segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Entrevista ao MAESTRO ANTÓNIO VICTORINO DE SLMEIDA




Entrevista ao Maestro António Victorino d’ Almeida
(A propósito da Conferência/Concerto “A Portugalidade” integrada na Digressão Internacional Comemorativa dos 75 Anos do Compositor sob o Alto Patrocínio do Governo de Portugal – Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas)
Com Miguel Leite e Manuela Aguiar


ML – Maestro: Completou este ano 75 anos de idade – muito embora um pouco contrariado com o facto – mas a verdade é que a propósito deste aniversário realizou uma Digressão Internacional Comemorativa (a Esch-sur-Alzette no Luxemburgo e a Puteaux – Paris), tanto quanto sei num tipo de acção que até agora nunca tinha acontecido, uma acção de estado, de um governo, neste caso do Governo de Portugal…


AVA – Que eu me lembre, foi realmente a primeira vez…


ML – … que oficialmente, através da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas decidiu por um lado homenageá-lo a si como grande figura da Música em Portugal dos últimos 60 Anos e, por outro lado, - com uma ideia que todos nós consideramos interessantíssima – que essa homenagem fosse dupla no sentido em que pudessem ser também presenteadas as nossas Comunidades Portuguesas espalhadas por esse mundo fora, uma vez que esta Conferência/Concerto lhes é particularmente destinada…
A Associação Mulher Migrante foi efectivamente a grande impulsionadora desta iniciativa junto deste parceiro institucional e motor da actividade que foi a SECP.
Assim, e após esta primeira introdução explicativa que enquadra devidamente esta entrevista, pergunto como é que o Maestro se sentiu intimamente com este gesto, com esta acção, e como é que fruiu dela, uma vez que esta Conferência/Concerto já se realizou no Luxemburgo e em Paris?


AVA – Esse aspecto oficial devo dizer que me agradou e agrada-me sempre porque… - vamos lá a ver – eu até admito que no fundo eu seja anarquista… Mas não exerço… E como tal nós gostamos que o nosso País e aqueles que o representam nos tratem bem. É verdade! Portanto, não nos é indiferente… E eu creio que é mentira quando alguém diz: Eu não quero homenagens!... Eu prescindo das homenagens!... Não, não… Nós ficamos muito chateados é por sermos maltratados ou ignorados, porque quando somos bem tratados temos razão para estar contentes em relação a esse reconhecimento… E eu tive ocasião de dizer ao Sr. Secretário de Estado (José Cesário) no almoço que tivemos em Paris que salvo um acontecimento recente em que tive a assistir a um concerto meu o Sr. Presidente da República Portuguesa (por razões institucionais dado tratar-se de um Concerto Comemorativo dos 40 Anos da Universidade do Minho), a verdade é que foi a primeira vez (que eu me lembre) em 60 Anos de Carreira Artística que eu tive um membro do governo a assistir oficialmente a um concerto meu…
E cruzei-me imensas vezes com vários Ministros e Governantes dos mais diversos Partidos em hotéis… E sempre muito delicadamente chegou a resposta: - “Desculpe lá, tenho tanta pena de não poder ir assistir ao seu Concerto, mas tenho hoje um jantar a que não posso faltar de maneira nenhuma…” Ou seja: nunca sabem de nada… Nunca sabem de nada do que se vai passar… ou então têm sempre “uma pescada para descongelar”… (Alusão humorística a uma frase do seu último Filme – Longa Metragem – “O Tempo e as Bruxas” – Farsa Absurda).
…E portanto é evidente que não fui nada indiferente, muito pelo contrário, a esse lado oficial de que esta homenagem se tem revestido.


ML – Muito bem. Mas quanto à reacção do Público ao Espectáculo propriamente dito…


AVA – Em ambos os casos a reacção foi muito boa. E devo dizer que tivemos o privilégio de ter algumas figuras muito especiais entre os espectadores dos Concertos… Desde logo, no Luxemburgo, com um público muito caloroso e entusiasta, constituído fundamentalmente por portugueses, de entre os quais destaco o Sr. Embaixador de Portugal no Luxemburgo – Dr. Carlos Pereira Marques, o Sr. Cônsul Geral de Portugal no Luxemburgo – Dr. Rui Monteiro e a filha mais nova do herói do 25 de Abril - Capitão Salgueiro Maia (1944-1992) – Catarina Salgueiro Maia – Emigrante Portuguesa no Luxemburgo, para além de outras destacadas figuras da vida portuguesa desse país… Em Paris, para além da já citada muito honrosa presença do Sr. Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas quero destacar também a presença da Sra. Professora Doutora Isabelle Oliveira – Vice Reitora da Université de Paris3 – Sorbonne Nouvelle – associada e parceira local da Associação Mulher Migrante na realização desta iniciativa… E um facto que eu efectivamente assinalei é que ser Vice-Reitor da Sorbonne não é propriamente a mesma coisa do que dirigir a leitaria da esquina… E portanto termos uma portuguesa como Vice-Reitora da Sorbonne é para mim e para todos nós (acho eu) um grande motivo de orgulho!... Ainda por cima sendo uma Mulher… Nova… Muito nova mesmo… Mantendo todas as suas características portuguesas de uma Mulher do Minho… É claramente uma senhora de Barcelos e continua a sê-lo… E ter essa posição é algo que tem de ser salientado e que a mim me agradou muito verificar.


ML – Relativamente ao aspecto do “Músico Emigrante”… O Maestro também foi de certo modo um emigrante… Ou por outra, eu não sei se o Maestro foi realmente um emigrante… Mas, a propósito disso, fale-nos por favor um pouco da sua experiência dos anos em que viveu fora de Portugal, mais concretamente em Viena de Áustria.


AVA – De facto eu não acho que essa expressão seja sempre utilizada de uma forma correcta… Há o emigrante personalizado pelo Charlot Emigrante que é o que vai no navio, não é? E que é despejado - digamos assim - numa terra estranha, sem quaisquer direitos, ou melhor, tendo que conquistar todo e qualquer direito, começando pelo direito de comer, dormir… Essa vida do emigrante é uma vida extremamente dura e então aí acresce obviamente a nostalgia de uma casa… Ainda que a casa que deixou fosse uma casa muito pobre numa aldeia, mas era a sua casa, a casa onde nasceu não é?... Agora não se vai pensar que uma pessoa que vai para uma terra estranha com uma Bolsa de Estudo, para uma cidade como Viena não é a mesma coisa que uma pessoa que atravessa a fronteira a salto… Ainda que a Bolsa de Estudo fosse muito fraquinha…


MA - Eventualmente inferior ao correspondente ao Salário Mínimo Nacional desses tempos…


ML – Mas a verdade é que inicialmente sentiu uma Viena inóspita…


AVA – Sim, está bem, mas fui para lá porque quis ir para lá! É uma enorme diferença! Uma coisa é a pessoa ser obrigada a emigrar… Outra coisa é a pessoa decidir ir viver para uma cidade para estudar lá…


MA – Mas também foi estudar para lá porque era melhor do que estudar cá, não é?


AVA – Sim. Isso também é verdade.


MA – Estou a tentar fazer a comparação com a nova emigração… É que com esses critérios não é emigração…


AVA – Pois, pois… Efectivamente eu penso que neste momento há muita gente que está a ir embora e não tenho a certeza que isso seja voluntário… São pessoas que foram profundamente frustradas por aquilo que o 25 de Abril lhes prometeu e não deu! E quando pensaram que iam ter uma vida onde pudessem efectivamente aplicar tudo aquilo que aprenderam e que são capazes de fazer, são de facto obrigados a ir para fora. Quanto a esse caso de ir estudar para outro país também não é exactamente a mesma coisa… Quer dizer: Querem-se conhecer outros professores, outras escolas… Ao passo que estes novos emigrantes que vão – mesmo que sejam engenheiros e médicos – esses não vão para lá aprender nada… Vão para lá trabalhar.


MA – Na parte dos profissionais que vão para lá trabalhar porque ganham três ou quatro vezes mais, mesmo quando têm emprego aqui ou então quando aqui não têm emprego, de todo, é verdade! Mas também nós estamos a ter uma fuga de cérebros… Os nossos cientistas estão a ser atraídos pelo estrangeiro porque encontram lá condições de trabalho e de investigação muito melhores do que as que aqui existem. Se calhar, também foi esse o caso do jovem Maestro António Victorino d’ Almeida, porque realmente Viena é Viena, não é? Em termos de Música…


AVA – Praticamente todos os da minha geração experimentaram essa ideia de ir para o estrangeiro: a Maria João Pires (N. 1944) experimentou ir para Munique; a Olga Prats (N. 1938) foi para Colónia e para Friburgo, o Sequeira Costa (N. 1930) para Paris e depois para os Estados Unidos… Não fomos verdadeiramente emigrantes…


MA – Acha que não? Sabe porque é que eu digo isso: É porque eu tive uma Bolsa da Gulbenkian e estive dois anos em Paris… E adorei viver em Paris… Eu sou uma não-emigrante forçada! E como tenho um Curso que lá não serve para nada, ninguém me queria em França (sou formada em Direito), tive de voltar… Mas eu não queria voltar… Queria ficar em Paris! No meu caso eu não queria era voltar para Portugal!


AVA – Mas eu também não queria voltar de Viena… Eu também vim forçado…


MA – Os emigrantes têm essa ideia. Para eles a emigração é um acto de dôr, de sacrifício, de separação… É sempre terrível… E eu olho para eles e penso assim: Eles conseguiram na vida aquilo que eu gostava e não consegui…


AVA – É verdade, é verdade. Eu se pudesse vivia em Viena!


MA – Eu também! Eu também! Se pudesse vivia em Paris!


ML – O Maestro viveu lá durante 27 anos…


MA – Se fosse médica, engenheira electrotécnica, física nuclear… eu estava lá, não é?


AVA – Não, sinceramente… Eu visito algumas cidades estrangeiras e acho que devo defender-me para não reagir como um cão!... Ou seja: babar-me de frente das possibilidades que aquilo oferece e que aqui não existem, não é?


ML – Maestro: Todos sabemos que foi Adido Cultural da Embaixada de Portugal na Áustria… Mas, o último lugar, o último trabalho estável, o último emprego – se quiser – que o Maestro teve em Viena antes de regressar definitivamente a Portugal foi…


AVA – Foi o lugar de Compositor Residente do Burgtheater de Viena – trabalhava regularmente (não era o único compositor-residente… havia mais dois ou três, não sei…), mas eu era um deles… Portanto corresponde ao nosso Teatro Nacional D. Maria II… O Achim Benning (N.1935) que era então o Director do Teatro e que também era Encenador tinha realmente um especial bom entendimento comigo e tenho uma carta dele que muito me honra em que ele me diz que a sua melhor decisão como Director do Burgtheater de Viena foi no dia em que me contratou… É bom!... Fiquei muito contente com isso.


ML – E como é que se comete a loucura de deixar Viena nessas circunstâncias decidindo vir para Portugal largando um lugar desses?


AVA – Isso não foi loucura… Foi uma questão emocional. Tinha que ser. Eu sou filho único. (E não me arrependo!... Quer dizer…Não me arrependo não é de ser filho único! Não me arrependo é do que fiz!). Realmente a minha mãe morreu e o meu pai ficou completamente sozinho. Ou seja: Tinha as três netas em Paris e o único filho em Viena… E eu acho que dei vinte anos de vida ao meu pai… E de vida boa!... E não me arrependo nada disso. Acho até que fiz a única coisa que devia fazer e continuo a dizer que não foi assim um sacrifício… E também não era um dever… Tinha que ser. Foi uma inevitabilidade. Quando aconteceu a minha mãe morrer eu senti e idealizei o que ia ser a vida do meu pai… Isolado na Parede (Cascais)… Longe de todos… Eu disse: Não! Isto não pode ser! Falei á minha mulher e ela concordou plenamente comigo e viemos para Lisboa… Sabendo todos os riscos que corríamos e todas as dificuldades que iríamos encontrar…


MA – Quer dizer: A emigração para Portugal foi muito pior do que a emigração para Viena…


AVA – Sim, sim! Eu emigrei para Portugal. Só que desta vez eu já não fui surpreendido… Porque… Houve duas vezes antes em que eu voltei para Portugal…


ML – Isso já foi depois do 25 de Abril de 1974, não é verdade?


AVA – Sim, claro. Muito depois do 25 de Abril. Houve uma vez, quando eu acabei o Curso de Composição em Viena e tive a melhor nota, as coisas estavam a correr bem e tudo, a minha primeira mulher e eu – lembro-me perfeitamente – andávamos a passear no Graben de Viena e pensamos: - Ouve uma coisa: E se fôssemos para Portugal? Tu com este canudo… Facilmente vais para Professor do Conservatório… Se calhar um dia até acabas em Director do Conservatório… E viemos para Portugal convencidos… Aí é que foi a minha surpresa total. É que eles marimbaram-se para o meu Curso em Viena por completo…


MA – Eles não tinham, portanto não sabiam… O que tem valor é o que eles têm…


AVA - Eu falava-lhes de coisas que eles não entendiam e eles falavam-me de coisas que eu não entendia… A certa altura, em pleno desemprego, total desemprego, a minha sogra (na altura a Odete Saint-Maurice) foi meter uma cunha ao velho Balsemão (Tio do Dr. Francisco Pinto Balsemão) do Jornal “O Diário Popular” para me meter como crítico musical d’ “O Diário Popular”… E foi o primeiro emprego que eu tive… Porque de resto, nada! Não consegui absolutamente nada de nada!


MA – O que demonstra que, muitas vezes, Portugal também não consegue aproveitar a valorização que os portugueses têm no estrangeiro… E se nós pensarmos naquele hipotético regresso de todos os cérebros, de todos os génios e de todos os talentos que estão a sair de Portugal, vemos que será muito problemático o seu regresso…


AVA – É problemático. Pode ser muito problemático.


MA – Torna-nos muito pessimistas em relação ao que estamos a perder e não vamos recuperar… Isto é uma sociedade pequena que quer ser pequena… Portanto, não nos interessa muito progredir com aqueles que a podem fazer progredir… Não é assim?


AVA – O Aquilino Ribeiro (1885-1963) é que dizia que nós éramos tão amantes do pequenino, do diminuto que até a nossa mais bonita província se chamava Minho (dos inhos – diminutivos). E, de facto, eu tive realmente uma experiência extraordinária que foi esta: No dia em que eu fui fazer o meu primeiro trabalho como crítico musical… Era o meu primeiro emprego, não é? Nesse caso era mesmo o meu primeiro emprego… Em Portugal e na Áustria… Porque essa foi a primeira vez que eu regressei a Portugal… Onde passados alguns meses de desemprego lá a minha sogra me arranjou esse posto de crítico musical… Que não era uma coisa fixa… Era pago à peça… E eu pus a minha Casaca - porque o S. Carlos obrigava a que se usasse Casaca - e lá fui eu para o S. Carlos e tive uma sensação: Finalmente estou a trabalhar! Finalmente estou a fazer alguma coisa. Não era bem aquilo que eu queria… Mas pronto: estava a trabalhar. Sentei-me, e logo por azar a Ópera era o Cavaleiro da Rosa de Richard Strauss (1864-1949) que é Viena e Viena e Viena e Viena e eu…. Mal aquilo começou a tocar… Ouço uma voz em mim que diz: - Eu quero ir embora! Eu quero ir embora! Quando cheguei a casa e a minha mulher me perguntou: - Então, como é que correu? E eu respondi: - Não sei. Eu quero ir-me embora! E, a partir daí, esses 6 meses em diante, foram todos a lutar para voltar para Viena, não sem a perplexidade dos meus pais e até com uma certa tensão com eles… Porque eles também não percebiam lá muito bem porque é que eu queria voltar a Viena… Mas, está bem, ainda bem que voltei… Porque realmente foi aí que eu comecei efectivamente a fazer coisas… Porque se tivesse ficado aqui tinha ficado a fazer críticas no Diário Popular… E, sinceramente, não sei se teria avançado muito mais do que isso… Porque aquilo ainda dava trabalho… Fazer críticas no Diário Popular… Deitava-me às 6 da manhã porque tinha que escrever as críticas para saírem no dia seguinte… Depois às vezes havia concertos à tarde e concertos à noite… Enfim, era muito chato… Muito chato…


MA – Um penoso trabalho…


AVA – Sim, era um penoso trabalho…


ML – Portanto: a vida de crítico não é uma boa vida…


AVA – Não, não é uma boa vida. Eu por acaso até acho que escrevi críticas engraçadas… As pessoas parece que gostavam das críticas que eu fazia e se riam… Mas eu tenho absoluta consciência de que escrevi muita asneira… Musicalmente falando…


ML – Houve assim alguma que desse mais brado, de que se recorde?


AVA – Por exemplo com o Messiaen (Olivier Messiaen 1908-1992): Eu chamei-lhe santeiro e coisas parecidas… Um disparate!


ML - … Mas depois converteu-se!...


AVA – Claro!


ML – E houve também um espanhol… O Ramón Barce (1928-2008) …


AVA – Não, não foi com o Ramón Barce, foi com o Tomás Marco (N. 1942) … Isso aí eu fui verdadeiramente mau…


MA – Mas os críticos é suposto serem verdadeiramente maus…


AVA – Aí era um Festival de Música Contemporânea… E veio o Tomás Marco…Que é um Compositor Espanhol de Música Contemporânea… (Eu não gosto nada desse nome… Porque pergunto sempre: Contemporâneo de quem? Bem… Portanto normalmente já se é contemporâneo de uma pessoa que até já morreu há 50 anos, mas está bem… Continua a ser Música Contemporânea) … Mas eu fiz a crítica ao Concerto e disse: - Quanto à peça do Compositor Tomás Marco não me posso pronunciar pois já não me lembro… O que era verdade!...


MA – Mas isso é de uma crueldade terrível!


AVA – É. Mas era verdade! Mas é uma crueldade terrível… E aí eu vi realmente… Mais tarde… Meses depois, não é?… Aquele “espanholismo”, aquela nobreza que os espanhóis têm… Têm realmente alguma coisa… É que então aí sou eu que vou tocar a Espanha… E o Crítico era o Tomás Marco… E fez-me uma crítica óptima!... Deu-me uma grande lição!


ML – Mudando de assunto… Foi o período que esteve em Viena que determinou que um Sportinguista depois se tornasse num Benfiquista… Ou estou enganado?


AVA – Mas isso foi logo ao início… Eu era um jovem estudantezinho de 20 anos, vivia num bairro de Viena onde eu falava com as pessoas e ninguém sabia da existência de Portugal, deste país… Ninguém! Portugal, Portugal…. Ah! Espanha! Não, não – dizia eu: Portugal!... E eles: Yah! Espanha!... Não! Lissabone!.... Espanha! Bem: nada a fazer!...


MA – Estavam antes de 1640…


AVA – Eu bem sei que há toda uma literatura inglesa que vem da Idade Média… A tramar-nos… A contar as piores coisas e inclusivamente até coisas que eu acho que são profundamente exageradas… Mas, não interessa… A verdade é que ninguém nos conhecia… Ou conheciam-nos pelas piores razões… Pela Guerra Colonial… Bem, mas isso era uma classe elevada, uma elite… Porque o resto ninguém sabia. Ora eu tinha nascido no Campo Grande e portanto aos dez anos eu fui pela primeira vez sozinho ao Estádio José Alvalade… (Nessa altura as crianças podiam ir ao futebol sozinhas… Não havia nessa altura energúmenos que andavam por ali a praticar o vandalismo… Eram pessoas que iam ao futebol e estavam por ali a ver o jogo… Podia haver uma chapada ou outra, mas não havia claques!) Conheci toda aquela equipa fantástica do Sporting: Eram os 5 Violinos! Tinha simpatia pelo Sporting! … Chego a Viena e o Benfica ganha as 2 Taças de Campeão Europeu! Mas quando o Benfica ganha a Taça ao Real Madrid eu fui para o café ver o jogo… Foi realmente um jogo incrível! O Real Madrid meteu 2 golos. O Benfica meteu o 2-1 e o Real Madrid responde logo a acabar a 1ª Parte com o 3-1!... Era a acabar! (Qualquer um desmoralizava). E o Benfica a perder 3-1 vai para a 2ª Parte e faz 3-2, 3-3, 4-3, 5-3… Bem! …E a partir desse dia eu passei a ser conhecido no bairro como “der portugiesische“!... Eu adquiri a minha nacionalidade em Viena graças ao Benfica! Lamento muito! Nada tenho contra o Sporting, mas...


MA – O que é certo é que se estivesse em Portugal isso nunca teria acontecido!


AVA – Não. Nunca tinha acontecido.


MA – Essa, é uma reacção de emigrante!


AVA – Pois.


MA – O Benfica acabou por ser um factor identitário...


AVA – Pois claro... Depois o Benfica abandonou essas lides... E passou a ser o Porto.


MA – Mas nessa altura já não dava para mudar...


AVA – Não, não dava para mudar... No entanto, devo dizer que vibrei muito quando o F. C. do Porto ganhou e daí o dar-me tão bem com o Pinto da Costa porque eu fiz um Concerto no dia do jogo e pedi aos empregados de palco que me fossem dando notícias do jogo... Eu estava a tocar e eles faziam-me gestos para eu ir percebendo o resultado... E finalmente quando eles disseram 2-1... Eu... Animei-me totalmente... E não fui jantar com os meus colegas e fui directo para o aeroporto festejar com a equipa do F. C. do Porto, com o Artur Jorge (aí fiquei amigo dele) e também do Pinto da Costa porque realmente eu fui abraçá-los! Foi um grande jogo... O Madjer... O calcanhar do Madjer!


ML – Quanto á Música nos dias de hoje, no nosso país, a sua visão... A Europa... As correntes musicais... E também as Mulheres na Música que é um aspecto interessante aqui a realçar... Uma vez que há esta ligação à Associação Mulher Migrante... O que é que nos pode dizer...


AVA – Se há uma coisa que é um documento da segregação que foi feita secularmente às mulheres é na Música...


MA – A Música é pior ainda do que a Teologia! Os nomes das Mulheres... Há mais Mulheres Teólogas do que Músicas Famosas... Ou não?


AVA – Quer dizer... Sim, mas as Compositoras são muitas mais do que aquilo que se pensa!... Mesmo no passado!


MA – Mas são ainda mais segregadas do que as Teólogas... Eu acho que a Teologia já é o assim o cúmulo dos cúmulos da segregação... Do reduto masculino... Mas hoje há Teólogas importantes, não é? Mas Músicas e Músicas Compositoras...


AVA – A Clara Schumann (1819-1896) era uma grande compositora, a Fanny Mendelssohn (1805-1847) era uma grande compositora, a Cécile Chaminade (1857-1944) não era tão má compositora como se disse... Enfim... Naquele estilo um bocadinho delambido... (Não com a pincelada vigorosa...) Mas ainda assim escrevia muito bem, compunha muito bem... E havia também muitos homens a compôr daquela maneira, naquela época, não é? E muitas outras... Muitas outras que nós agora vamos começando a descobrir!


MA – Isso é um pouco a História da Mulher... A História Universal da Mulher é um pouco isso, não é? Estava lá, mas ocultada...


AVA – Vivia na sombra do marido...


MA – Mas na Música não é mais assim ainda do que na Literatura, por exemplo?


AVA – Bem: Quer dizer... As Mulheres na Música como intérpretes já antes brilhavam, não é?


MA – Mas eu digo como Compositoras, como criadoras de Música! (Embora como intérpretes também fossem criadoras porque o intérprete também é de certa forma um criador)...


AVA – Como Cantoras então... Essas desde sempre se destacaram até porque os homens para terem aquela voz tinham de prescindir de alguns atributos...


ML – Mas também os houve, não é? Os Castrati...


AVA – Sim, também os houve... Mas aquilo soava...


MA – Com um preço demasiado excessivo a pagar...


AVA – Excessivo e com um resultado mínimo... Porque aquilo é horroroso...


ML – E pior de tudo, irreversível...


AVA – Irreversível... Sim... Bem... Mas voltando agora à Música em Portugal...


MA – Compositoras em Portugal?


AVA – Há... Há... Vamos lá a ver... Não me interpretem mal... É que as Compositoras que há em Portugal sofrem exactamente das mesmas pressões que os compositores... Que os jovens compositores... Aparecem menos... Está bem... Mas a verdade é que hoje em dia existe ainda uma falta de liberdade na Música... É uma PIDE que existe... (Lá com os vanguardistas...) É uma PIDE! E as pessoas têm que fazer aquela Música que ninguém quer ouvir! E há 90 anos que as pessoas estão a dizer: - Não quero mais ouvir isso! Não quero! Estour farto! Não gosto! E eles: Sabe - Mas isto é muito interessante! - Pos, está bem! Então fique lá com isso! Parabéns à tia! ...E portanto há também várias mulheres que estão metidas nessa história... A Clotilde Rosa (N. 1930), a Maria de Lourdes Martins (1926-2009)... Mas agora começam efectivamente a surgir compositoras.... E começam a reagir... Também juntamente com os homens... Sim, porque assim como o Nuno Côrte Real (N.1971) já começa a reagir também...


ML – Agora há uma Compositora interessante... Uma tal Anne Victorino d‘ Almeida (N. 1978)...


AVA – A Ana começa a reagir... Começa a reagir... Realmente nesse aspecto, essa Inquisição não é dirigida especialmente às Mulheres... É dirigida a todos!


MA – Mas secularmente, e até no nosso tempo, as mulheres compositoras não apareceram nunca! Portanto se produziram alguma coisa, foi queimado!


AVA – Por acaso, felizmente, isso não é tanto assim... Queimou-se menos do que se pensa. Porque estão constantemente a aparecer nomes e obras... Originais... Muitos originais do Século XIX...


MA – Ou seja: As famílias vão aos baús, estão a ir aos baús e a trazerem a público as obras dessas mulheres...


AVA – Sim, sim... Do Século XIX estão a surgir muitas... Aliás, na própria Idade Média houve uma tal Condessa de Dia que era uma excelente compositora...


MA – Condessa... Tinha de ser Condessa... Também se não fosse Condessa não sabia música... O que significa que olhando para as médias concerteza que devia ter havido muitas mais...


AVA – É evidente que sim! Mas não esqueçamos: O exemplo mais rebarbativo é que a Orquestra Filarmónica de Viena...


ML – Sim, isso ainda hoje!


AVA – Ainda hoje, não! Acabou, acabou! Mas... eu já estava em Viena e ainda havia proibição de mulheres a tocar na Orquestra Filarmónica de Viena!


ML – O que eu digo ainda hoje é que ainda hoje há muito poucas!


AVA – Não, hoje já não são assim tão poucas...


ML – Olhe que não Maestro. Olhe para lá, olhe para lá!


AVA – Sim, é possível...


ML – São totalmente minoritárias! Já tem mulheres, mas são totalmente minoritárias!


MA – Eu acho que a Música é o campo de discriminação por excelência das mulheres...


ML – Eu não sei... Isto agora em àparte... A Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional (a antiga) não tinha uma única mulher que eu me recorde, ou tinha?


AVA – Tinha. Tinha.


ML – Quem é que tinha? A Harpista?


AVA – Tinha. Tinha a harpista, tinha algumas senhoras... Violinistas... Sim. Não eram muitas... Mas já havia. Era melhor, apesar de tudo, nesse aspecto, do que a Filarmónica de Viena...


MA – E mais pianistas, não? Porque o Piano era aquilo que as mulheres aprendiam mais... Como prendas... As meninas prendadas aprendiam piano e falavam francês, não é?


AVA – As mulheres sempre compuseram... Dizia-se que a Clara Schumann sempre tocou e defendeu a música do Robert Schumann (1810-1856) do seu marido, quando ela própria tem coisas perfeitamente autónomas e de uma enormíssima qualidade!


MA – Portanto há mulheres que penetraram naquele universo... Que era um universo mais ou menos dos homens...


AVA – O que é uma coisa espantosa!... Porque a Clara Schumann, com nove filhos (!), viúva, criou os seus nove filhos como pianista... Como pianista e compositora! Só que as suas composições, essas não iam para os programas...


MA – Sim. Ela tinha de tocar as músicas do marido...


AVA – Sim, do marido e não sei até que ponto tocaria as dela... Não há relatos, não é? Bem: neste momento, em Portugal as mulheres podem ser compositoras, podem ser maestrinas (a Joana Carneiro), quer dizer... Hoje em dia a castração é outra... A castração é de ordem estética e não de género.


MA – O género emerge lentamente na Música...


AVA – Agora é constante enormalíssimo ver mulheres nas orquestras... Mulheres a tocar Trompa, mulheres a tocar Fagote, mulheres a tocar Contrafagote, clarinete baixo, contrabaixo... Aliás há aquele caso da Percussionista Elisabeth Davies com aquela elegância extraordinária com que toca...


ML – Sim, a Elisabeth Davies é uma extraordinária percussionista e quase se pode dizer que é em simultãneo uma bailarina não porque ela dance, mas porque faz ao mesmo tempo uma espécie de coreografia que no seu modo natural de tocar que dá uma enorme elegância à forma como toca.


AVA – E há uma contrabaixista cujo nome eu nem sequer sei, mas que nem é uma mulher muito bonita, mas que é uma beleza aquela contrabaixista... O ar, o empenho, a alegria com que ela faz música...


MA – Transfigura-se no palco...


ML – Nesse caso, como diria o Poeta Fernando Pessoa (1888-1935), apaixonamo-nos pelo gesto...


AVA – Sim, e o gesto conta muito. É muito importante!


ML – E temos uma mulher extraordinária, aqui no Porto, que é a Violoncelista Madalena Sá e Costa, que dentro de dias completará 100 anos!


AVA – A Madalena Sá e Costa que eu ainda conheci como uma senhora muito bonita... É preciso ver que como eu tenho 60 anos de carreira... Há 60 anos atrás ainda era uma senhora muito, muito bonita! Era violoncelista da Orquestra do Porto, lembro-me perfeitamente... E também era muito bonita a tocar na Orquestra! Mas... Espera lá: Na Orquestra da Emissora Nacional tocava: A Violetista Anabela Chaves, a Violoncelista Maria José Falcão...


ML – A Anabela Chaves que é a primeira Viola da Orquestra de Paris!


AVA – Sim. E em Viena a crítica disse que ela era a maior viola de arco do mundo! A melhor violeta do mundo!


ML – E a Maria João Pires tem uma notoriedade internacional imensa...


AVA – Está bem, mas a tocar piano... Isso já há juito tempo que havia...


ML – Mas é uma extraordinária Embaixatriz de Portugal pelo Mundo!...


MA – Não era interessante fazer-se um programa sobre as músicas da lusofonia?


AVA – Era, era... E iríamos encontrar muito mais coisas... Nós mesmos, os autores...
Há dias ofereceram-me o Cd do Alfredo Keil (1850-1907) - pelo Pianista Japonês Tomohiro Hattta - e eu estive a ouvir... Quanto às obras, não é brilhante!... Mas há dezenas, centenas de compositores franceses, ingleses, belgas e austríacos que também não são brilhantes! Mas é perfeitamente um compositor! Porque razão é que nunca se gravou antes esta música?


MA – Das Áfricas ao Oriente... Portugal, Brasil e os outros, não é?!...


AVA – É, exactamente... Os compositores da lusofonia... Incluindo Timor, não é? Por exemplo: O Simão Barreto...


MA – Macau, Macau... Também?


AVA – Não, Macau não... Os macaenses nunca foram portugueses... Os chineses nunca nos ligaram nada...


MA – Há um nucleozinho... Pode é não ser musical, não é?... E Goa também não?


AVA – Goa sim! Goa teve um dos maiores pianistas mundiais que foi o Noel Flores (1935-2012) que foi totalmente escorraçado de Portugal! Nunca ninguém lhe ligou nada... A Gulbenkian acabou-lhe com a bolsa e ele ficou com fome! Com fome! Com fome mesmo! Quando não há dinheiro há fome! O que é que a gente há-de fazer?


MA – E ele emigrou...


ML – Não. Ele estava em Viena.


AVA – Sim, estava em Viena... E foram os amigos... Fui eu, foi o John Neschling, foi o Hans Graf, que permitimos que ele fosse comendo... A mulher que é brasileira abdicou de uma carreira de pianista muito razoável... Para se empregar na Embaixada do Brasil... Ela abdicou de uma carreira... Ela não era tão boa pianista como ele... Mas era o suficiente para fazer concertos na Konzerthaus... Ouvi eu! A Regina... E abdicou completamente de uma carreira de pianista para sustentar a família!...


ML – E ele foi depois Professor do Conservatório de Viena...


AVA – Não! Ele foi Director da Academia de Música de Viena!


MA – Que bonito que era fazer-lhe também uma homenagem da lusofonia, não era?


AVA – Claro que era! Claro que era! E o Flores sempre pretendeu ter ligações a Portugal... Mas nunca lhe ligaram... Nunca lhe ligaram nada!


MA – Angola, Moçambique, Cabo Verde...


AVA – Um estudo sobre a lusofonia, um trabalho como esse é um trabalho em que nós entraríamos com a perfeita consciência de que ignoramos muito!... Ou melhor: Eu não digo que a mina esteja cheia... Mas a verdade é que nós nunca descemos à mina... E sabemos que há uma mina!... Mas não sabemos o que é que lá está...


MA – E depois a Música tem esse poder de ser uma linguagem universal... Universal e de criação... Há uma criação universal... E era muito interessante fazer esse diálogo de culturas musicais...


AVA – E mais ainda - isto é uma teoria minha... - O Brasil, a Música Brasileira... (Enquanto o Jazz foram os negros americanos que fizeram... E depois alguns brancos conseguiram fazer também...) Pelo contrário, eu acho que a Música Brasileira tem muito mais que ver connosco... Com Portugal... Não tem nada que ver com índios nem com nada... Enfim... Há elementos... Mas... Eu ontem estive a ouvir uma gravação de um espectáculo que eu fiz com o Luiz Avellar – um grande pianista brasileiro – que fizemos no Centro Cultural Olga Cadaval em Sintra, onde fizemos uma improvisação num só piano: em que ou toco eu ou toca ele mas nunca pára... E às vezes tocamos os dois... E às vezes eu levanto-me e começo a fazer umas notas aqui, depois ele levanta-se e faz ele, senta-se ele, sento-me eu... É uma improvisação que dura uma hora e quarenta!... Mas ali nota-se bem a simbiose... Quer dizer: a facilidade com que se passa de um samba para um fado!... Isto em relação à Música Brasileira... Não me venham dizer que aquilo é dos índios...


ML – Como é que o Maestro via uma possível continuação desta digressão em sua homenagem (uma vez que há este interregno por causa das eleições legislativas)... E portanto não sabemos se o projecto continuará ou não... Mas como é que via uma hipotética continuação com um espraiar da digressão aos Estados Unidos, ao Brasil, ao Canadá e não ficarmos só pelas comunidades portuguesas dos países europeus...


AVA – Tinha o máximo interesse nisso. Aliás eu sei que o SECP tem estado a ajudar grupos portugueses, um dos quais me está indirectamente ligado... A minha filha vai agora para a Namíbia com o grupo dela... (1)


MA – Aliás foi um sucesso, segundo me disse o próprio Secretário de Estado... No Brasil tiveram um sucesso enorme!


AVA – E aquele espectáculo é muito bonito. É muito bonito!


MA – Mas é que a Secretaria de Estado não pode esquecer a Música... A emigração é um mundo em que todas as valências devem estar presentes, não é?


ML – E em Paris acho que conseguimos fazer realmente uma coisa diferente, ainda mais especial porque conseguimos juntar várias artes: com a questão da Literatura e do Eça de Queiroz (1845-1900)... Com a questão da Pintura e do Mestre Adelino Ângelo (N. 1931) que também foi um momento muito bonito e de homenagem a um grande pintor português... Foi interessante no sentido em que sendo o Maestro Victorino d‘ Almeida o homenageado conseguimos também homenagear um conjunto de outras figuras da Cultura Portuguesa... E esse conjunto de figuras pode ser ainda mais alargado se fizermos a Conferência/Concerto em mais sítios...


AVA – Só aqui do Porto há um conjunto de nomes que as pessoas conhecem, mas de que só conhecem os nomes!... Não conhecem a música deles, desses compositores!


MA - A questão de género na Música... Todos os espectáculos do Trindade foram magníficos, (2) mas eu lembro-me sempre (no dia em que foi Convidado o D. Manuel Clemente) daquela discussão que foi suscitada entre a Música Feminina e a Música Masculina... O Chopin, por exemplo: É Música Feminina...


AVA – O Chopin claro, é Música Feminina... É muito mais...


MA – A Mátria da Natália Correia (1923-1993)... Muito mais a Mátria do que a Pátria, não é?


ML – Acho que não se poderia dizer isso do Bártok... Não me parece nada feminino!


AVA – O Bártok é masculino, o Bach é masculino... A Música deles, não é? Mendelssohn...


ML – Há tempos vi uma coisa extraordinária num canal de televisão estrangeiro sobre o Bártok que não sei se o Maestro sabe... Nós ouvimos a Música do Bártok e imaginamos (pelo menos eu imaginava) uma pessoa irascível, colérica, um tipo muito vivo... E acho que era uma pessoa delicadíssima... Falava sempre muito baixinho... As pessoas, os alunos tinham até dificuldade em ouvi-lo... E a Música é tudo ao contrário daquilo!... Pelo menos esse foi o testemunho de um aluno dele que eu vi nesse documentário televisivo...


AVA – Sim. E também o Schostakovich... Era um homem muito pequenino... E quando se sentava parece que enrolava as pernas de uma forma que parecia uma rosca!... Enrolava-se todo assim, não é? Mas era um homem que sabia muito bem aquilo que queria... E há uma história muito engraçada com o Schostakovich... Quando um dos melhores quartetos de cordas do mundo – acho que foi o Quarteto Alban Berg porque foi o próprio Viola, o que me contou isso – quando foram tocar para o Schostakovich um dos seus quartetos de cordas (que são fantásticos) e ele lá se sentou numa cadeira com as pernas todas enroladas... E diz o Viola: - Ó Maestro, há só aqui uma coisa, o Maestro desculpe lá dizer-lhe... Vai-nos perdoar... Mas o Maestro pôs aqui a indicação con legno (tocar com o arco na madeira) e sinceramente nós achamos que esta passagem é tão importante que com um pizzicatto, um pizzicatto com unha (é também um efeito, uma forma especial de pizzicatto) isto resultaria muito melhor... E diz o Schostakovich: - Interessante, muito interessante essa ideia... Está a ver – diz o Viola – a melodia sobressai muito melhor com o pizziciatto do que com o con legno... Perde-se ali... – Tem toda a razão (diz o Schostakovich), toda a razão, toda a razão... Mas façam con legno!...


ML – Maestro: Há poucos meses, Portugal perdeu uma Grande Mulher, uma Grande Senhora... A Dra. Maria Barroso (1925-2015)... Tanto quanto sabemos o Maestro conheceu-a... E gostávamos que nos falásse um pouco disso uma vez que a Revista lhe vai também dedicar a sua atenção... E sabemos que a Dra. Manuela Aguiar a homenageou no Colóquio de Paris a que nós não pudemos assistir... Qual seria o seu depoimento sobre esta pequena Grande Mulher?


AVA – Efectivamente a Maria Barroso agigantáva-se... Porque a imagem da Maria Barroso nunca é a imagem de uma senhora muito pequenina (embora ela fosse de facto muito baixinha, muito pequenina)... É a imagem de uma Mulher agigantada! De uma lutadora! Foi uma lutadora incrível, indiscutível... Vencedora na Causa da Liberdade em Portugal! Ela venceu! Ela venceu! Não se discute! Eu acho que o 25 de Abril deu-nos liberdade... Nós mantemos exactamente a mesma liberdade que o 25 de Abril nos deu... Só que essa liberdade está doente... Está doente, pronto, mas continua a ser a mesma liberdade... Agora está com tosse, com coisas, com corrimentos, coisas assim.... Mas é a liberdade! Hiberna é um bocadinho, não é?...


MA – É que a Liberdade é uma coisa que também permite o mal... O mal e o bem... E nós estamos num período de crise e de mediocridade, não é?


AVA – É. É. E não há dúvida nenhuma que eu penso que pessoas como a Maria Barroso ou o Mário Soares, realmente... Independentemente das pessoas estarem de acordo ou em desacordo... Ou melhor: eles sempre defenderam o direito ao desacordo!


MA – Até entre si...


AVA – Sim. Sempre defenderam, não é? Agora: Ela é um símbolo! E penso que para a causa da liberdade das mulheres... da Mulher! Ela é um símbolo, é um símbolo! Acho que ninguém põe isso em causa!


Siglas e Abreviaturas:


AVA – António Victorino d’ Almeida
MA – Manuela Aguiar
ML – Miguel Leite
SECP – Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas


Fotografias:


Manuel Dias (Luxemburgo) www.ManuelDias.com
Photomaton (Porto) www.photomaton.pt
Agradecimento:
Cardosas Bar - Hotel Intercontinental-Porto Palácio das Cardosas
Dra. Brenda Sá Ribeiro
(1) - Rumos Ensemble: “Tocando Portugal” – Recital quase um Doc: Anne Victorino d’ Almeida (Violino); Luís Gomes (Clarinete e Clarinete Baixo) e João Vasco (Piano).
(2)“Ouvir & Falar” – Ciclo de Conversas com Música * Miguel Leite; António Victorino d’ Almeida; Luiz Avellar (Piano); D. Manuel Clemente (Cardeal Patriarca de Lisboa) e Nicolau Breyner (Actor/Autor/Realizador) + Nádia Sousa (Voz); João Lima (Piano); Carlos Lacerda (Poeta/Declamador) e Erika Pluhar (Convidada Especial) – Ciclo de Espectáculos da Fundação INATEL/Teatro da Trindade – Lisboa

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