"Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo" 9 de Março de 2012 – 15h Biblioteca Municipal de Espinho
OAM "Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo" Espinho – Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva 9-03-2012 Página 1 de 11
Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Espinho, Dra. Leonor Lêdo da Fonseca
Senhora Directora da Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva, Dra. Andrea Martins,
Senhora Profa. Dra. Elisabete Battista
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Boa tarde
Apresento os meus agradecimentos à «Associação Mulher Migrante», na pessoa da Sra. Dra. Manuela Aguiar, por esta iniciativa: "Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo".
Foi com muito prazer que aceitei vir até Espinho falar, sobre a minha tia-avó, neste espaço que tanto seria do agrado de Maria Archer.
Aos alunos da Escola Básica e Secundária Domingos Capela os meus parabéns pela entrevista imaginária a Maria Archer. Foi um momento inesquecível, ouvir hoje, através de jovens estudantes, a voz de Maria Archer, mais de um século, após o seu nascimento.
Ao imaginar como vos deveria apresentar Maria Archer recordei-me de um Inquérito às Mulheres Portuguesas que o semanário "O Diabo", dirigido por Ferreira de Castro, corria o ano de 1935, lançou. ("O Diabo", Lisboa, 03/11/1935, Ano II, n.º71).
Penso que nada será mais autêntico do que reencontrarmo-nos com Maria Archer através das suas próprias palavras.
Permitam-me, então, que vos leia os considerandos de Maria Archer sobre questões, ainda e sempre, tão actuais como "A mulher, o feminismo e o pacifismo – O papel social do Amor – O trabalho feminino – A maternidade – A época em que a mulher foi mais feliz".
"Fala a escritora Maria Archer
Maria Archer, escritora e jornalista, respondendo ao nosso inquérito, começa por nos manifestar as suas impressões sobre a dificuldade de se dar uma resposta concisa e genérica a determinadas perguntas que é costume fazer-se em relação à vida espiritual das mulheres.
E diz:
MA -As aspirações da Mulher são muitas: a maior parte delas, porém, não se confessa.
O Diabo - Há certamente algumas que se impõem…
MA - Sim. Acima de tudo a Mulher deseja o reconhecimento da sua categoria de criatura socialmente humana. É que, presentemente a mulher é ainda um animal doméstico.
O Diabo - Quanto ao feminismo… Qual a sua maior preocupação?
MA - A de conseguir para a mulher a independência em todos os seus aspectos.
O Diabo - Existe a Nova Mulher?
MA - A 60.º latitude Norte, talvez os homens consintam no aparecimento deste fenómeno.
O Diabo - Que impressões possui sobre o trabalho feminino?
MA - O trabalho é sempre um meio de subsistência. Para a mulher entretanto não chega a ser isso. No futuro, o trabalho será aquilo que havemos de ver quando o futuro fôr presente.
O Diabo - Sobre o ideal pacifista na mentalidade feminina?
MA - Presentemente existe. Será sempre assim? É difícil um julgamento… A mulher não é melhor do que os homens…
Ante um sorriso, Maria Archer completa o seu pensamento:
MA - A mulher, tanto como o homem, será pacifista ou não - segundo o seu grau de civilização. É natural que a mulher hotentote não deixe tão cedo de admirar o fragor das batalhas, talvez de achar-lhe poesia.
O Diabo – Que papel representa o Amor na sociedade actual?
MA – De uma forma geral, não sei responder. Representa variados papéis, conforme os casos.
O Diabo – E no futuro?
MA – Pelo jeito que as coisas levam, desconfio que não chega até lá…
O Diabo – Houve alguma época da existência da humanidade em que a mulher tivesse sido feliz?
MA – Uma: a do matriarcado.
O Diabo – A maternidade influi na vida espiritual da mulher?
MA – Não sou mãe, nem fiz observações a este respeito.
O Diabo – E na vida social?
MA – Se a mulher é mundana – a maternidade é um tropeço. Se é uma mulher que trabalha – igualmente. Mas, neste último caso, pode ser também um incentivo para o trabalho, porque muitas vezes perdemos o gosto de viver para nós.
O Diabo – Efeitos do desenvolvimento intelectual da mulher?
MA – De princípio, um mal, porque a mulher, por seu intermédio, perde a faculdade de admirar os homens. Em relação ao lar, esses efeitos são mínimos: o lar é um campo mais próprio para manifestações afectivas do que manifestações intelectuais. Perante os filhos a intelectualidade da mãe deve forçosamente manifestar-se benéfica. Na vida social, depende do carácter dela."
Estas são, sem dúvida, convicções não muito comuns e, muito menos, expressas publicamente nos idos anos de 1935.
E como afirmou Maria Teresa Horta, no prefácio à reedição do livro "Ela é apenas Mulher": "Tudo o que Maria Archer dizia, era proibido."
Mas onde nasceu, onde viveu, quem foi Maria Archer?
Maria Archer, de seu nome Maria Emília Archer Eyrolles Baltazar Moreira, nasceu em Janeiro de 1899, em Lisboa. Foi a mais velha de uma prole de seis. Um rapaz e 5 raparigas.
A sua vida juvenil passa-a quase toda em África.
As suas Idas e Voltas até ao continente africano iniciam-se no ano da Implantação da República Portuguesa. Nesse longínquo ano de 1910 partiu com os pais e com 4 irmãos para a ilha de Moçambique, onde viveu, até 1913. Maravilhou-se com a paisagem que diariamente lhe inundava o imaginário e apelidou-a de "ilha de coral branco".
A nova incursão por terras de África acontece em 1916 acompanhando os pais, o irmão João, meu avô, e a irmã Isabel. Desta vez rumou até à Guiné, "a verdadeira África maravilhosa". Aqui viveu durante dois anos.
Em Agosto de 1921, e já em Faro, casa com Alberto Teixeira Passos, que tinha conhecido anos antes na ilha de Moçambique. Os primeiros cinco anos de vida do jovem casal são vividos em Ibo, Moçambique.
O seu matrimónio dura 10 anos e em 1931 encontra-se já, oficialmente, separada do marido. Nesse ano navega até Angola para viver com os pais e aí permanece até 1935.
Maria Archer foi escritora, jornalista, conferencista, tradutora.
O seu primeiro artigo é publicado no jornal "O Ocidental" em Moçambique, em 1913.
É em Angola, em 1935, que é editado o seu primeiro livro. Um livro de novelas e de contos intitulado, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim.
Aqui colabora na "Última Hora", na "Pátria", no "Comércio de Angola" e em "Angola Desportiva".
Após o regresso a Portugal, e ainda no curso do ano de 1935, publica o romance África Selvagem – a sua estreia na literatura colonial portuguesa.
Sobre o romance África Selvagem escreve Augusto Pinto no «Diário de Notícias»: "Há muito que não líamos em língua portuguesa livro que tanto nos agradasse" salientando, entre outros predicados da obra, a «linguagem rica, de uma perfeita plasticidade e de um colorido brilhante como só grandes escritores sabem utilizar». O «Diário de Lisboa» considera Maria Archer "a revelação da literatura portuguesa de 1935".
E Pinto Quartim refere: "Não foi preciso uma convivência demorada para me certificar de que estava em frente de mais um brilhantíssimo desmentido, não só a suposição idiota de que a Mulher é um ser sem cérebro, para quem só há duas condições: dona de casa ou cortezã, como também a essa baboseira tão repetida de que a Mulher inteligente e culta perde todo o seu modo de ser feminino….E reparei,
ao mesmo tempo, que a essa mulher, intelectual e artista, não faltava nem a graça feminil, nem a garridice ou coquetterie própria do seu sexo…E relembrando o seu vivificante convívio intelectual, mais em mim se fortifica a convicção de que não há superioridade de um sexo sobre outro, mas apenas a superioridade de algumas individualidades sobre a massa."
Em Lisboa vive, empenhada e militantemente, do seu trabalho de escrita para jornais e revistas e dos direitos de autor dos livros que publica que, amiúde, tanta polémica provocaram pela incomodidade causada ao pensamento dominante.
Mulher autodidacta, apenas estudou oficialmente até à 4.ªclasse, mas é dona de uma cultura exuberante.
Mulher de acção pela palavra, pela escrita.
Escreveu sobre os seus ideais, sobre África, sobre a luta pela dignificação da mulher.
Como recompensa, sofreu o isolamento e a discriminação da sociedade da época.
Tal como afirmou em Revisão e Conceitos Antiquados em 1952:"A minha obra literária tem sido norteada pelo princípio vital de rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da mulher"
João Gaspar Simões tece-lhe os maiores elogios: "Prosadora vigorosa, as suas histórias moldadas à maneira de Maupassant, num estilo mais másculo que "
feminino abordam problemas ousados nas relações da mulher com o homem e nas da situação daquela numa sociedade pouco afeita ainda a reconhecer direitos iguais aos dois sexos."
Em 1990, Leopoldo Amado na comunicação A Literatura Colonial Guineense afirma que " as condições nas duas primeiras décadas do século XX não eram propícias ao florescimento literário, pelo que se exceptuarmos a actividade jornalística que esporadicamente publicava alguns poemas saudosista-coloniais, que saibamos, não foi publicada outra obra literária-colonial que não a de Maria Archer e Fernanda de Castro. Maria Archer apresenta-se-nos como a primeira literata-colonial."
Na Guiné, Maria Archer é reconhecida como a "poeta do exotismo". A leitura das suas obras convida ao fascínio da descoberta, Os seus livros sobre África são pontes para a reflexão mágica, para a beleza. A densidade da escrita enleia-nos tal floresta tropical.
A sua escrita é o lugar dos contrários, é a conjugação da água e do fogo, a simbiose da terra e do mar.
Hoje, aqui, em Espinho, vimos ao encontro de Maria Archer, trinta anos após a sua morte. Nunca é tarde.
Mulher viajada, primeiro por África, depois pela Europa. Várias foram as travessias dos oceanos que empreendeu. Destaquemos dois momentos. Um, em que,
perseguindo o sonho da liberdade de pensamento e de escrita, navegou até ao Brasil onde viveu 24 anos; outro, quando cruzando, de novo, o oceano regressa ao País que a viu nascer e que nunca esqueceu, em 26 de Abril de 1979, concretizando o seu desejo de morrer em Portugal, conforme artigo publicado no jornal "A Luta" de Abril de 1977 com o título "Maria Archer quer morrer em Portugal"tendo por base uma carta do capitão Sarmento Pimentel publicada no "Primeiro de Janeiro".
A sua escrita foi indelevelmente influenciada pelos muitos anos vividos em África.
África, esse continente de cores quentes, de paisagens primitivas, de terras de sol.
Fascinou-se com a natureza que a rodeou e pintou-a através da escrita.
Oiçamos como ela sentiu os países africanos:
Em Cabo Verde admirou a fala: "A sua fala, o crioulo, é doce, é amável. Fizeram-na com antigas palavras portuguesas e os dialectos da Guiné. Para mim essa fala aparecia como feitiço saído daquelas bocas de lábios grossos e dentes cintilantes. E adverte: "Se os azares do destino os levarem a Cabo Verde, não temam as ilhas crioulas. A vida é doce nessas montanhas orladas de mar."
Na Guiné, que a encantou desde o primeiro olhar, diz-nos: "Ficou-me do que vi e do que ouvi, uma impressão de maravilha. Sim, dizia eu comigo, é esta a verdadeira África misteriosa… Causava-me assombro ouvir falar da sua selva cortada de rios e
braços de mar. Ilhas na frente, rios e canais nas profundidades do sertão, dão à província o aspecto de uma terra estranha onde se viaja sempre, na água….Região exuberante e selvagem; lembro-a com mais intensidade que certos países pletóricos de civilização onde demorei meus passos de viajante".
Para São Tomé e Príncipe as suas palavras são" Duas linhas na linha equatorial. Duas maravilhas. Vistas do navio, as ilhas parecem-me aguarelas japonesas. …Como são belas as roças de cacau, cuidadas, cheias de aromas, de flores…. São Tomé, ilha vulcânica de segredos inconfessados, deixa borbulhar, nos seus flancos, várias nascentes de águas minerais".
Sobre Angola confessa-nos: "Angola é rica de rios e florestas. Vi várias quedas de água de beleza deslumbradora…Florestas, cerradas e extensas florestas. Vocês não calculam a impressão que nos faz, a nós europeus, o mistério da floresta africana! A do Malombé, luxuriante, fantástica, com fama de habitat de gorilas, é das maravilhas da criação."
De Moçambique canta Maria Archer: "Moçambique tem rios e serranias, mas não é pródiga em águas ou serras. Todavia, lá para as brenhas do interior, os picos Namuli rasgam as nuvens. O Zambeze procura o mar perto das cidades com o seu dorso turvo da passagem de mil cachoeiras."
E foi assim que no seu livro Herança Lusíada Maria Archer nos pintou a sua África.
Mas também a Oceania Maria Archer nos desvenda descrevendo Timor como a " ilha de picos imensos…… O seu aspecto é deslumbrante. É mosaico de colorido forte, onde se destacam os picos coroados de nuvens, as encostas floridas, as fitas azuis dos rios, as cintilações das cachoeiras, o verde das matas, o negrume dos vales, o casario alegre, e, aqui e além, os leques doidejantes das palmeiras."
Viveu a revolta de ver alguns dos seus livros apreendidos. E, inconformada e perseguida, ruma até ao Brasil.
Aí, colaborou nos Jornais O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal Democrático. Neste último, colaboravam diversos intelectuais portugueses promovendo acérrimas discussões em torno das questões políticas, de crítica ao regime vivido em Portugal, na altura.
Também no Brasil dá à estampa quatro livros: Terras onde se fala Português (1957), Os últimos Dias do Fascismo Português (1959), África sem Luz (1962) e Brasil, Fronteira da África (1963).
Em 1973, o então Primeiro - Ministro de Portugal, Professor Doutor Marcello Caetano, autorizou o seu regresso a Portugal, cinco dias apenas após ter conhecido o pedido, com o seguinte despacho: "… Sra. D Maria Archer pode vir para Portugal quando quiser. Não será incomodada." "Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo" 9 de Março de 2012 – 15h Biblioteca Municipal de Espinho
OAM "Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo" Espinho – Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva 9-03-2012 Página 11 de 11
Regressa, finalmente, em 1979, doente, seis anos após ter obtido a anelada permissão e com um novo regime político. No regresso, vinte e quatro anos volvidos desde o dia em que deixou Portugal, dificilmente reconhece as irmãs e os sobrinhos.
No entanto, esta mulher de horizontes, viajada e ousada, admirada por muitos e silenciada por alguns mantém, até ao fim, inalterada, apesar das agruras da vida, uma das suas características: a vaidade feminina.
Deixa-nos em 23 de Janeiro de 1982.
Raul Rego, no artigo "Maria Archer", escrito dias após sua morte, sublinha: "Ela era uma mulher livre, escritora de garra, senhora de si e impondo-se pelo talento", o que na altura, não agradava a muitos, a ponto da sua obra Ida e volta de uma caixa de cigarros (1938) ser apreendida.
Passados mais de 100 anos o que ficou, então? Ficaram os valores e os princípios. Ficaram os fins e os propósitos. Ficou o espírito de pioneirismo.
À «Associação Mulher Migrante», à Câmara Municipal de Espinho, aos estudantes da Escola Básica e Secundária Domingos Capela, muito obrigada.
Bem hajam por este Encontro com Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo.
Espinho, 9 de Março de 2012
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