados portugueses levarem para a frente, a confeccionar
agasalhos e a recolher donativos para apoiar os combatentes. Esta Comissão,
nascida no seio da Associação de Propaganda Feminista e apoiada pela Liga
Republicana das Mulheres Portuguesas, mobilizou sobretudo as militantes
professoras que ensinavam as alunas a tricotar e a costurar peças de vestuário
para os soldados que já combatiam em África. Com a declaração do estado de
guerra em Março de 1916, monárquicas e republicanas automobilizam-se para o
apoio material e moral aos combatentes, famílias e órfãos, antecipando-se a
qualquer iniciativa governamental de mobilização feminina. Apesar de a guerra
das trincheiras se mostrar longa e devoradora de homens e de armas, os governos
demoraram a admitir que as mulheres eram necessárias para substituir os homens
em todos os sectores de actividade e nem todos as mobilizaram oficialmente. Em
Portugal, apesar de Ana de Castro Osório chamar a atenção do governo para
recorrer ao concurso das mulheres, este preferiu delegar na Cruzada das
Mulheres Portuguesas a função de uma mobilização oficiosa, através da
“Inscrição Patriótica”
lançada em Abril de 1916.
As
monárquicas e católicas também vieram a público manifestar o seu apoio material
e moral aos combatentes, criando para o efeito a Assistência das Portuguesas
às Vítimas da Guerra. Sob a presidência da Condessa de Burnay, Maria Amélia
de Carvalho Burnay (1847-1924), que mais tarde cedeu o lugar à Condessa de
Ficalho, Maria Josefa de Mello (1863-1941), esta associação reunia as senhoras
da aristocracia e da alta burguesia que ainda há pouco tempo frequentavam a
Corte e os corredores do poder e que a República relegou para o plano das
vencidas. Detentoras de grande poder económico, ligadas à propriedade
fundiária, aos grandes negócios e à alta finança, sempre exerceram a
filantropia, a caridade e a beneficência nas associações pias de inspiração
cristã. Apesar de estarem alguns anos afastadas do espaço público, com a
declaração de guerra da Alemanha a Portugal, mobilizaram-se, tomaram a palavra
e dispuseram-se a agir, procurando restabelecer o lugar e a influência que
detinham na sociedade. Sob o lema da caridade e do bem-fazer ou porque
pretendiam contribuir para a modernização da assistência hospitalar com a
introdução da enfermagem laica feminina, apesar de discordarem do regime
político e, quiçá, da política intervencionista do governo da União Sagrada,
demonstraram o seu patriotismo ao contribuírem para o esforço de guerra.
À
semelhança do que acontecia nos outros países beligerantes, pretendiam servir o
país como enfermeiras, ombreando com as mulheres do povo, animadas “na mesma
fé, no cumprimento nobilíssimo do dever”. Tendo
em conta a natureza da guerra que se travava e o poder das armas utilizadas,
haveria muitos feridos para tratar e as baixas seriam enormes, o que suscitava
outra preocupação às católicas face à
laicização do Estado e da sociedade; a assistência religiosa aos combatentes
estava em risco. O Dr. Thomas de Melo Breyner (1866-1933), monárquico e
católico que as incentivava e as apoiava na retaguarda,
foi um dos mais visíveis defensores da presença dos capelães junto dos soldados,
combatida pelos sectores mais radicais do anticlericalismo republicano e
protelada pelo governo que se recusou a despender qualquer verba para os
remunerar.
O projecto de formar enfermeiras de guerra,
acarinhado pelos médicos Tomás de Melo Breyner, Reinaldo dos Santos e Domitila
de Carvalho, não vingou por decisão do governo que receava o poder e influência
do movimento monárquico e católico. O Ministro do Interior determinou que as
candidatas a enfermeiras frequentassem os cursos de enfermagem entretanto
abertos pela Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha. Esta instituição já tinha
aberto seis cursos de enfermagem no início de 1915 e, após a declaração de
guerra da Alemanha a Portugal, abriu outros tantos, entre Abril e Julho de
1916, em que se inscreveram cerca de 130 mulheres, muitas delas ligadas à
aristocracia monárquica, como a Condessa de Ficalho, então com 53 anos. De
salientar que grande parte destes cursos foram ministrados pela médica
feminista e pacifista Maria do Carmo Lopes, membro da Comissão Central da Cruz
Vermelha. Nos três anos de guerra que se seguiram a Cruz Vermelha manteve
sempre cursos abertos para suprir as necessidades dos seus hospitais, visto que
nem todas as diplomadas exerciam depois a profissão.
Coarctada nas suas ambições, a Assistência das
Portuguesas às Vítimas da Guerra limitou-se à recolha de fundos para
auxiliar as famílias dos soldados, as crianças mais desfavorecidas e os órfãos
de guerra, à confecção de agasalhos e ao apoio moral aos combatentes. Fundou a
Casa da Assistência, a Casa Maternal e um Dispensário para assistência médica,
medicamentosa e alimentar. A recolha de donativos tomou maior expressão com a
Festa da Flor realizada em 1916, por iniciativa do jornal O Século e em
que participaram monárquicas e republicanas. Realizada depois de forma
autónoma, em 1917 e 1918, sob a coordenação de Genoveva de Lima Mayer
(1886-1963), envolveu mulheres de Lisboa, Porto e Coimbra e rendeu quantias
consideráveis de modo que aquela responsável pretendeu aplicá-las na criação de
um hospital para os combatentes psicologicamente afectados pelo trauma da
guerra, ideia inovadora que antecipa em mais de 50 anos o reconhecimento do
“stress de guerra”.
Sofia de Carvalho de Melo Breyner (1875-1948),
tomou a direcção da Obra das Madrinhas de Guerra, ideia importada de França por
Jane Bensaúde e que mobilizou mulheres de várias idades e diversos estratos
sociais para o apoio material e moral aos combatentes e respectivas famílias.
Os capitães militares mediavam o processo de envio de cartas, livros, instrumentos
musicais e objectos religiosos. Os republicanos acusavam-nas de sectarismo
político e religioso e de se aproveitarem da fragilidade psicológica de quem
convivia diariamente com a morte para catequizar e apelavam ao governo para que
se acautelasse o respeito pelo dever de elevar o ânimo patriótico dos soldados.
Se os anticlericais consideravam o movimento das madrinhas de guerra “um filão
de propaganda religiosa, nociva aos combatentes”, um capelão do CEP, o padre
Avelino de Figueiredo, elogiava-as porque “consolavam muita lágrima, matavam
muita fome e suavizavam muita amargura”.
Com os
mesmos fins nasceu em Coimbra a Sociedade da Cruz Branca, sob os
auspícios de Maria Isabel Oliveira Pinto da França de Tamagnini de Abreu e
Silva (1861-1949) que, depois de o seu marido ter sido nomeado comandante do
CEP, cedeu a presidência à Condessa do Ameal, Maria Benedita Barbosa Falcão de
Azevedo Bourbon (1879-1957). Não se lhe conhecem iniciativas próprias mas
colaborou com a Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra na
Festa da Flor e no movimento das madrinhas de guerra. No Porto, a enfermeira da
Cruz Vermelha, Ana José Guedes da Costa (1860-1947), criou a Liga das
Mulheres Portuguesas, em 1917, para apoiar os feridos de guerra e as suas
famílias e organizou também a Festa da Flor para recolha de fundos. Chefiou o
corpo de enfermeiras no Hospital da Cruz Vermelha, instalado no Hospital de
Crianças Maria Pia, que tratou os combatentes e os civis vítimas do tifo
exantemático, e fundou no seu próprio solar em Mancelos, Vila Meã, um hospital
para tratar os doentes da gripe pneumónica. Visando os mesmos fins, outras
associações foram criadas por esse país fora, das quais resta apenas um efémero
rasto nos periódicos da época. A falta de tradição na preservação dos espólios
documentais respeitantes às actividades femininas cria grandes entraves à
reconstituição historiográfica do passado e, sobretudo, à reescrita da História
das Mulheres.
A conjuntura política beneficiaria as pretensões das
republicanas. Declarado o estado de guerra em Portugal, elas apressaram-se
também a informar a opinião pública de que estavam dispostas a protagonizar a
manutenção da sociedade civil e a ter um papel relevante na frente interna e
externa. Por iniciativa de Elzira Dantas Machado, esposa do Presidente da
República, fundaram a Cruzada das Mulheres Portuguesas, “uma instituição
patriótica e humanitária, destinada a prestar assistência ao que dela
necessitarem por motivo do estado de guerra com a Alemanha”.
O núcleo fundador na nova associação era
constituído por quase uma centena de mulheres da elite republicana, entre as
quais se contavam as esposas, filhas e parentes próximas dos membros do governo
da União Sagrada com relevo para os do Partido Democrático. Foi a única
colectividade que agregou mulheres sem qualquer militância associativa e as
velhas activistas do movimento feminista republicano.
A Cruzada, ao assumir-se como herdeira da Comissão Feminina «Pela Pátria», propondo-se
ampliar as valências e o alcance da mesma, veio confirmar a matriz feminista e
a sua origem no seio da Associação de Propaganda Feminista, cujas
mentoras foram as dirigentes, Ana de Castro Osório, Antónia Bermudez, Elzira
Dantas Machado e suas filhas. Constituída por nove comissões autónomas, o
trabalho era coordenado pela Comissão Central e pela Comissão Administrativa e
direccionado para áreas específicas, como a propaganda e organização do
trabalho, a enfermagem, a hospitalização, o apoio aos mobilizados, às mulheres
e às crianças e jovens.
Na retaguarda estavam também os homens. O debate de
ideias, os compromissos e as alianças políticas tecidas em torno das relações
familiares e dos círculos de amizades terão pesado na criação da Cruzada das
Mulheres Portuguesas, que nasceu sob a égide do governo e teve a sua
protecção até ao advento do Sidonismo. As esposas dos governantes e
republicanos mais influentes presidiam às comissões e obtiveram benefícios que
facilitaram a sua organização e actuação. Foram-lhes concedidos edifícios, a
isenção de franquia postal, autorização para uma lotaria patriótica e direitos
e garantias nacionais e internacionais que pertenciam exclusivamente à
Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, pela Convenção de Genebra.
A Cruzada vai cumprir assim a antiga ambição da Liga Republicana de formar
enfermeiras, abrindo uma nova profissão de prestígio às mulheres e contribuir
para a modernização das estruturas de saúde, começando pela ampliação da rede
hospitalar do exército.
No antigo Colégio Jesuíta de Campolide fundou o
Instituto Médico-Cirúrgico, no antigo Convento dos lazaristas, em Arroios,
organizou o Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra e no Hotel Plage de
Hendaia, cedido pelo casal Martineau, criou o Hospital de Recuperáveis que
recebia os feridos em trânsito de França para Portugal. Preocupadas com as
mulheres dos mobilizados que ficaram sem meios de sobrevivência com a partida
dos maridos, a Cruzada fundou a Casa do Trabalho em Xabregas para ensinar uma
profissão e dar trabalho às que pudessem e quisessem trabalhar. Também se
substituiu ao Estado, atribuindo subsídios às mais desfavorecidas, aconselhando
e ajudando na obtenção de pensões de sangue, legalizando casamentos e filhos
ilegítimos, encaminhando outras para empregos previamente referenciados e
sensibilizando entidades públicas e privadas para empregarem as mulheres dos
combatentes. A Casa do Trabalho dedicava-se à confecção de roupa branca,
costura, bordados, alpercataria, chapéus e outros adereços. Fornecia casas
comerciais da Baixa de Lisboa e costurou toda a rouparia dos hospitais fundados
pela Cruzada. Junto das oficinas criou-se a creche “O Viveiro” onde as mães
podiam deixar os filhos pequenos. A educação, tão cara às feministas
republicanas, fez parte do programa de acção da colectividade. Para as jovens
raparigas, filhas dos mobilizados, fundou-se a Escola Profissional n.º 1, no
Largo da Graça, e a Escola Agrícola Feminina no Posto de Alcobaça. As rendas e
bordados tradicionais também foram incentivados através da criação de escolas
em Setúbal, Viana do Castelo e Farminhão-Viseu. Os órfãos foram acolhidos e
educados na Obra Maternal, fundada pela Liga Republicana das Mulheres
Portuguesas, em 1909 e que transitou para a Cruzada em 1916. Instituiu
também a Obra dos Afilhados de Guerra, promoveu as Festas da Flor no Jardim da
Estrela, recolheu e enviou donativos, livros e revistas para os combatentes e
apoiou os prisioneiros de guerra.
A Cruzada fundou 72 subcomissões no país e algumas
nas colónias e nas comunidades portuguesas emigradas, sobretudo no Brasil. A
subcomissão feminina da Grande Comissão Portuguesa «Pró-Pátria»,
fundada no Rio de Janeiro em Março de 1916, secundou no Brasil a obra
“benemérita e patriótica” da Cruzada, recolhendo donativos junto dos
portugueses, através de subcomissões locais, como a de S. Paulo e de Juiz de
Fora, que eram canalizados para as obras de guerra da Cruzada. A subcomissão
feminina «Pró-Pátria» era constituída por Eulália Falcão Leite, esposa do
embaixador Duarte Leite Pereira da Silva, a esposa do Cônsul-geral do Rio de
Janeiro, Alberto de Oliveira, a Condessa de Avelar, provavelmente, esposa do
Conde António Gomes de Avelar, e ainda outras senhoras da elite portuguesa
emigrada, como a Baronesa de Peixoto, Eugénia Rainho da Silva Carneiro,
Margarida Cândida Teixeira Taborda, Margarite Emerat Gomes Barbosa, Maria de
Carvalho Santiago Silva, Maria Pinheiro Carvalhaes e Zulmira Constante.
A Grande Comissão «Pró-Pátria» que uniu os portugueses do Grémio Republicano e
da Liga Monárquica, tinha como objectivo principal a criação de uma instituição
que acolhesse e educasse os órfãos de guerra. Apesar dos entraves do governo, construiu
o Asilo-Escola Pró-Pátria para os Órfãos de Guerra, na Quinta dos Vales, em
Coimbra, património que viria a ser doado ao Estado Português nos anos 30 e
transformado no Hospital Sanatório da Colónia Portuguesa do Brasil e mais tarde
conhecido como Hospital dos Covões. A comunidade portuguesa do Brasil, através
da Grande Comissão Pró-Pátria, foi a maior contribuinte da Cruzada das Mulheres Portuguesas e a maior doadora da subscrição de
guerra aberta pela Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha em Março de 1916. Esta
baptizou uma enfermaria do seu Hospital em Ambleteuse com o nome “Portugueses
do Brasil”.
A elite republicana do Porto também se mobilizou em
torno da Junta Patriótica do Norte, fundada em 8 de Março de 1916. Apresentada
como uma colectividade de carácter cívico, “apenas fiel aos sentimentos
republicanos”, destinava-se a apoiar material e moralmente os combatentes,
defendendo os seus direitos e exaltando a memória dos que tombassem em defesa
da Pátria, e prestar assistência aos filhos órfãos ou necessitados.O
Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte,
sob a presidência de Filomena Nogueira de Oliveira e constituído por 21
mulheres que se assumiam como democratas e patriotas, organizaram e dirigiram a
Casa dos Filhos dos Soldados para acolher e educar os órfãos de guerra.
Recolheram donativos, organizaram actividades culturais e de lazer para
angariar fundos, estabeleceram um sistema de quotas de associada/os,
benfeitora/es, subscritora/es, doadora/es e contribuintes fixos, singulares e
colectivos e promoveram a figura do “padrinho de guerra” que adoptava um ou
mais órfãos e suportava as despesas da sua educação. A Casa garantia aos
internados a instrução primária, a formação complementar de ginástica, música e
teatro e a educação moral e cívica. Os rapazes eram encaminhados para a
aprendizagem de uma profissão técnica e as raparigas aprendiam costura, rendas,
bordados e cozinha. Havia também a preocupação em lhes proporcionar os
divertimentos indispensáveis a um crescimento harmonioso e desenvolver-lhes o “espírito
de solidariedade, de união e utilidade social.”
Esta
obra de guerra sobreviveu até aos nossos dias, como orfanato, escola e lar dos
filhos dos combatentes, adaptando-se às contingências da história do país.
Os prisioneiros de guerra foram uma das grandes
preocupações do Comité Internacional da Cruz Vermelha que fundou a Agência
Internacional dos Prisioneiros de Guerra para centralizar a informação
fornecida pelas sociedades nacionais da Cruz Vermelha de todos os países
beligerantes. Desde que Portugal entrou na guerra, a Sociedade Portuguesa da
Cruz Vermelha nomeou uma Comissão que se encarregava de informar sobre a
localização dos prisioneiros, estabelecer a comunicação com os familiares e
entregar encomendas, além de hospitalizar e tratar os doentes alemães detidos
em depósitos concentracionários portugueses em África, Angra do Heroísmo,
Peniche e Caldas da Rainha. Com a batalha de La Lys foram cerca de 7.000
os prisioneiros portugueses que caíram em poder dos alemães, distribuídos
depois por 52 campos. A Comissão dos Prisioneiros de Guerra da Sociedade
Portuguesa da Cruz Vermelha publicava as listas com os nomes e os campos em que
se encontravam e enviava cartas, alimentos e agasalhos. O Comité Internacional
diligenciava junto dos governos para que os direitos dos prisioneiros fossem
respeitados e se procedesse à sua libertação de forma faseada, mas Portugal
ficou de fora dos tratados entre países beligerantes. As mulheres, esposas, mães,
irmãs e filhas dos prisioneiros ou desaparecidos na guerra, criaram em 1919 a
Comissão Protectora dos Prisioneiros de Guerra Portugueses,
em resposta ao apelo de Lívia Magalhães Coutinho Fachada, visando recolher
donativos e exercer pressão sobre o poder político para negociar o
repatriamento ou o internamento em país neutro, quando os prisioneiros se
encontrassem incapazes de resistir à viagem de regresso. A Comunidade
portuguesa emigrada em Lausanne fundou também em 1917 o Comité de Socorros aos
Militares e Civis Portugueses Prisioneiros de Guerra.
A iniciativa partiu do embaixador de Portugal em Berna, António Bartolomeu
Ferreira e do Visconde de Faria, cônsul-geral de Portugal em Lausanne. O Comité
trabalhou em colaboração com a Agência Internacional de Prisioneiros de Guerra
da Cruz Vermelha e a Associação Pietas, dirigida por Óscar Watteville, e
contou com o empenho da Condessa de Penha Garcia para o envio das encomendas,
colis, para os campos de prisioneiros na Alemanha.
As enfermeiras foram à
guerra
Outro
grupo bastante numeroso de voluntárias dedicadas ao serviço dos feridos e
doentes de guerra foram as enfermeiras formadas pela Cruzada da Mulheres Portuguesas e pela Sociedade Portuguesa da Cruz
Vermelha. As duas instituições impunham regras bastante exigentes às candidatas
mas isso não impediu que muitas frequentassem os cursos, apesar de uma grande
parte não exercer depois a profissão nos hospitais militares. Exigia-se, além
das qualidades profissionais, grande abnegação, máxima disciplina, absoluto
desinteresse, altas virtudes cívicas e comportamento moral irrepreensível. Todas
desejavam corresponder ao apelo patriótico que mobilizava a sociedade
portuguesa mas, acima de tudo, pretendiam aceder a uma profissão digna do seu
estatuto social, muito valorizada na conjuntura da guerra. Parece haver uma
clara distinção de classe e de ideologia política entre as enfermeiras da Cruzada e as da Cruz Vermelha. Salvo
raras excepções, as primeiras situavam-se na média burguesia enquanto as
segundas pertenciam à alta burguesia e algumas tinham fortes ligações à aristocracia,
estando estas muito próximas da Assistência
das Portuguesas às Vítimas da Guerra. É o caso da Chefe das Enfermeiras do
Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa em Ambleteuse, Maria Antónia Jervis
d’Atouguia Ferreira Pinto Basto (1852-1930), a
Chefe das Enfermeiras do Hospital da Cruz Vermelha no Porto, Ana José Guedes da
Costa, as Damas Enfermeiras Eugénia Manoel, Luísa Zarco da Câmara, Maria da
Câmara Leme, Maria de Jesus Zarco da Câmara, Maria Eugénia da Gama Ochôa e Maria
Mayer.
As
enfermeiras da Cruzada prestaram
serviço, sobretudo, nos Hospitais Militares da Estrela e de Belém, no Instituto
Médico-Cirúrgico de Campolide e no Instituto de Reeducação dos Mutilados de
Guerra. Receberam formação especializada em tratamento e técnicas de reabilitação
de feridos graves, sendo louvadas pelo profissionalismo, os cuidados e o
carinho dispensados aos mutilados, muitos dos quais se reinseriram social e
profissionalmente. Algumas viveram a guerra mais perto das linhas da frente, ao
prestarem serviço no Hospital de Recuperáveis de Hendaia e nos hospitais do
Corpo Expedicionário Português.
As
Damas-Enfermeiras da Cruz Vermelha foram as primeiras a pisar solo francês, em
Novembro de 1917. O governo conferiu a Antónia d’Atoughia Ferreira a
equiparação à patente militar de tenente e às Damas-Enfermeiras a equiparação a
alferes. Ao partirem para França já levavam na bagagem, além do diploma,
bastante experiência dos cuidados prestados aos feridos e doentes da guerra no
Hospital Temporário da Cruz Vermelha, instalado na Vila de Santo António na
Junqueira, edifícios oferecidos pela Condessa de Burnay. Muitas delas levavam
também a experiência da montagem de enfermarias, salas de operações e
laboratórios do mesmo hospital, em que participaram sob a chefia de Antónia
d’Atouguia Ferreira. Quando chegaram a Boulogne-sur-Mer, o Hospital da Cruz
Vermelha em Ambleteuse ainda não estava concluído e elas ofereceram-se para
prestarem serviço no Hospital da Base do CEP.
O
Hospital da Cruz Vermelha foi inaugurado no dia 9 de Abril de 1918 que, por
coincidência, teve de receber um número extraordinário de feridos graves,
devido à Batalha de La Lys. Algumas
destas Damas-Enfermeiras, por discordância dos termos do contrato de trabalho
ou porque pretendiam estar mais próximas das linhas da frente, trabalhando em
hospitais de sangue ou em ambulâncias, desligaram-se da Cruz Vermelha e colocaram-se
ao serviço do Exército, em Agosto de 1918. No fim da guerra, com o
desmantelamento do Hospital da Cruz Vermelha, em princípios de 1919, outro
grupo de enfermeiras transitou também para a dependência directa do Exército,
de modo a assegurar a continuidade do exercício da profissão nos hospitais militares
em Portugal.
De assinalar estes factos, por ser inédita, há quase cem anos, a incorporação
das mulheres nos quadros militares.
Ir
para a guerra e viver a experiência de guerra terá representado a oportunidade
de participar, tal como os homens, na honra e grandeza da Pátria, mas também
protagonizar a construção de uma profissão de mérito, ganhar uma nova liberdade
e maior consciência política e contribuir para o avanço da conquista de
direitos e da emancipação feminina. Deixaram o conforto do lar e os afectos da
família e migraram para França, para o doloroso quotidiano da guerra na
Flandres, junto da Base do Corpo Expedicionário Português. As tropas
portuguesas encontravam-se na região do rio Lys, num corredor de 12 a 18 kms,
entre as colinas de Aras e Armentiéres, uma planície muito fria e húmida,
cortada por canais e drenos que, após as chuvas e a neve, se transformavam em
lamaçais intransitáveis. Era um clima doentio ao qual algumas enfermeiras e
médicos resistiram com muita dificuldade.
Enfrentaram
a barreira da língua francesa com os habitantes locais, pois a convivência e os
cuidados prestados por ocasião da pneumónica assim o exigiram e com a língua
inglesa porque havia relações profissionais e sociais com as enfermeiras e
médicos dos hospitais ingleses. Apesar das dificuldades, privações e provações,
nunca lhes faltou o ânimo para socorrer os feridos, cuidar dos doentes, amparar
os moribundos, consolar e animar os amputados, escrever cartas de saudade e de
despedida em nome daqueles que não sabiam ou não podiam escrever, espantar os
medos, tomar o lugar de confidentes, irmãs, companheiras e mães espirituais e
ter ainda tempo para amenizar o ambiente hospitalar com o toque feminino das
flores e plantas, dos enfeites nas celebrações do Natal, na improvisação do
palco para o teatro e a música.
O
rigor, a ordem, a higiene, a obediência e a disciplina eram as palavras de
ordem nestes hospitais dirigidos por militares exigentes, por vezes pouco
condescendentes com as pequenas insubordinações ou pequenas falhas no respeito
pelas hierarquias. Todavia, foram exemplares no desempenho da profissão; elogiadas
pela educação e cultura, reconhecidas pela competência técnica e louvadas pela
abnegação, dedicação e virtudes cívicas. As que participaram na assistência aos
feridos da Batalha de La Lys foram louvadas oficialmente pelo CEP pela
inexcedível ajuda prestada aos médicos, pelo voluntarismo e o carinho
dispensado aos feridos.
As
enfermeiras tiveram um papel fundamental no quadro da guerra, pela dedicação e
empenho ao serviço dos outros e pelo pioneirismo no exercício de uma profissão
militarizada que invadiu o território masculino e testou os limites da
resistência física e psicológica feminina. Num mundo de homens, enfrentaram
resistências e preconceitos mas tornaram mais fluidas as fronteiras de género.
A aventura da experiência de uma maior liberdade, autonomia e independência pessoal
que representou partir para trabalhar num cenário de guerra revelou-se áspera e
difícil, física e psicologicamente. Elas tentaram que o sofrimento e a revolta
perante a mutilação e a morte de tantos jovens não lhes tolhessem a coragem e não
lhes quebrassem a resistência moral. Resistiam para que o sofrimento, o medo e
a morte não as fizessem descrer nos valores da honra e do patriotismo e no
orgulho do dever cumprido. A Pátria estava longe mas também presente na alma
destas mulheres que no quotidiano contribuíam para a dignificação e elevação da
imagem das portuguesas e para a transformação das relações de género.
George
Mosse
afirma que o mito da experiência da guerra reforçou a imagem da virilidade
masculina e não alterou a imagem da feminilidade, apesar de as enfermeiras no
campo de batalha serem louvadas e admiradas e a sua coragem sublinhada, elas
continuaram a ser olhadas como anjos de misericórdia à margem do combate, numa
atitude meramente passiva. Ora, não é esta a imagem que ressalta dos estudos de
Françoise Thebaud, Susan Grayzel e Luc Capdevila,
entre outros: as mulheres de todos os países aderiram aos programas dos
governos nacionais, criando obras que suavizassem o sofrimento resultante da
experiência bélica, substituindo os homens em todas as actividades,
esforçando-se por manter a ordem familiar e social, conquistando terreno
tradicionalmente masculino, ganhando autonomia, reconstruindo identidades,
esbatendo fronteiras nas relações de género e avançando no processo de
emancipação e igualdade entre os sexos.
Todavia, estes ganhos
foram provisórios, visto que no pós-guerra houve um retorno à ordem social
anterior, com o reforço dos mitos das identidades, das relações de género e dos
valores da maternidade. Stefania Bartoloni
afirma que na guerra, as enfermeiras militares, actuando em nome da Pátria,
alteraram a imagem de si próprias, justificaram acções que antes lhes eram
interditas, ousaram o impensável, viveram a experiência de guerra, isto é, fizeram
a guerra. A guerra foi um tempo intermédio, uma fase de suspensão das regras,
um parcial descongelamento das identidades, inclusive das identidades de
género. A guerra não revolucionou a condição feminina nem modificou a
assimetria entre os dois géneros mas favoreceu a mobilidade, a visibilidade e a
autonomia de muitas mulheres, facto relevante para a época, dando um golpe
definitivo no rígido modelo oitocentista e delineando uma nova identidade feminina
mais complexa que se irá afirmando e reconstruindo ao longo do século XX e
continua, por ventura, em permanente e eterna reconstrução
Alice Pestana (1898), La Femme et la Paix. Appel aux mères portugaises, Lisboa, Imprensa Nacional.
Os
símbolos da liberdade eram os mais representados na figura da República: o
barrete frígio vermelho e a grinalda verde, tecida com os ramos da mítica
árvore da liberdade, que lhe cobrem a cabeça, o peito desnudado que simboliza a
luta contra o preconceito, as cadeias abertas que marcam o fim da escravidão, e
ainda, o livro das novas leis que instituiria a igualdade e a justiça social, o
facho com a chama que ilumina a esperança num mundo novo e a espada para
combater os inimigos da Pátria e da Revolução.