quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

EMIGRAÇÃO PORTUGUESA
OLHARES SOBRE A AUSÊNCIA: UMA PERSPECTIVA DIACRÓNICA
MARIA MANUELA AGUIAR

RESUMO
A ausência significava, no paradigma “territorialista” tradicional, a ruptura com a sociedade do país e a perda de direitos de cidadania, direitos políticos, sociais e culturais. Os ausentes eram despojados da própria nacionalidade, se adquirissem uma outra. Porém, o carácter automático da recuperação da nacionalidade, em caso de retorno definitivo, indicava que o legislador oitocentista se dava conta da subsistência dos laços de ligação à pátria durante o período de ausência. Para a progressiva tomada de consciência das formas de vencer o distanciamento físico pela presença dos emigrantes na vida da sociedade portuguesa contribuíram, antes de mais, as remessas, os investimentos, as dádivas para a melhoria das suas terras. Mais tardio foi o reconhecimento de uma outra forma de presença, através da criação, no exterior, de espaços de língua e cultura portuguesa. A democratização do país, em 1974, veio permitir a transição progressiva para o paradigma "personalista", em que os expatriados gozam de um novo estatuto de direitos, tendencialmente igual aos dos residentes, e as comunidades do estrangeiro são vistas como parte integrante da nação portuguesa.
I - A EMIGRAÇÃO COMO AUSÊNCIA
«Não nos admiremos. Eram as ideias do tempo.» Affonso Costa
1 - A Ausência, na Sociedade e no Direito
O fenómeno das migrações envolve componentes muito diversas, em que as formas de ausência e de presença (presença física, mas não só, também afectiva, sentimental, económica, cultural...) se combinam, se interligam ou sobrepõem, no plano individual como colectivo, e vão sendo percebidas, ao longo de épocas ou de ciclos, muito diferentemente.
Numa abordagem tradicional, a ausência parece implicar fatalmente uma ruptura, conotada com o abandono ou a desistência de fazer vida e carreira na própria terra.
Olhada a emigração por parte de quem fica, assim foi e, em certa medida, ainda é na opinião pública, no sentir comum do povo, dos vizinhos, como nas correntes doutrinais mais resistentes aos ventos de mudança.
O universo jurídico é quase sempre permeável a estas influências, porque o legislador mais vezes reflecte conceitos e preconceitos preexistentes do que procura fazer pedagogia ou induzir transformações (intenção sempre ao seu alcance, mas mais denunciada em períodos de mudança radical de regime político e constitucional, como aconteceu em Portugal no pós 25 de Abril de 1974).
Creio que bem menos mutável, na transição de regimes ou de tempos, é o sentir comum dos próprios emigrantes. A sua atitude, a sua ligação ao País, visto de longe, com saudade e paixão, nele estando sempre em pensamento, terá sido uma constante na longa história das migrações portuguesas. Nas migrações dos últimos dois séculos e, a meu ver, também nos períodos antecedentes - visto que o móbil individual de procurar, longe, progresso e bem-estar é compatível com qualquer dos enquadramentos que conhecemos historicamente - o esforço de colonização ou a procura de trabalho em terras estrangeiras - como já reconheciam, no passado, Oliveira Martins, ou Afonso Costa (Costa, 1911:243), como parece admitir, na mesma linha de pensamento, o contemporâneo Joel Serrão (Serrão, 1974: 110).
Porém, essa postura dos expatriados ou era praticamente ignorada ou considerada pouco mais do que irrelevante e a saída para o estrangeiro vista, pura e simplesmente, como um corte, um voluntário afastamento, se não mesmo, como dissemos, uma deserção. Significados da ausência, ainda que temporária, da família e da comunidade, com repercussão imediata na esfera do Direito: a total suspensão do exercício de direitos políticos, principal atributo da cidadania; a cessação de quaisquer prestações e apoios do Estado, no campo social e cultural, para além da protecção consular, e, em casos extremos, do repatriamento.
O Estado começou por se preocupar em proibir o excesso dos fluxos migratórios, (Serrão, 1974:106) e, depois, com o acto ou momento da partida, fiscalizando as condições de transporte marítimo - como é sabido, causa de muitas queixas, sofrimentos e fatalidades, que faziam notícia frequente nos jornais.
Não obstante o peso que a emigração teve e tem na sociedade portuguesa, com cerca de um terço da população a viver fora do País, não é tradicionalmente dado tratamento autónomo e sistematizado aos efeitos da ausência dos cidadãos no exterior, com destino conhecido e ligação a família e à comunidade local e nacional. A temática da ausência, que ocupava o seu espaço no Código Civil de 1867, era apenas a que configurava o desaparecimento em parte incerta (artigos 55º a 96º do Código Civil de 1967). A "ausência", nesse sentido, tanto podia verificar-se no contexto da emigração como não, pois o facto de uma eventual "evasão", não se sabia para onde, em direcção a um país estrangeiro, não precludia a aplicação da lei geral. Aliás, ainda hoje não é, em primeira linha, no Código Civil, mas na Constituição e em outras leis, como as eleitorais, ou as que regem o regime de segurança social, de fiscalidade, de serviço militar ou de ensino, que terá de procurar-se, a regulamentação multifacetada de um "estatuto dos ausentes" . É artigo a artigo, em regulamentação dispersa, que se traça o quadro dos seus direitos - que o mesmo é dizer as formas de valoração jurídica da ausência ("hoc sensu"), incluindo a partida - questão não despicienda, pois a liberdade de emigrar, afirmada, como questão de princípio, desde a Carta Constitucional, era obstaculizada por expedientes vários, pela regulamentação prevendo taxas e alcavalas, ou o custo desmesurado de passaportes (Costa, 1911:166) e apenas se alcança real e incondicionalmente, com a Constituição de 1976. Aliás, a emigração clandestina só deixou de se configurar como crime no fim dos tempos do "Estado Novo".
O estatuto dos ausentes era de sinal negativo, consistia, praticamente, no esvaziamento total de direitos políticos e de direitos às prestações do Estado nacional, nos diferentes sectores, do social ao cultural.
A ida para o estrangeiro representava uma verdadeira "capitis diminutio" - com o interesse dos indivíduos, incluindo o seu direito de emigrar, a ser subordinado ou sacrificado ao interesse público, tal como foi, em concreto, entendido, quase sem contestação, até ao retorno do país à democracia em 1974.
Políticas da emigração de verdadeira protecção social e apoio cultural são da nossa época - coincidindo, em vários casos, com a descolonização, nos países do sul da Europa, como a França, a Itália, e, mais tardiamente, Portugal - aqui determinadas, também, pelo dramatismo que caracterizou o início do ciclo das migrações intra-europeias, a partir dos anos 60.
O Direito, sendo, essencialmente, uma decorrência da mentalidade de políticos, em particular, e da sociedade em geral, corresponde, em cada momento histórico, à sua leitura da realidade migratória e não necessariamente a essa realidade, tal como a vivem os seus protagonistas. O ajustamento faz-se, eventualmente, pela progressiva tomada de consciência das situações e dos problemas vividos ou das soluções queridas e merecidas pelas pessoas...
2- Do Paradigma “Territorialista" ao "Personalista"
No Código Civil de 1867, não haverá disposições mais reveladoras do modo de ver o emigrante, enquanto "grande ausente", do que as que determinam a perda e reaquisição da nacionalidade portuguesa. Perda automática, em caso de aquisição de nacionalidade estrangeira - uma cominação que era, então, a regra em direito comparado, com uma argumentação que ainda hoje sustenta, em muitos países do mundo, a mesma solução. Antes de mais, o dever de lealdade ao Estado, visto como "exclusivo" e "individual". O mesmo se diga da obrigação de prestar serviço militar. Uma partilha de sentimentos e afectos em relação a dois países, ironizam alguns autores, assumia um caracter semelhante à do crime de bigamia: "In this concept, dual nationality is viewed as analogous to bigamy, amounting to a kind of cheeting in both polities" (Aleinikoff e Klusmeyer, 2002:29).
Hoje, a tese contrária baseia-se na melhor compreensão da natureza humana, num contexto de diluição dos conflitos entre nações dadoras e receptoras de migrantes: privilegia-se a vontade de dupla pertença, da dupla cidadania, como a mais próxima do ser e querer das pessoas.
O princípio da unicidade da nacionalidade (que, sendo a única se conservava, por mais longa que fosse a estada no estrangeiro), manteve-se, em Portugal, através de reformas sucessivas, até 1981.
Na Europa, subsiste uma profunda divisão, no plano doutrinal e no direito interno dos Estados (em razão, como é óbvio, de experiências concretas muito diversas de países de origem e de destino das migrações) e, por isso,após um processo longo de negociação, em que foi impossível alcançar a convergência para a mudança, o Conselho da Europa se quedou numa posição de neutralidade, permitindo a cada Estado optar livremente pela admissibilidade ou pela proibição da dupla nacionalidade. Um passo em frente, apesar de tudo, pois a Convenção Europeia sobre a Nacionalidade de 1997 revogou a Convenção de 5 de Maio de 1963 sobre a Redução dos Casos de Nacionalidade Múltipla, que impunha o princípio da unicidade nesta matéria.
Nada de extraordinário, pois, que, em oitocentos, o Código de Seabra se norteasse pela tese da unicidade. Extraordinário é, sim, o disposto no que respeita à reaquisição da nacionalidade. Após estipular que "perde a qualidade de cidadão português o que se naturalizar em país estrangeiro" diz o art.º 22º que "pode, porém, recuperar essa qualidade, regressando ao reino com ânimo de domiciliar-se nele, e declarando-o assim perante a municipalidade do lugar, que elegeu para domicílio".
O artigo seguinte, sobre os efeitos da recuperação da nacionalidade, não dá a esta reaquisição, eficácia retroactiva: "[...] as pessoas só podem aproveitar desse direito desde o dia da sua reabilitação".
Não fora a denegação da retroactividade, e o normativo mais pareceria enformado pela ideia de uma de "hibernação" ou hiato no exercício dos direitos de uma nacionalidade dormente, à espera de ser acordada. A não retroactividade acentua, assim, o carácter de ruptura temporária mas, de qualquer modo, irreparável da ausência.
O emigrante ficava praticamente desprovido dos seus direitos de cidadania, porque se reputava como pura "utopia" o poder concretiza-los à distância. Mas, verdadeiramente, não se "desnacionalizava", pois o retorno e uma simples manifestação da vontade o reinvestiam no exercício dos seus direitos de nacional, sem o que o Estado tivesse meios de se lhe opor.
É de salientar que não seria tão liberal a solução consagrada em futuras leis da nacionalidade, visto que introduziam, para além de complexa e quase sempre morosa tramitação burocrática, o "direito de oposição" do Estado à recuperação da nacionalidade. Poder discricionário que foi mantido na chamada "lei da dupla cidadania", a meu ver, contra a vontade do legislador inequivocamente expressa na letra da lei. Pela via da regulamentação, impôs-se uma leitura restritiva da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro, que, em rigor, previa a reaquisição por "mera declaração do interessado" .
A aceitação incondicional do pedido de recuperação da nacionalidade só veio a ser reposta em 2004, pela Lei Orgânica nº 1/2004 de 15 de Janeiro. Anteriormente, o mecanismo de recuperação automática da nacionalidade ínsito no Código Civil de 1867 - alargado às situações de permanência no estrangeiro, dando à mera inscrição consular o mesmo efeito da declaração produzida, em caso de regresso, perante as autoridades locais - fora retomado no projecto de lei nº 140/VIII, que acabou sendo debatido em plenário, sem alcançar vencimento (Aguiar, 1999: 156). Nem por isso deixou de constituir um exemplo raro de procura da "modernidade" que pode vir do passado e da originalidade das nossas tradições - jurídicas, neste caso...
O "direito de oposição" (que uma tal tradição precludia ), tornando uma contingência e não uma faculdade livremente exercida a reaquisição da nacionalidade, foi abolido e garantidos os seus efeitos retroactivos, mas não sem controvérsia entre parlamentares de diferentes quadrantes políticos. Um resquício da ideia de prevalência do interesse público sobre o privado no condicionamento da emigração ou, simplesmente, a intenção encapotada de colocar entraves à reinserção dos cidadãos, contrariando as políticas tradicionais, que podiam dificultar a sua saída, mas não o retorno?
De facto, até 1974, o Estado fora pondo, sucessivamente, em prática políticas limitativas ou proibitivas das saídas, (Costa, 1911: 161) antes de mais, no interesse do Estado, da sua definição do "bem comum", com prevalência histórica de uma perspectiva predominantemente economicista.
O direito à emigração, consagrado no art.º 44º da Constituição, e bem assim os novos direitos que se englobam no "direito dos expatriados" (de que Barbosa de Melo foi, com argumentação convincente, o grande defensor no colóquio do Conselho da Europa sobre "Os laços entre os europeus residentes no estrangeiro com os seus países de origem", realizado em 1997), são uma construção jurídica em progresso, integrando normas constitucionais, legais e regulamentares de direito interno e regras de direito internacional - tratados, convenções e princípios gerais de direito. No relatório da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa baseado sobre as reflexões e conclusões desse colóquio , o novo Direito é talhado à medida do cidadão face ao Estado: " the emerging law of expatriates has citizens interests at heart and not directly the interests of states" (Aguiar and Guirado, 1999).
O centro de gravidade deste Direito desloca-se da "totalidade" para a pessoa, e do Estado territorial para "Nação populacional": para o "cidadão", com a afirmação dos direitos inerentes à qualidade de nacional, viva ele onde viver; para a Nação, forçando à reestruturação do Estado, das suas instituições e das suas leis, para que correspondam à verdadeira dimensão nacional.
Segundo Bacelar de Gouveia, a nossa Constituição ensaia, desde 1976, gradualmente, esta transição do paradigma "territorialista" para um paradigma "personalista” ou “nacionalista”. Ao contrário do que ocorre em outros países com os quais actualmente partilhamos a vanguarda europeia (embora não em todos os aspectos, ou mais em uns do que em outros...) caminhamos, assim, nem sempre em linha recta, antes com episódicos retrocessos, para a "desterritorialização" dos direitos dos emigrantes (um neologismo muito utilizado no referido colóquio do Conselho da Europa, em qualquer das línguas oficiais).
A nossa Lei Fundamental denuncia pulsões contraditórias entre a vontade de aumentar os direitos de participação comuns a todos os cidadãos, e a de "dar menos direitos a quem está fora do território, porque não contribui para os impostos..." , como dizia Bacelar de Gouveia numa audição parlamentar organizado pela Subcomissão das Comunidades Portuguesas, onde se fez doutrina sobre os "Mecanismos Específicos de Representação de Emigrantes", (Gouveia, 2004:61).
De qualquer modo, aconteça o que acontecer, o carácter de "evidência" da privação do exercício de direitos políticos a partir do estrangeiro está perdido, definitivamente. Não seria possível repetir agora o curioso comentário de Emygdío da Silva sobre uma proposta de um autor italiano, seu contemporâneo: "[…]sem pretendermos erigir em sistema as fantasias de um deputado italiano que, na Revista Económica Internacional aventava a ideia de que ao parlamento do seu país viessem representantes das colónias italianas em países estrangeiros [...]" (Silva, 1917: 211).
Na verdade, as "fantasias" há muito se erigiram em sistema, no Direito de muitos países - incluindo Portugal e a Itália. Países de emigração antiga, do sul da Europa, muito mais receptivos à evolução do estatuto dos expatriados, enquanto os do norte se mantêm presos ao dogma da "territorialidade" - tal como no século XIX o teorizava Locke - e ao da "unicidade da nacionalidade". Podemos, pois, também nesta questão, nesta "vexata questio" ,constatar a existência de uma Europa "a duas velocidades", e sensibilidades...


II - EMIGRAÇÃO - FORMAS MÚLTPLAS DE PRESENÇA
"[...] Que ideia nos fazemos nós de Portugal: Somos o povo sediado no chão europeu, demarcado pelos nossos maiores, ou o povo que deve ser tomado e considerado independentemente do território que ocupa em cada tempo? Quem nos inspira na resposta: D. Francisco de Almeida e o seu império marítimo, apoiado em feitorias, nuns tantos lugares estratégicos, ou D. Afonso de Albuquerque e o seu império terrestre com um profundo e extenso “hinterland “ e aberturas para o mar?"
António Barbosa de Melo


1 - No Interior do País
A constatação das manifestações de presença, ou de pertença, dos expatriados foi irrompendo, cedo, despertada pelos "influxos financeiros" provocados pelos "fluxos migratórios" para o exterior - relação de causa e efeito não ignorada, a nível estatal, como a nível da sociedade. Para o que contribuem, decisivamente, as características do nosso emigrante tipo, o seu modo de se integrar num país sem perda de ligação ao outro, com isso, ganhando, em ambos, influência e visibilidade.
Primeira constante histórica: a emigração portuguesa envolvia quase exclusivamente homens, que partiam sós. Mas logo se tornou claro a decisão de expatriação não era um acto individual de distanciamento ou abandono, antes o meio adequado de execução de um plano familiar de melhoria das condições de vida, gizado, de comum acordo, por mulher e marido e por este levado a cabo na perfeição, com o sentimento de apego aos seus, à comunidade e à cultura de origem. A primeira modalidade de cumprimento do acordo é esse envio maciço de remessas: para as famílias a garantia de uma nova prosperidade, para o Estado uma inesgotável fonte de divisas, indispensável ao equilíbrio das contas externas. O reconhecimento da enorme importância para a economia do País deste comportamento padrão dos emigrados converte o enfoque económico no principal, a polarizar o discurso oficial, em matéria das migrações, ao longo de cerca de dois séculos, sem que, contudo, haja vontade de dar aos emigrantes uma qualquer contrapartida no plano dos direitos individuais.
No primeiro quartel do século XX, Fernando Emygdio da Silva escrevia: "...É da emigração de miséria que a Pátria tira, depois, o ouro com que salda a conta da sua desorientação económica e dos desperdícios financeiros. É da miséria que vem a nossa maior riqueza: do pária nostálgico e atavicamente aventureiro... é que vem o ouro [...] não se esquecem de nos enriquecer com as remessas, que ainda ali não representam um excesso, mas, a maior parte das vezes, a privação, ao menos nos primeiros anos." (Silva, 1917:107).
Oliveira Martins, Afonso Costa, Anselmo de Andrade, Artur Bello, Vieira da Rocha, Egmydio da Silva são alguns dos autores que nos dão, em estimativa, a expressão desses números fabulosos, em fins do século XIX e inícios do século passado (Silva, 1917: 105).
Estas prestações, tábua de salvação da economia pátria, configuram, assim, o modo mais antigo e mais reverenciado de os emigrantes aqui estarem presentes, não estando... E, por outro lado, vão condicionar as políticas de emigração familiar, a saída de mulheres e de menores, que é combatida em toda a medida do possível. Afonso Costa qualifica o êxodo de mulheres como "[…] uma depreciação do fenómeno migratório […]", porque: "[…] é quando a família do emigrante fica na Pátria, que ele envia mais regularmente as suas economias" (Costa, 1913: 182). Não anda longe desta preocupação Emygdío da Silva, para quem o número de mulheres expatriadas, que, se verifica entre 1906 e 1913 (127% de aumento) "é uma constatação tremenda". Com idêntica justificação:"[…] perigo de desnacionalização e cessação de remessas[…]” (Silva, 1917: 132).
Homens ausentes, remessas palpáveis... Com elas, de longe, deixam marcas no território, influenciando a modernização de costumes, do comércio, dos transportes, do consumo... Depois, no regresso, constroem ou reconstroem as casas, que, pelo seu porte, pelo gosto arquitectónico, inspirado em modelos estrangeiros se distinguem na paisagem rural ou na malha urbana, dando origem a críticas ambíguas ou díspares, a reacções de admiração, de mimetismo, de emulação, de inveja... Em qualquer caso, com elas conseguem testemunhar a "libertação" da pobreza antiga, e escrever na pedra das moradias (no cimento, no azulejo, no ferro...) uma história de sucesso individual, que, em si, é, porventura, a manifestação de presença subjectivamente mais desejada. "Pour ces immigrés de première génération, il importe, surtout de rester portugais en France, mais encore plus de réussir le projet d’émigration qui leur permette de s’affirmer au Portugal comme ayant eu une réussite exemplaire […]". " La réussite du projet n'est envisagée et n'a de sens que si elle est reconnue et donc traduite en réalisation - le plus souvent la construction d’une maison dans la communauté villageoise d'origine. […]" (Cunha, 1988:61).
Assim foi no caso dos palacetes dos "brasileiros" (Rocha Trindade, 2008: 143), assim é no das casas, que, desde 60 e 70, proliferam em todas as regiões de forte emigração - edificação de raiz ou modificação de fachadas e arranjos estruturais ou de pormenor, com benfeitorias e traços ostensivamente "estrangeirados" . Como que a dizer que a aventura pelo mundo fora valeu a pena, individual e colectivamente.
Nada de muito diverso do que ocorre, por exemplo, em Cabo Verde ou na vizinha Galiza (Mora: 2oo8:284).
A proverbial generosidade dos "brasileiros", no passado, hoje em dia, continuada por emigrantes de todos os continentes, em constantes provas de solidariedade para com as instituições ou iniciativas de melhoramento colectivo das terras, antes ou depois do retorno, englobam-se neste tipo de "chamada de atenção" para a realidade da sua "pertença" regional e nacional.

2 - No Exterior
A presença dos emigrados através do bem-fazer nas terras de origem, era reconhecida pelos conterrâneos, naturalmente. Não assim o que acontecia na sociedade de destino. A sua "descoberta" surpreende, quando chega avalizada pela autoridade intelectual dos primeiros estudiosos, que têm o privilégio de visitar as instituições fundadas pelos portugueses. Afinal, conclui-se, os emigrantes levavam consigo Portugal - não o deixavam, simplesmente, para trás...
Havia, aliás, experiências do passado, que poderiam ter levado a intuir este papel singular dos expatriados: a expansão universal da língua, e a fundação, pelo força colonizadora, de nações lusófonas, antes de todas, e a maior de todas, o Brasil. Obra de povo, mais do que do Estado ou das elites, como dizia Gilberto Freyre. Movimento de colonização, que, rapidamente deriva para a emigração espontânea. Logo, obra de emigrantes - crucial para a manutenção de um Brasil lusófono, quando, após a independência, a ele acodem, em massa imigrantes de outras falas, alemães, italianos, polacos, espanhóis, japoneses... O favorecimento do destino brasileiro por uma corrente da "inteligentzia" portuguesa tem certamente a ver com este entendimento. Oliveira Martins assume-o, com a clareza ou contundência costumeiras: "[...] a emigração para o Brasil não pode por forma alguma equiparar-se às saídas para países estrangeiros; pois o Brasil, embora politicamente independente, nem renega a sua filiação, nem enjeita a nossa língua. Somos ainda um mesmo povo, governando-se cada qual a seu gosto, por instituições diversas: mas somos ainda um mesmo povo". (Martins, 1994:207).
Previsível, pois, que o emigrante português perseverasse na intenção de criar, como era seu timbre, espaços novos da sua língua e cultura, em territórios distantes... Porém, poucos foram, no dealbar do século XX, os académicos ou os políticos que adivinharam outras "maneiras de estar na comunidade nacional", lá fora, graças à institucionalização dos meios de entreajuda e de convívio, que lhes daria a capacidade de resistir a mudanças de circunstâncias, ao decréscimo dos fluxos migratórios e até à fixação definitiva nas sociedades de destino. Assim se desenvolve o fenómeno de transplantação para novas terras de espaços de vivência própria, colectiva, nascida do impulso associativo ("um ímpeto de Portugal", como diria Pessoa).
No campo social e cultural, com ele se irá suprindo a absoluta falta de políticas de apoio dos governos pátrios. Constatando a omissão destes sucessivos governos, já Emygdio da Silva, defendia que o emigrante devia ser "protegido no local de destino por entidades diversas do cônsul". E Afonso Costa chegou a delinear o contorno de políticas sociais e culturais, que ainda hoje poderíamos subscrever (Costa, 1911:133). Porém, não foram prosseguidas... Teríamos de esperar até décadas recentes para que tal acontecesse - sempre subsidiariamente, quando muito, mal complementando a acção das organizações das comunidades. Estas organizações atingiram uma dimensão grandiosa, sobretudo, no Brasil, e, também nos EUA, animadas pelo espírito fraternalista e mutualista desse tempo: no primeiro destes países, com as Sociedades de Beneficência, os seus Hospitais, que são hoje dos melhores da América Latina, os seus lares de idosos; nos EUA, com as Sociedades Fraternais, incluindo duas das maiores fundadas por mulheres. Eram a fórmula jurídica de, à época corrente, de apoio mútuo e de socorro dos mais desprotegidos. Agora, na mesma linha de actuação, em todos os continentes do mundo, centros sociais, lares de idosos, lares de dia dão resposta a novos problemas, como o envelhecimento da primeira geração de emigrantes.
Na defesa da língua e da cultura e tradições portuguesas distinguem-se, desde o século XIX, os gabinetes de leitura, os grémios literários, os centros culturais, e, seguidamente, as escolas e liceus, os clubes recreativos e desportivos. Pertinente e plena de actualidade é a observação de Emygdio da Silva sobre a acção dos portugueses do Brasil, no campo cultural e social: "[...] A língua e a generosidade ficam para sempre, e talvez mesmo a generosidade fique menos adulterada do que a língua, atendendo aos múltiplos exemplos dados pela nossa colónia do Brasil. "[...]Têm os olhos postos no fazer bem... ao lembrar-se da sua pátria...".
A Pátria, por seu lado, habituou-se a receber doações e obras de grandes mecenas, para além da infinita quantidade de pequenos contributos e poupanças de milhões de expatriados. Talvez, por isso, a história de sucesso pessoal seja bem mais divulgada do que a do grupo - a imagem marcante dos "brasileiros" do passado, ou hoje, a dos "empresários de sucesso", de qualquer parte do mundo, que polariza o discurso político, desde os anos 90. O movimento associativo fica, imerecidamente, em segundo plano...
Entre os investigadores da emigração portuguesa do princípio de século XX, poucos são os que registam e comentam esta realidade. Entre as excepções, estão os que vimos citando, Afonso Costa e Emygdio da Silva. Afonso Costa informa: "... além disso, formaram-se colónias portuguesas em São Francisco, Oackland, em New Bedford e Providence, Boston e Brooklin, tendo com principal fonte da emigração os Açores". E caracteriza a sua agregação nestes termos: "As colónias portuguesas resistem, têm individualidade, mantêm o nome, a língua, os usos portugueses", acrescentando que a formação das "colónias": "[...] torna a emigração útil para a Pátria, perdendo o carácter de abandono da Pátria". É uma verdade, que intuiu antes de muitos na sua época: o "abandono da terra" cessa pela integração numa a "colónia" ou "comunidade" de vivência portuguesas. Por seu lado, Emygdio da Silva salienta "o sentimento associativo geral" entre os colonos portugueses do Brasil e tece interessantes considerações, como esta: "[…] a generosidade é a mais alta tradição da colónia portuguesa". (Silva, 1917: 278). Deixa-nos, também, uma relação circunstanciada das associações mais importantes, algumas das quais ainda hoje o são: a Caixa de Socorros Mútuos Dom Pedro V, o Gabinete de Leitura, o Clube Ginástico Português, no Rio de Janeiro, a Sociedade Portuguesa de Beneficência e o Centro Português de Santos, os Gabinetes de Leitura de Salvador e de Recife e outras notáveis instituições de Belém, Belo Horizonte, Manaus, São Luís de Maranhão, Curitiba.
Todavia, não creio que ambos estes grandes conhecedores das comunidades oriundas da emigração, na sua época - e muito menos quaisquer outros... - tenham tido plena consciência de que estavam perante formações capazes de sobrevivência para além do fim dos tempos da emigração, alicerçadas naquela emigração familiar que queriam evitar a todo o custo: a que não tinha retorno, a que se considerava inevitavelmente votada à "desnacionalização".
E, se os autores portugueses, que referimos, e que julgamos serem representativos de um pensar moderno no seu tempo, estavam certos quanto ao decréscimo de retornos no quadro da emigração familiar, ficariam, por certo, surpreendidos com a resistência à "dissolução cultural" das comunidades formadas por terceiras e quartas gerações de portugueses, que, por exemplo, na Califórnia - um destino de não regresso, por excelência - continuam a falar a nossa língua e a manter vivas as tradições portuguesas.
Esta outra e insuspeita da forma de presença - a das comunidades orgânicas, a que as mulheres e os jovens deram densidade e futuro - só vem a ser reconhecida, e a influenciar as políticas de emigração, nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mais exactamente, a partir de 1980, com a criação do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), um órgão representativo das organizações dos portugueses do estrangeiro, destinado a ser um interlocutor privilegiado na definição e execução das políticas culturais e sociais, uma "[…] instituição medianeira entre a sociedade civil e o Estado" (Aguiar, 1986:83).

III - AS POLÍTICAS DE REENCONTRO
«Portugal é mais uma cultura do que uma organização rígida» Francisco Sá Carneiro
1 - A Representação das Comunidades da Diáspora
O reconhecimento da pertença dos emigrantes a uma Nação populacional ou "Nação de Comunidades", é coisa recente. Julgo que poderemos situar o ponto de viragem, nesta mundivisão de nós, no I Congresso das Comunidades Portuguesas, realizado pela Sociedade de Geografia, em Setembro de 1964, a que se seguiu, dois anos depois, um segundo congresso.
Na audição parlamentar de 2004 sobre esta temática da representação dos "ausentes", a que já aludimos, Adriano Moreira, o principal impulsionador desses Congressos, na altura em que era presidente da Sociedade de Geografia, foi convidado a traçar o quadro de preparação da iniciativa e dos seus objectivos. Ninguém o poderia, aliás, fazer melhor do que ele mesmo:
"A ideia traduziu-se numa espécie de sistematização do que era a presença de Portugal no mundo, do ponto de vista das comunidades. Utilizamos uns conceitos operacionais que as arrumavam em três espécies". A primeira era composta pelos emigrantes de 1ª geração, a segunda pelos seus descendentes , que mantinham ligação às raízes, a terceira pelas comunidades filiadas na cultura portuguesa - obra também dos emigrantes, que "[…] aculturavam os povos por onde passavam" (audição 2004:100).
Pelo empreendimento, inédito em Portugal, pela consciência da existência de um património histórico, que havia que preservar e potenciar, pela estratégia de criação de uma base institucional, para prosseguir esse intento (com a criação da União das Comunidades - que nunca chegaria a ter efectiva vida, por oposição dos poderes constituídos - e da Academia Internacional da Cultura Portuguesa), os dois congressos da Sociedade de Geografia (o de 1964 e o de 1966) são precursores das políticas ditas "de reencontro", empreendidas a partir do final da década seguinte.
O primeiro "Congresso Mundial das Comunidades Portuguesas", depois do 25 de Abril de 1974, que não teria resultados práticos assinaláveis - sobretudo em razão do mesmo tipo de conflitualidade ou rivalidade política que determinara o impasse em que caiu a "União" dos anos 60... - começou, como recordava o deputado Carlos Luiz, a ser organizado por uma Comissão que integrava elementos do Conselho da Revolução, sob a presidência de Vitor Alves, com o apoio do Presidente Ramalho Eanes (audição 2004:36), mas viria a ser adiado para Junho de 1981, e levado a cabo por uma outra comissão organizadora, presidida por Rosado Fernandes, por indicação do Governo. Foi, se não efectivamente o primeiro de todos, o primeiro realizado sob a égide do Estado, com a presença de portugueses das sete partidas do mundo, dirigentes das instituições em que se estrutura o espaço universal da cultura portuguesa, muitos dos quais haviam também respondido à chamada da Sociedade de Geografia, na década de 60 (com esplêndidas comunicações, que se encontram publicadas pela revista da Academia Internacional da Língua Portuguesa, incluindo as de Adriano Moreira, Presidente do I Congresso, que, na sessão abertura, poria, justamente, o acento tónico no propósito que era o denominador comum de todos os participantes, falando de:"[...] manifestação de respeito da nação que peregrina pelo mundo alheio" (Moreira, 1973: 57).
E o seu conceito de "nação peregrina", com essa ou outra designação - o "Portugal maior" de Vitorino Magalhães Godinho ou a "nação de comunidades" de Francisco Sá Carneiro - entrou no léxico político a significar uma nova visão de nós, e de uma "emigração de omnipresença".
Em 1980, foi criado, como dissemos, um órgão consultivo de representação das comunidades, livremente eleito no interior do movimento associativo, cuja capacidade de agregação e autenticidade se pretendia potenciar. Na óptica governamental, "[…] para garantia dessa autenticidade se baseou o processo de eleição dos representantes nas associações, que são a estrutura organizacional e os centros de vida das comunidades portuguesas do estrangeiro" (Aguiar, 1986:84). Do preâmbulo da Lei nº 373/80, resulta claramente a intenção de aproveitar a força, o engenho e a autoridade de quem tem obra feita, respeitando a independência dessas instituições perante o Estado e face ao próprio "CCP", enquanto criação governamental: O Conselho " […] de modo algum pretende substituir-se aos movimentos preexistentes, pois se pressupõe ser condição de êxito deste projecto a vitalidade e capacidade de afirmação das próprias associações."
É na real autonomia da "sociedade civil" face ao Estado, trazendo ao fórum de debate os seus próprios projectos, assim como no enfoque dado à força do associativismo, que este CCP - ao contrário dos que mais tarde lhe haviam de suceder, sem olhar à herança que deixara, numa linha de descontinuidade - estava próximo do principal escopo e das preocupações metodológicas do movimento precursor de sessenta. Uma conclusão que não tenho visto assinalada, mas que resulta claramente da intervenção do Prof. Adriano Moreira, nesse memorável fórum parlamentar, que venho referenciando: "Qual foi o método que utilizamos? Foi partir em primeiro lugar da capacidade dessas associações e, por isso, o nosso ponto de referência foram as associações, sobretudo do Brasil, que era sempre o maior campo de observação" (Audição: 2004:63).
Num contexto político diverso, uma semelhante orientação estratégica para o universo associativo.
Na década de 60, se a "União" houvesse tido condições de ganhar vida própria, Portugal teria, como aconteceu - muito antes, de resto... - em quase todos os países europeus de emigração, consolidado o movimento federativo, ou a "federalização" das suas instituições da Diáspora.
Com o modelo associativo do CCP se pretendia, de algum modo, suprir a lacuna que subsistia, reunindo em convívio e em trabalho comum, dirigentes associativos de todos os continentes. E, do mesmo passo, iniciar um novo ciclo nas políticas para as comunidades portuguesas, como ressalta, inequivocamente, do discurso oficial, a partir de 1980. (Aguiar, 2009:259). Porém, nesta precisa configuração, em que foi concebido, duraria menos de uma década. Com a diluição da sua importância pela reiterada omissão de consulta e audição governamental, desde 1988/89, depois, na década de noventa, pela expressa adopção de um outro modelo de "Conselho", desprovido da sua matriz associativa, se encerrou a experiência.
A partir de 1996, o novo CCP é eleito por sufrágio directo e universal, à maneira de um parlamento, embora com meras funções consultivas. O CCP tem vivido em recorrente situação de crise existencial - pontuada por conflitos internos e afrontamentos com o próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros, do qual depende. Nem por isso se deve esquecer o insubstituível papel que pode desempenhar, em representação dos emigrantes e das diásporas culturais. O distanciamento do mundo associativo acrescido da ambiguidade da sua própria natureza dual (órgão representativo, eleito directamente pelos emigrantes, órgão consultivo do governo...) não lhe permita ter a mesma capacidade de implementação de projectos e de interacção com o Estado de que deu provas, naquela sua primeira encarnação (Aguiar, 2009:260).
É, em qualquer caso, o órgão de "presença" dos expatriados, por excelência, porque só ele lhes pode, dar, com uma base institucional, a voz e visibilidade que ambicionam ter no país. Por ter a perfeita consciência desse potencial, tão largamente desaproveitado, apesar da dedicação de tantos Conselheiros, que cuja crença tem resistido à falta de condições de trabalho e, sobretudo, de atenção dos poderes públicos é que a Subcomissão das Comunidades Portuguesas promoveu as duas sucessivas audições (a que, aqui, damos o devido relevo!) para reflexão sobre os modelos que melhor serviriam o seu futuro - o primeiro, em 2003, mais orientado para a procura de inspiração em soluções de direito comparado, o segundo, a que já fizemos várias referências, em 2004, para a possível "constitucionalização" do órgão, conferindo-lhe um carácter quase senatorial. Especialistas como Barbosa de Melo e Bacelar de Gouveia não excluíram o repto que lhes era lançado - na proposta de "constitucionalização" do órgão - tão cara à maioria dos conselheiros das comunidades, porque é portadora das maiores esperança s na valorização, na independência e na operacionalidade do” Conselho”- mas não a aceitaram incondicionalmente.
Para Barbosa de Melo, a consagração da existência e das competências do CCP no texto da Constituição Portuguesa pode ser uma vantagem: Constitucionalizar, sim, " mas constitucionalizar como órgão do Estado português e não como órgão de Governo ou como órgão da Assembleia da República. Do que se trata aqui é de um instrumento para o exercício dos direitos fundamentais e constitucionais dos nossos compatriotas emigrados perante o Estado no seu conjunto" . (audição 2004:33).
Igualmente aberto a uma possível aceitação de uma emenda constitucional, mas recomendando prudência, Bacelar de Gouveia: "É preciso não nos entusiasmarmos em demasia com a ideia da constitucionalização. Há muitas constitucionalizações e não só uma [...]" (audição, 2004: 63).
Outro tanto se pode dizer do "Conselho", independentemente da sua entrada no "santuário" que a Lei fundamental configuraria, colocando-o fora do alcance do poder discricionário dos governos...

2 - Novos Direitos dos Expatriados
A igualdade de direitos dos expatriados face aos residentes é hoje um reivindicação generalizada, ao menos nos países de "diáspora".
Na sua plenitude, a igualdade está longe de ser alcançada em Portugal. Faz parte do ideário de alguns partidos políticos, mas não, nos mesmos termos, nas de outros. Por isso, desde 1974, temos progredido, a par e passo, numa incessante procura de equilíbrios e de consensos, na Constituição e nas leis, consolidando em novos direitos culturais, sociais e políticos o "estatuto dos expatriados".
Direitos Culturais
O Estado, assume, no Capítulo III, art.º 74 da Constituição, a incumbência de " assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa e o acesso à cultura portuguesa", mas incumpre largamente esse dever, e mais em determinados quadrantes geográficos do que noutros... Mais nas comunidades transoceânicas do que na Europa, a levantar a suspeita de que se vem privilegiando a emigração temporária, na visão oitocentista, isto é, a emigração de retorno, como é (ou se pensava que fosse...) a do nosso continente. Por outras palavras: a língua parece ser ensinada, sobretudo, na perspectiva do apoio à reinserção dos jovens de 2ª geração e negligenciada como instrumento de preservação das comunidades de cultura portuguesa no mundo. Depois de uma primeira extensão do ensino oficial e gratuito, fora da Europa, na África do Sul, em fins de 70, anuncia-se agora idêntica cobertura, no norte do continente americano.
Se a nível individual não há igualdade de tratamento, nesta área estratégica, o mesmo acontece no plano institucional. O mundo associativo que destacámos, tendo embora finalidades semelhantes ao que lhe serve de modelo inspirador em Portugal, e prosseguindo, para além disso, em simultâneo, o singular escopo de alargar o espaço da presença portuguesa universal, deve-se inteiramente à iniciativa privada. Dentro de fronteiras poucas ONG's atingiriam os seus objectivos sem a robusta componente do apoio estatal, a ponto de se falar a seu respeito, frequentemente, de "subsídio - dependência". Fora do País, pelo contrário, a verdade é que nenhum centro social e cultural, grande ou pequeno, nenhum clube ou sociedade beneficente existiriam sequer, se tivessem esperado por verbas do erário público para avançar... Mesmo quando algum apoio acabaram por receber, no conjunto, ele foi, e é, praticamente negligenciável.
Direitos sociais
Ao contrário do que acontece no domínio cultural, a Constituição não faz, no capítulo II, dedicado aos "Direitos e Deveres Sociais", qualquer expressa referência aos emigrantes.
É certo que o art.º 63, no seu nº 1º, determina: "Todos têm direito à segurança social", tal como o art.º 74, no seu nº 1º, assegura: "Todos têm direito à educação e cultura". Todavia, neste outro capítulo, "todos" já são apenas todos os que residem no território... Uma das várias contradições flagrantes da nossa Lei Constitucional, no que às consequências da ausência do território respeita.
Tradicionalmente, como é sabido, o Estado quase se limitava a apoiar o repatriamento dos seus nacionais, em situações de extrema miséria. Um gesto de solidariedade que não configurava um direito, e ainda hoje se não encontra regulamentado como tal, apesar de ter sido, aprovado, na generalidade, um diploma que não chegou a ser apreciado em comissão e objecto de votação final global. (Aguiar, 2006:68).
Em anos recentes, pelo menos desde a década de 80, a Secretaria de Estado da Emigração concedia apoios pontuais em outras situações de necessidade, através dos seus serviços no estrangeiro, mas só em 1999 o Governo instituiu o Apoio Social a Idosos Carenciados (ASIC). Uma prestação de montante variável, de país para país, atribuída, com restrições, longe de ser o equivalente pensões não contributivas ou dos mínimos rendimentos que são garantidos dentro de fronteiras...
Em Direito comparado, há, actualmente, bons exemplos de sistemas de assistência na doença e na velhice, nomeadamente em países de emigração semelhante à nossa, caso da Espanha ou da Itália - o que aumenta o sentimento de abandono de que os portugueses mais pobres se queixam - e os outros por eles...
Direitos Políticos
O restabelecimento da democracia em 1974, veio dar aos emigrantes, pela primeira vez na história, direitos de participação na vida pública.
Eleger quatro deputados, em dois círculos eleitorais próprios - uma excepção ao princípio constitucional da proporcionalidade, pelo método de Hondt .
Com a adesão à CEE, na qualidade de cidadãos europeus, votam nas eleições para o Parlamento Europeu, embora só desde 2004 esse direito tenha sido alargado aos que vivem fora do espaço da União Europeia (Aguiar, 2006:85).
Foi preciso esperar pela revisão constitucional de 1997, e manter acesa uma luta prolongada, que o CCP encabeçou, para ser concedido, com restrições, aos expatriados o direito de voto na eleição do Presidente da República. Têm capacidade eleitoral passiva apenas aqueles que comprovem, nos termos do nº 2º do art.º 121, "laços de ligação efectiva à comunidade nacional."
A mesma exigência condiciona a participação dos emigrantes em "referenda" nacionais, e apenas quando "recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito". O entendimento sobre essa melindrosa qualificação da matéria (que reintroduz, de forma larvada, a ausência como fonte de discriminação) nunca foi pacífico - mostram as experiências havidas ser questão em que os partidos, a começar pelos dois maiores, costumam divergir.
Com dois cadernos eleitorais distintos, para os dois órgãos de soberania, estão, assim, do ponto de vista jurídico, criados dois conceitos de "comunidade nacional", dois universos eleitorais: um mais lato, que abrange todos os portugueses "de passaporte" e a todos, mediante o simples acto de inscrição no recenseamento, confere capacidade eleitoral passiva; outro, mais restrito - que alguns chamaram, sem lógica nem rigor, o da "comunidade política nacional", visto que para a qualificação tanto deve relevar um como outro dos órgãos de soberania em causa - exclui como eleitores do PR, e participantes em "referenda", os que tenham a nacionalidade do país estrangeiro onde residem, e os que estão ausentes há um certo número de anos - ainda por cima, número variável, conforme os continentes ou Estados para onde emigraram (art.º 1º-B da Lei Eleitoral do Presidente da República - com a redacção introduzida pela Lei Orgânica nº 5/2005 de 8 de Setembro).
Para além desta dualidade de universos eleitorais, há ainda a dualidade de modos de votação nas três eleições referidas; nas legislativas os emigrantes votam por correspondência, nas presidenciais e europeias, por sufrágio presencial. (Machado, 2009:41) Um sistema que prima pela falta de coerência e de unidade. A ausência passa, de novo, a implicar, em determinados condicionalismos, variáveis conforme as latitudes, uma notável diminuição dos direitos de cidadania. É um estado de coisas inaceitável, e sem solução à vista... Ao contrário do que acontece com as prestações sociais, ou da extensão da rede de ensino, que custam dinheiro, a concessão do voto não, pelo que as limitações estabelecidas só podem, evidentemente, resultar de visões antagónicas da emigração e do emigrante no seu relacionamento "político" com o país. Foi sempre difícil o consenso entre os dois partidos do "chamado "bloco central", que, por si só, perfaziam a maioria qualificada de dois terços, exigida para qualquer alteração constitucional ou para a aprovação de leis orgânicas, como são as eleitorais. PSD e PS mantêm viva a polémica em matéria eleitoral (bem mais do que em outros capítulos, devemos acrescentar...). Entre si - e, em certa medida, também no seu interior. No PSD, aparentemente mais unido na reivindicação de igualdade de direitos políticos para todos os portugueses - uma constante dos seus programas eleitorais - poderemos apontar, por exemplo, mudanças radicais na forma de conceber a representação específica dos emigrantes, o CCP.
3 - Um novo trato da emigração: da dominante economicista à cultural
De qualquer modo, no espaço de menos de meio século, estamos chegados à construção de discursos (no plural) absolutamente distintos daquele que anteriormente se impunha, a nível oficial, e, também, a nível doutrinal ou científico, sobre uma realidade migratória, que, no essencial, não é muito diversa: Homens e mulheres - estas hoje, cada vez mais, em pé de igualdade - que são obrigados a sair, porque a conjuntura económica a isso conduz, e a sair em massa, como dantes, contra todas as expectativas de um passado próximo; a manutenção de redes de relações de toda a ordem com o país de origem; a existência de formas de entreajuda e de vivência em "colónias", na designação antiga, ou "comunidades", na de agora.
De uma avaliação positiva das migrações pela orientação ou canalização dos seus ganhos materiais para o território e pelo desejado fim de ciclo com a reinserção dos homens na sociedade de origem, chegamos, no início dos anos 60, ao momento histórico da reavaliação do património cultural (constituído pela sedimentação de vagas sucessivas de emigração, convertida em diáspora), pelo menos, à sua incorporação no conceito de portugalidade - com a presença cultural a equivaler à presença física no território. E, a partir de 1974, à consagração constitucional do direito de livre circulação, ao delineamento de políticas de protecção em todo o ciclo migratório, à aceitação do princípio da igualdade entre todos os cidadãos, independentemente da residência (ainda, como é claro, sem o levar às últimas consequências...) e ao reconhecimento da importância da presença externa das comunidades oriundas da emigração, para a vida do País, com ela enriquecido na sua dimensão.
Francisco Sá Carneiro, dirigindo-se à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em 21 de Abril de 1980, na qualidade de Primeiro-ministro, declarava: "Le Portugal est maintenant un petit pays de 90.000 kilométres carré, plus les iles atlantiques. Cependent, il est beaucoup plus que cela et il essaye de s’organiser comme nation en un petit territoire mais avec un peuple immense, dispersé sur tous les continents [...]" (versão oficial do Conselho da Europa, em língua francesa).
Na mesma linha de pensamento, se colocaram os governos que se sucederam ao seu, quer os da "Aliança Democrática", considerados de centro-direita, quer o do chamado "Bloco Central (PS/PSD) : "Só assumindo-nos como nação populacional que somos, poderemos no cultural como no social, no político como no económico, esperar resolver com êxito não apenas os problemas da emigração, mas, de um modo geral, os do desenvolvimento e transformação da sociedade portuguesa" (Aguiar, 1986:111).
Uma ênfase muito especial é dado a uma nova imagem do emigrante, nos anos que se seguiram à adesão à CEE: "A ideia matriz de Pátria de Comunidades - e não de emigrantes - enfatiza naturalmente, o orgulho de sermos portugueses e, através do apelo à nossa História, aos nossos valores, e às nossas tradições, traduz-se num combate permanente à visão miserabilista da emigração". (Jesus, 1990: 69).
Porém, convirá precisar que no "paradigma personalista" - na tipologia de Bacelar de Gouveia, aqui adoptada - me parece caberem, por igual, políticas mais orientadas por esta visão atomística do cidadão, predominante na linguagem corrente - no hábito generalizado de dar à palavra "comunidade" o seu conteúdo meramente estatístico, afirmando, por exemplo, "[…] a comunidade portuguesa de França é de cerca de um milhão de pessoas […]" - e uma outra mais institucionalista, que olha as comunidades organizadas, herdeiras dessas outras já referenciadas pelos tratadistas do início de novecentos.
Em suma, o movimento associativo, com a sua visão dinâmica do património cultural português, e a sua capacidade de lhe dar vivência colectiva e futuro.

Fevereiro, 2010
Manuela Aguiar






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