VIDA E OBRA DE MARIA ARCHER, UMA
PORTUGUESA DA DIÁSPORA
29 DE MARÇO DE 2012, Salão Nobre do
Teatro da Trindade
A propósito de Maria Archer
Viagens, diásporas e exílios
Ser escritora hoje
Sendo esta iniciativa uma parceria de várias entidades, entre
as quais a associação “Mulher Migrante”, acho muito curioso este convite que me
foi endereçado, eu que sou uma imigrante de mim em mim mesma. É também interessante
o nome desta associação, porque contém em si os dois movimentos: para dentro e
para fora, sendo que é sempre muto difícil saber, ao certo, o que é dentro, o
que é fora. É muitas vezes quando saímos que encontramos o dentro; e
vice-versa.
Disseram-me, há relativamente pouco tempo, para meu espanto:
“Para quem gosta tanto de viajar, viajas muito pouco”. O espanto veio-me de
nunca ter partilhado, com quem me falava, o meu amor pela viagem, penso até que
nem comigo partilhara este secreto gosto, mas também me veio o espanto da
declaração de que eu viajo muito pouco. Porque é verdade. Porque não é verdade.
Porque nunca pensei nisto nem como um facto nem como uma limitação. Estou como Garrett,
no início das Viagens na minha Terra:
“Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno,
em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo —entende-se. Mas com este
clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o
mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia
até o quintal. Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha
janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com
uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do
Cais do Sodré. “
No entanto, apesar de mais de meio
século de diferença, tenho em comum com Maria Archer o facto de ambas termos
iniciado a diáspora na infância. As minhas viagens tiveram início logo ao
nascer, andei em diáspora fora de mim cá dentro, a viagem dela iniciou-se mais
tarde, depois dos 10 anos, creio, mas foi geograficamente muito mais ampla,
começou em África e mais tarde ampliou-se ao Brasil. Mantendo a unidade da
língua com que pensou, sentiu, viveu e escreveu.
Intitulei esta reflexão como “… e
hoje?”, mas também poderia chamar-lhe “os exílios”, sendo que este conceito é
tão escorregadio como o de diáspora. Porque me parece que o verdadeiro exílio
de Maria Archer aconteceu quando voltou para Portugal terminando seus dias num
asilo. O asilo foi o exílio. No entanto, não sabemos que viagens esse asilo
exílio não terá proporcionado dentro dela, quantos livros para sempre
absolutamente inéditos não terá escrito, quantas novas paisagens não terá
visitado antes de partir, finalmente, para a que me parece a maior das
diásporas, mas não dos exílios.
Gostaria de conseguir fazer aqui em
poucas palavras o que me foi sugerido: a ponte entre duas épocas, o início do
século XX e o início do século XXI, quase um século depois, que diásporas, que
exílios? Somos, aparentemente, de diferentes tempos, no entanto ainda respirámos
o mesmo ar do planeta. Pouco depois de eu nascer ela parte para o Brasil e
espanta-me que ninguém me tenha dito nada. Se uma fada me tivesse segredado ao
ouvido, ainda no berço: “partiu para o Brasil Maria Archer”, que música teria
permanecido em mim deste sopro misterioso, que alteração de rota poderia ter
sofrido a minha vida? Que outras viagens? Mas pensando bem… não terá a fada
segredado algo assim? De onde me teria vindo desde muito pequena a saudade do
Brasil onde, aparentemente, nunca estive? Pergunto-me então: Que outra rota
teria sido a minha se a fada não me tivesse segredado este segredo? Estaria
hoje aqui?
Em 77, já doente, Maria Archer é internada em S. Paulo e nasce o meu
primeiro filho. Em 82 parte para a grande viagem, um dia depois de nascer o meu
segundo filho. Ela já não estava cá quando do nascimento da minha terceira filha
nem da partida do primeiro. Por essa altura eu andava ainda entretida a ter e a
perder filhos. Ela tinha escrito muitos livros e inúmeros artigos.
À escrita dela, João Gaspar Simões
atribuiu as características de “força e solidez”, o que poderia ser, se quiséssemos,
o estereótipo da escrita de um homem. Mas não é. Acredito numa escrita
masculina e numa escrita feminina, mas não acredito numa escrita de homens e
numa escrita de mulheres. Tenho visto homens a escrever com tal sensibilidade,
que nunca mais poderei garantir, perante uma página anónima, se foi escrita por
um homem, se por uma mulher. Por sua vez, Maria Archer parte, muitas vezes, da
temática feminina mas fá-lo ultrapassando todos os limites, de forma crítica e
política. Com força e solidez. O que
não implica ausência de sensibilidade e vulnerabilidade. Ampliou o universo das
mulheres, da limitação que então era ainda, ser mulher, fez rampa de lançamento
para uma ampla visão social e universal.
E hoje? O que é ser escritora hoje,
depois de ter sobrevivido a tantas invisíveis diásporas? Escrevo livros como se
pintasse quadros ou como se cozinhasse requintados pratos, ou como se dançasse
com o Universo. Ser escritora hoje, é dizer: Estou viva, amo o Sol, sou
visitada pela Lua e sou Terra.
A preocupação de Maria Archer com o
feminino mantém-se hoje em nós. Com a diferença de que agora temos a
consciência mais clara de que o feminino não são apenas as mulheres. O feminino
é tudo o que é acolhedor e vulnerável no Universo. São as mulheres, as
crianças, todos os seres frágeis e desprotegidos, os próprios homens na confusa
busca acerca do seu novo papel no Universo e a natureza. O feminino é, afinal,
a Terra, este planeta útero tão maltratado. Da compreensão da importância do
feminino depende a nossa sobrevivência. Já não se trata de defender direitos de
uma parte. Trata-se de sobrevivermos todos. Enquanto a Terra, essa primeira
mulher, for violada, os bebés continuarão a nascer com dor e as mulheres
sentirão as dores do planeta. Porque tudo é o mesmo. E não há política mais ou
menos rasca que nos salve. No entanto, há sinais de esperança. O planeta começa
a ser olhado como Mãe, o nascimento dos bebés a ser compreendido como o momento
mais determinante para a vida de um ser, e talvez um dia, quando todos os seres
secundarizados como as mulheres, as crianças, os animais, uma parte
significativa dos homens e a natureza em geral, viverem com a dignidade que
lhes cabe, talvez então os humanos possam realmente sê-lo e encontrar o seu V
Império, ou o Espírito Santo, ou a
Graça, e ser felizes. Maria Archer deu o seu contributo, de acordo com a
sua época, mais à frente do que a sua época. As escritoras hoje estão, creio, sinto-o
nas minhas diásporas fora e dentro de mim, atentas ao tratamento dado a esta
grande fêmea que é a Terra. Elas também em diáspora mais à frente que a sua
época, para evitar a ameaça do grande de exílio, para que possa haver a próxima
época e ainda muitas viagens e, porque não?, muitas diásporas.
Ser escritora hoje é migrar para além
da Mulher, é abraçar todos os seres, acolher a Terra e todos os homens. Continua
a ser, como para Maria Archer, passar para além dos limites, das fronteiras,
das paredes, dos muros, das marcas, de todos os marcos e limitações e
reaprender o que só a ilusão nos fez acreditar que deixáramos de ser: Inocentes
e Unos. Todos. Sem exceção.
Risoleta C. Pinto Pedro
http://aluzdascasas.blogspot.pt
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