GRANDE MIGRAÇÃO DE ÁFRICA PARA PORTUGAL
1 - Tenho a noção daquilo que posso, sobretudo nesta área. Não sou
especialista em imigração ou emigração. Acontece, porém, que é um tema
que seguramente interpela qualquer pessoa que se preocupe com os
interesses do país. E não foram poucas as vezes em que tive de me ocupar
desta problemática e destas matérias.
Começo por informar que, com o Orfeão Académico de Coimbra, visitei
Angola, Moçambique, São Tomé e África do Sul em 1949, onde pude
contactar com os nossos compatriotas que aí viviam e ouvi-los sobre
problemas específicos que tinham como emigrantes.
Fiquei muito marcado pela maneira calorosa como receberam o Orfeão
de Coimbra, bem demonstrativa dos laços muito fortes que os uniam
à sua terra natal. Apesar disso, não deixava nunca de transparecer das
longas conversas havidas um grande descontentamento em relação à
política ultramarina, que não era dirigida essencialmente ao objectivo
nobre da colonização, que era o de promover o desenvolvimento de povos
que estavam numa fase de desenvolvimento muito atrasada, parecendo
antes ter o objectivo contrário, isto é, fazer com que não houvesse
desenvolvimento para não haver vontade de autonomia e de separação. E
isso era qualquer coisa que não podia ser aceite por quem tenha a noção
do que é a solidariedade entre os seres humanos e entre povos.
Lembro-me também de que, quando comecei a despertar para a
problemática da democracia no nosso país, um dos assuntos que
constituía motivo de grande preocupação era exactamente o problema
colonial, porque era patente, pelo menos para as gerações mais novas a
que eu pertencia, que a política ultramarina precisava der ser repensada e
que os problemas levantados pelos movimentos separartistas não tinham
solução através da via que estava a ser seguida: a guerra, em vez de
resolver os problemas, só podia contribuir para os agravar.
Rrecordo-me também de que o problema do Ultramar se pôs com grande
acuidade no seio do Grupo que se constituiu no Porto para apoiar o bispo
do Porto no exílio e que veio a ter um papel importante na promoção
dos ideais democráticos, nomeadamente através da participação de
representantes seus na Assembleia Nacional, exactamente para defender
epromover a evolução do país para uma democracia do tipo ocidental.
O problema colonial era um problema extraordinariamente importante
e a posição que eu próprio e todos aqueles que integravam o grupo
defendíamos era a de que a única solução era fazer de Angola e
Moçambique, novos Brasis, devendo Portugal mostrar-se disponível
para, em diálogo com os povos de Angola, de Moçambique e das outras
colónias portuguesas, preparar o caminho para que eles pudessem no
momento oportuno exercer o seu direito à autodeterminação e aceder à
autonomia ou à independência.
E, à medida que os tempos foram evoluindo e que se via (só um cego
é que não via) que era completamente impossível manter o mesmo
esquema de domínio dos povos europeus sobre os povos ultramarinos,
tornava-se cada vez mais evidente que era necessário agir e alterar
profundamente esta situação.
Houve ainda uma informação que me marcou muito e que eu nunca
mais esqueci. Completado o Curso de Direito em 1953 e o Curso
Complementar de Ciências Jurídicas em 1954 na Universidade de Coimbra,
comecei a trabalhar em Lisboa em 1955 e a frequentar um grupo de
amigos bem informados sobre a política nacional, sendo que alguns até
desempenhavam funções importantes em Gabinetes ministeriais. Ora,
uma das inormações partilhadas nesse grupo, aliás com alguma reserva,
foi a de que a Inglaterra tinha avisado Portugal de que ia alterar a sua
política em relação às suas posseções ultramarinas por considerar que
era impossível manter o esquema de então e que era impossivel travar
as suas aspirações à independência. Sendo assim, o que havia que fazer
era reconhecer o seu direito à autodeterminação, era dar-lhes acesso à
independência por um processo negocial que pudesse salvaguardar os
verdadeiros interesses dos antigos povos colonizadores. E nós, olhando
para o que aconteceu com os povos dominados pela Inglaterra e com as
nossas antigas colónias, não podemos deixar de reconhecer que era esta a
via mais aconselhável.
2 - Eu penso que há aqui um ponto que nós não podemos esquecer.
O 25 de Abril abriu as portas da liberdade e da democracia ao nosso
país. Não é que a democracia resolva todos os nossos problemas e não
cometa erros, pois acho que pensar isso é uma fantasia. A democracia
significa que os destinos de um povo estão nas mãos dos seus cidadãos
e através do voto ou de qualquer outra maneira, no governo ou onde
for, os cidadãos podem agir bem ou agir mal, podem fazer coisas boas ou
podem fazer coisas más.E nós, se quisermos fazer uma análise do que se
passou em relação ao 25 de Abril, temos que reconhecer que começámos
muito mal, designadamente com o problema da descolonização. Foi um
verdadeiro desastre, económico e humano.
Mas não estava toda a gente irmanada na mesma ideia. Eu acho que as
pessoas se recordam, aqueles que têm alguma idade, que havia quem
entendesse, mesmo depois do 25 de Abril, como o General Spínola,
então Presidente da República, o PPD liderado por Sá Carneiro e o
CDS, que se devia fazer uma descolonização que tomasse em conta a
manifestação da vontade dos povos das colónias ultramarinas. Mas
toda a gente sabe também que a aceleração revolucionária foi de tal
ordem, e nisto estiveram conjugadas todas as outras forças políticas –
falo principakmente do Partido Comunista, mas falo também do próprio
Partido Socialista - que se tornou muito difícil ou mesmo praticamente
impossível acautelar interesses e reduzir riscos através de negociações
sérias e necessariamente demoradas. Lembremos o slogan com
verdadeira força arrasadora “Descolonização já!"
Antes já se tinha defendido essa posição. Recordo-me, nomeadamente,
que, como membro da Comissão Diocesana de Justiça e Paz, aqui na
Diocese do Porto, subscrevi um documento, em que se dizia isto mesmo,
Que era necessário reconhecer o direito das colónias portuguesas
à autodeterminação e que se devia preparar esse caminho. Esta
posição representava uma grave afronta ao governo de Salazar, e só
não teve consequências graves para os subscritores do documento
por circunstâncias muito especiais . Tratava-se, com efeito, de um
assunto "tabú" e tanto assim é que, os deputados do grupo que integrou
a Assembleia Nacional e veio a ser conhecido como Ala Liberal, tiveram de
assinar o compromisso, antes de se candidatarem, de que não abordariam
nas suas intervenções a questão ultramarina. Era "tabú" e não se podia
mexer nisso.
3 - Hoje vou falar-vos de um tema que não é verdadeiramente uma
migração típica. As migrações típicas têm, não digo totalmente, mas têm
uma percentagem forte de autonomia e de decisão própria daqueles
que mudam de território. No caso dos retornados de Angola, sobretudo
porque foi em maior número, e de Moçambique, não foi assim. Eles
não regressaram por vontade própria. Essencialmente, eles voltaram
para Portugal para salvar a própria pele, aqueles que a puderam salvar,
porque muitos ficaram lá. Não vieram em correntes normais, que são
mais facilmente absorvidas, vieram em catadupa. Nunca ninguém pode
saber exactamente os números, mas aqueles que se apontavam mais
comummente eram da ordem, pelo menos, dos 700.000 portugueses
que vieram para Portugal em 1975 e princípios de 1976. Eu fui para a
Secretária de Estado em Janeiro de 1976 e fui várias vezes esperá-los ao
aeroporto onde chegavam às centenas e se acumulavam aos milhares,
antes de seguirem para junto dos seus amigos ou familiares ou ainda
para os lugares de acolhimento indicados pelos serviços do Instituto de
Apoio aos Retornados. Chegavam destroçados física e moralmente, tendo
perdido todos os seus bens acumulados ao longo de anos de trabalho
duro e honesto, com a memória das situações dramáticas por que tiveram
que passar para, milagrosamente , salvarem as suas vidas e com a imagem
terível daqueles que lá ficaram. Este é, para mim o quadro que nós temos
que ter na nossa mente, qualquer coisa que nos toca e nos faz doer o
Portanto, temos que assumir que isto não foi uma coisa absolutamente
necessária, que podia não ter sido assim. A responsabilidade cabe, em
primeiro lugar, no meu entender, na minha opinião pessoal, aos governos
anteriores que a tempo não souberam tratar do problema: o governo de
Salazar, que foi avisado a tempo pelos nossos amigos ingleses, e o governo
de Marcelo Caetano. Aliás, muitos dos problemas que tivemos a seguir ao
25 de Abril, na minha opinião, devem-se também ao facto de e o governo
não ter permitido a formação de partidos políticos, e e não ter respeitado
outros direitos do Homem, além de não ter conseguido impedir a
formação de uma força política, que era o partido comunista, que, com
a sua organização e os seus recursos humanos e financeiros, teve uma
grande vantagem sobre os partidos políticos que começaram a formar-
se depois do 25 de Abrile que, por isso, chegou a dominar a situação em
Portugal, como toda a gente se recorda, com violências de toda a ordem.
E essa é também uma página muito negra do nosso processo do 25 de
Abril, a que não podemos de maneira nenhuma fechar os olhos.
Mas eu sou obrigado a fazer o contraponto, eu que desde muito cedo
me apercebi de que a única forma digna de um país se organizar é a
democracia. Não há ninguém, por mais inteligente que seja, por mais
dotado que seja, que se possa arrogar o direito de decidir pelos outros
sem sequer querer saber o que é que eles pensam. Esse foi o regime em
que nós vivemos durante muito tempo.
Antes de partir para África, o Orfeão de Coimbra foi recebido por Salazar
no Forte de São João do Estoril e eu nunca mais me esqueci da grande
mensagem que nos quis transmitir. "Os portugueses seriam muito mais
felizes se seguissem as orientações do governo em vez de discutirem no
café e de fazerem críticas...” A ambição dele era, portanto, ter pessoas
obedientes e submissas que acatassem as orientações e os comandos da
pessoa iluminada que ele era.
Ora, eu considero - eu digo isto porque tenho consciência de que hoje há
muita gente que está descontente com o 25 de Abril, porque as coisas
não têm corrido tão bem como nós desejaríamos, porque se criaram
expectativas excessivas - mas enfim, considero que é absolutamente
essencial que as pessoas tomem consciência de que o único regime que dá
dignidade ao ser humano e aos cidadãos portugueses, é indiscutivelmente
a democracia.
Se porventura Salazar tivesse reconhecido, ao menos numa fase em
que isso era claro como água, que era preciso evoluir para um regime
democrático, como como viria a reconhecer Marcelo Caetano, embora
sem passar das palavras aos actos, as coisas teriam sido completamente
diferentes. Nós tivemos pessoas cegas no poder que nunca tiveram os
olhos abertos à realidade e que esperaram até que a barragem se desfez
e veio a avalanche das forças organizadas contra a grande maioria dos
cidadãos impreparados que nunca tinham pensado em tomar nas suas
mãos os seus destinos.
Apesar de tudo, também gostaria de aproveitar esta oportunidade para
dizer que, no diálogo que mantive ao longo de vários anos no quadro
da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa ,sempre ouvi da
generalidade dos parlamentares dos paises democráticos da Europa os
maiores elogios a Portugal e aos portugueses por terem sabido superar
os gravíssimos problemas que tiveram de enfrentar na sequência da
revolução de 25 de Abril, dando excepcionais provas de bom senso,
de equilíbrio e de determinação na defesa dos valores da democracia ,
constituindo assim um exemplo a seguir, que já foi efectivamente seguido,
por outros povos que venham a encontrar-se em situação semelhante.
4 -Que é que eu posso dizer-vos para além disto, que são preliminares
que mostram o problema em toda a sua extensão, lembram até como ele
podia ter sido evitado, que podíamos ter tido uma descolonização bem
mais humana do que aquela que tivemos e seguramente menos dramática
do que aquela que tivemos.
Outro aspecto que eu penso que é importante destacar é que, apesar
de tudo, as autoridades portuguesas de qualquer sector, se mostraram
sempre fortemente empenhadas, até ao limite do possível, se é que
mesmo este limite não foi muitas vezes ultrapassado, na resolução dos
prolemas ingentes e muitas vezes dramáticos dos portugueses residentes
nas antigas colónias que foram obrigados a regressar a Portugal.
Mas também tenho a convicção de que houve tentativas de forças
políticas para tirar proveito, a meu ver ilicitamente, da situação dos
retornados. Não tenho a mínima dúvida a esse respeito. Duma delas até
fui eu a vítima.
Refiro-me à invasão do meu gabinete de Secretário de Estado dos
Retornados por um grupo organizado de cerca de 300 a 400 pessoas,
algumas delas, ao que veio a ser apurado, em tratamento em hospitais
psiquiátricos, que exigiam que eu abandonasse o meu cargo com o
fundamento de que este cargo devia ser exercido por um retornado.
Argumentavam ainda que eu era comunista e, consequentemente,
inimigo dos retornados. Argumento curioso, quando era lícito suspeitar
que o movimento tinha por traz o Partido Comunista e era simples
pretexto para atacar o Governo. Aconteceu até que eu acabei por
ser agredido, eu até penso que a responsabilidade não terá sido da
organização. Mas, enfim, a situação era complicada, mesmo explosiva,
porque a certa altura havia cerca de 300 ou 500 pessoas no gabinete, que
era uma sala grande, e na rua começou a haver tiros.
Lá se conseguiu acalmar os ânimos, com o meu chefe de Gabinete,
Secretárias, e outros emmbros do Gabinete a tentarem corrigir a
informação que eles tinham, que não era nada verdade que eu fosse
comunista. E naquele período ainda meio revolucionário eu dispus-me
a resolver o problema da maneira mais pacífica. Tendo a polícia pedido
autorização para entrar no meu gabinete e desocupá-lo à força, resolvi
consultar os líderes do movimento e disse-lhes que era o momento de
eles decidirem se queriam sair voluntariamente, porque, se assim não
fosse, eu tinha que dar autorização à polícia para entrar e evacuar as
instalações. Por outro lado, no que respeita à reivindicação, disse-lhes
que não deveria ser feita perante mim, porque eu estava ali porque fui
nomeado legitimamente. E só estava lá enquanto quem me nomeou
quisesse que eu estivesse. Portanto, se queriam fazer essa reivindicação,
faziam-na ao Primeiro-Ministro.
É claro que eu tinha tido antes o cuidado de telefonar a Pinheiro de
Azevedo, que era um primeiro-ministro muito especial, a pedi-lhe
para receber uma delegação dos manifestantes para ver se a gente
conseguia controlar aquela manifestação e evitar que ela descambasse
ou redundasse em grande violência. Curiosamente eles aceitaram,
evacuaram o ministério livremente e eu próprio e o meu chefe de
gabinete, levámo-los de carro até ao gabinete do Primeiro-Ministro
Pinheiro de Azevedo. Pessoas que o conheceram imaginam o raspanete
que Pinheiro de Azevedo lhes deu. Acabaram por saír de lá todos a pedir
desculpa. E a manifestação acabou assim, nunca mais se tendo ouvido
falar da reivindicação que a teria motivado.
Mas, voltando ao problema dos retornados, eu fui escolhido - não pensava
nestas funções, nem tinha conhecimentos particulares nesta matéria - na
sequência do pedido de demissão do Secretário de Estado de então, meu
amigo e saudoso Vasco Graça Moura, que veio a notabilizar-se justamente
no domínio das letras e de outros domínios. Era um pessoa por quem eu
tinha um grande respeito, consideração e amizade, embora e por muitas
vezes não tivéssemos estado de acordo e até em aspectos importantes
da política do partido. Mas a verdade é que ele saiu do partido por
divergências no Congresso de Aveiro, que se realizou em Dezembro
de 1975, e, pessoa honrada como era, tendo saído do partido resolveu
entregar o lugar de Secretário de Estado dos Retornados ao partido para
que pudesse indicar para o cargo outra pessoa. E, entendendo o partido
que devia ser eu, acabei por ser nomeado.
Tive a sorte, devo dizê-lo aqui publicamente, de ter encontrado na
Secretaria de Estado pessoas que me deram uma ajuda absolutamente
fantástica. Aliás, também é preciso dizer que os ministros e os secretários
de estado não são necessariamente especialistas. São generalistas, quer
dizer, vêem os problemas na sua globalidade e assim é que tem que
ser. Têm que olhar para o país inteiro, devendo a informação técnica e
específica sobre cada assunto ser dada pelos seus colaboradores.
Mas eu tive realmente a sorte de ter colaboradores excepcionais,
competentes e de uma lealdade a toda a prova. São conhecidos, aliás. A
Dra. Maria Raquel Ribeiro, que foi deputada na Ala Liberal, juntamente
com Sá Carneiro e Balsemão e a Dra. Irene Aleixo, que foi Governadora
Civil de Setúbal.
5 - Mas, gostaria ainda de referir aqui alguns factos relacionados com a
minha passagem pela Secretaria de Estado dos Retornados que merecem
ser conhecidos.
Em primeiro lugar, posso afirmar que me parece indiscutível que a atitude
do governo do país - o governo de que eu falo era o sexto governo
provisório, anterior às eleições de 1976 que deram lugar ao primeiro
governo constitucional - no que respeita aos retornados, era proporcionar
tudo o que fosse necessário para eles não terem carências essenciais no
seu regresso a Portugal, e estamos a falar de alojamento, de alimentação,
de habitação e de ensino dos filhos. Aliás, a minha mulher,que é ligada a
esta área, lembrou-me que aumentou exponencialmente o número de
alunos nas nossas escolas porque se inscreveram várias dezenas de milhar
de crianças vindas de África.
Para executar a sua política, o Governo criou o IARN, Instituto de
Apoio aos Retornados Nacionais, configurando-o como uma espécie de
instituição pública paralela, porque tinha competências para tratar todos
os problemas, fossem quais fossem, relacionados com os retornados.
6 - Pouco depois de tomar posse, e quando o gabinete ainda dava os
primeiros passos, surge o meu primeiro grande problema e a minha
primeira surpresa. Sou informado por um responsável do IARN que os
cofres do Instituto estavam vazios e que havia contas a pagar a curto
prazo. Abreviando, chegou-se à conclusão de que era necessário um
reforço de verbas da ordem de um milhão de contos. Porquê? Porque
muitos retornados foram alojados em hotéis, hotéis que eram pagos pelo
Estado como se fossem clientes normais. E a este respeito deve dizer-se
que inicialmente até foi uma medida saudada pelos próprios hoteleiros.
A revolução de Abril eliminou o turismo. Os hotéis estavam às moscas,
completamente vazios. E então isto foi uma forma de os hoteleiros terem
os hotéis cheios. Os retornados distribuíram-se naturalmernte pelo país
inteiro, mas fpram muitos os que se concentraram em Lisboa e esses é
que causavam o maior problema ao orçamento do Instituto.
Era preciso pagar os hotéis e resolver-lhes o problema da alimentação.
A solução encontrada, porventura determinada pela força das
circunstâncias, consistiu na distribuição generalizada de “vouchers” que
permitiam aos retornados tomar as suas refeições nos restaurantes,
sendo depois as respectivas facturas apresentadas ao IARN. Assim se
compreende que as facturas dos hotéis e restaurantes atingissem no fim
do mês importâncias consideráveis.
Devo dizer que o meu pedido de reforço de verbas encontrou o melhor
acolhimento por parte do Secretário de Estado do Orçamento, na linha,
aliás, da orientação fixada pelo Governo no sentido de serem dados
ao IARN os recursos necessários para responder às necessidades dos
retornados, que, pela sua natureza, não se podiam prever com rigor e
tinham sempre que ser tomadas com a maior urgência.
Atendendo, porém, ao enorme esforço financeiro que esta situação
implicava, sendo ainda certo que a tendência seria a de se agravar com
o tempo, decidi fazer uma análise profunda de todas as medidas que
tinham sido adoptadas para apoiar os retornados e logo verifiquei que
nem todas eram correctas e estavam muito longe de respeitar o princípio
fundamental da igualdade de tratamento para todos os retornados. Será
que continava a justificar-se o alojamento de retornados nos hotéis ? Não
haveria outras soluções menos dispendiosas e até mais adequadas tendo
em conta o objectivo da sua reinserção social ? Não heveria mesmo a
necessidade de desocupar os hotéis para que pudessem ter o seu destino
normal, tanto mais que, com o fim do período mais agudo da revolução,
estavam restabelecidas as condições de segurança para quem quisesse
visitar-nos ? Será que não haveria uma solução alternativa mais correcta
e equilibrada para os retornados a quem era dada a possibilidade de se
alimentarem sem custos nos restaurantes ? Será que é juusto gastar
quantias avultadíssimas com os retornados que optaram por ficar na
região de Lisboa,deixando os que se espalharam pelo país muito mais
desprotegidos e entregues muitas vezes à sua sorte ?
Na sequência deste estudo e desta reflexão, a porimeira decisão que
tomei foi a de anular todos os “vouchers”que tinham sido distribuidos
pelo IARN, substituindo-os por prestações sociais que lhes permitiriam,
pelos próprios meios, prover à satisfação, a nivel aceitável, das suas
necessidades essenciais.
Comunicada esta decisão ao IARN para elaboração do projecto de
despacho, fui confrontado com toda uma série de razões que me
aconselhavam a renunciar ao meu propósito, invocando mesmo o
argumento de que este despacho iria provocar uma grande perda de
votos no meu partido nas eleições que deviam realizar-se dentro de
poucos meses.
Mas, a minha resposta, no essencial, foi a seguinte. Quando tenho um
problema, estudo-o em profundidade, analisando as suas soluções
possíveis, com as respectivas vantagens e inconvenientes e opto
naturalmente por aquela que julgo dever tomar, tendo em conta as
minhas competências e as minhas responsabilidades. A partir daí, a
decisão está tomada e é para executar, a menos que tenham surgido
factos novos ou razões que não tinha ponderado, o que não se verificava
neste caso. O despacho foi assinado e os “vouchers” acabaram.
Quanto aos votos, sempre entendi, e continuo a entender, que se
conquistam com uma actuação pautada pela seriedade e, seguramente,
pela competência demonstrada no exercício da função governativa, que
tem como objectivo o bem e os interesses do país e nunca angariação de
votos, ainda por cima através de processos desonestos, para o partido do
governante.
Eu até podia perder votos nas eleições, e até considero provável que
o PPD tenha perdido alguns. Mas, os votos que se perdem nestas
circunstâncias ganham-se depois, porventura a dobrar,com a credibilidade
que se conquista, porque, para mim a política não pode ter sucesso se as
pessoas que quiserem segui-la não tiverem credibilidade.
Essa foi sempre a minha grande preocupação. Aliás, eu devo dizer que
não é só a minha experiência pessoal. As pessoas estão muito enganadas
quando dizem que os políticos são todos uns aldrabões, uns corruptos.
Claro que também há disso, mas no meu entender, e conheço muita
gente que está na política, a grande maioria dos responsáveis políticos,
nomeadamente os membros do governo, actuam seriamente na linha de
defesa dos interesses nacionais e nunca na linha da defesa dos interesses
do partido.
Quem está no governo tem a obrigação moral e cívica de agir em
conformidade com a defesa dos interesses do país. Não pode pensar
na defesa dos interesses do partido. Aliás, os verdadeiro e autênticos
interesses do partido nunca são contraditórios com os interesses do país.
Um partido que se afaste da defesa dos interesses do país não é digno de
ter os votos dos eleitores.
Ora, nunca tive a menor dúvida de que era meu dever, para defender os
ineresses do país, acabar com uma despesa em grande parte injustificada
que custava aos cofres do Estado uma quantia calculada em 300.000
contos por mês.
7 - Da análise da situação, tornou-se também muito claro que a quási
totalidade do orçamento do IARN era gasta em Lisboa.
Qualquer retornado que habitasse em Trás-os-Montes, nas Beiras,
onde fosse, se quisesse ter algum apoio, teria que se deslocar a Lisboa.
Resultado: o acesso aos apoios era muito mais difícil, e, se viessem a obtê-
los, uma boa parte era gasta nas viagens.
Para pôr termo a esta situação, claramente discriminatória, determinei
que a assistência aos retornados devia ser prestada no local da sua
residência. Para tanto, fez-se um convénio com os serviços da Segurança
Social e foi assim que as coisas passaram a ser feitas.
8 - Como já tive a oportunidade de referir atrás, punha-se também o
problema da desocupação dos hotéis. O país, a partir do 25 de Novembro,
começava a ter a necessária estabilidade. Consequentemente, os turistas
começavam a ter condições para regressar e era preciso ter hotéis
disponíveis para os receber.
O problema não era fácil de resolver. Eu tive a consciência de que a
desocupação, para ser feita ordeiramente e sem grandes perturbações,
tinha que ser levada a cabo por alguém que soubesse dialogar com os
retornados e explicar-lhes convenientemente as razões que estavam na
base da decisão tomada. Tive que reconhecer que isto só podia ser feito
por pessoas da minha inteira confiança.
Esta tarefa, excepcionalmente difícil, melindrosa e arriscada, foi, por isso,
confiada à Dr.a Raquel Ribeiro e à Dr.a Irene Aleixo, apoiadas pelas suas
colaboradoras. A verdade é que seconseguiu desocupar o Hotel Altis, que
foi o primeiro entre muitos outros, sem grandes problemas, oferecendo-
se como alternativa a cada retornado uma importância considerada
razoável que lhe permitisse organizar a sua vida e assegurar no imediato a
satisfação das suas necessidades essenciais
Os retornados a quem não agradasse esta proposta, seriam encaminhados
para alojamentos colectivos, como antigos quartéis, antigos sanatórios,
etc. Eram instalações humanamente aceitáveis, cosideradas como
provisórias, como se pretendia que fossem. Resultaria daqui uma pressão
razoável para que o próprio retornado se empenhasse na procura duma
solução mais conforme com as suas legítimas aspirações.
Aliás, eu também já tinha tido, há muitos anos, a responsabilidade de
dirigir os serviços sociais das prisões, destinado a prestar assistência
aos presos e suas famílias, aprendendo aí um princípio básico. A ajuda
social deve ter como objectivo principal o desenvolvimento máximo das
capacidades, da autoestima e do sentido de responsabilidade de quem
está necessitado para que ele possa, por si próprio, resolver os seus
problemas. Daqui resulta que a ajuda só deve ter lugar quando, a esta
luz, se revele claramente necessária e deve ser sempre encarada como
acessória e temporária. É este o sentido daquele velho ditado chinês: “se
alguém tem fome, não lhe dês o peixe, dá-lhe antes a cana para pescar”.
Quer dizer, como tive a ocasião de ler em livros especializados nesta
matéria, é indispensável, em relação a uma pessoa que pede ajuda, ter
a paciência e a coragem de permitir que ela se aperceba da gravidade da
situação, que “queime até as pontas dos dedos”, para a partir daí agir e
tentar por si própria resolver os seus problemas.
Aconteceu, de resto, que a grande maioria dos retornados era dotada
de um grande espírito de iniciativa e de uma vontade muito forte de
melhorar as suas condições de vida, prontos para enfrentar com coragem
e determinação as dificuldades que pudessem surgir. Foi por isso que,
em prazo relativamente curto, fazendo apelo a todas as suas capacidades
e com a ajuda e a solidariedade de familiares, amigos ou simplesmente
conhecidos, espalhados por todo o país, já tinham casa para morar e
desenvolviam actividades da mais diversa natureza que lhes permitiam
auferir rendimentos para prover à satisfação das suas necessidades.
Tenho a consciência de que o governo fez o que devia e o que podia
para ajudar os retornados. Mas se a sua reintegração no nosso país foi
indiscutivelmente um caso de sucesso, que causou imensa admiração e
rasgados elogios a Portugal, o mérito cabe essencialmente aos próprios
retornados e ao extraordinário espírito de entreajuda e de solidariedade
mais uma vez demonstrado pelo povo português.
Recordo que a generalidade dos parlamemtares do Conselho da Europa
não se cansavam de fazer as referências mais elogiosas. Então os
franceses, conscientes dos problemas complicadíssimos que tiveram com
a integração dos retornados da Argélia, perguntavam insistentemente
com é que nós, um país tão pequeno com 9 milhões de habitantes
conseguimos, num curto espaço de tempo e de uma maneira tão pacífica,
integrar cerca de um milhão de retornados das antigas colónias. Eram só
Como acabei de dizer, o mérito foi sobretudo dos próprios retornados
que demonstraram possuir a capacidade, a vontade e a determinação
necessárias para ultrapassar a situação dramática que lhes foi criada e de
muitos milhares de portugueses que, por razões de família, de amizade ou
de simples vizinhança, deram provas de uma solidariedade sem limites.
Mas também tem de se reconhecer o mérito do Estado que, como já
foi dito, fez tudo o que era necessário para garantir a subsistência dos
retornados e para apoiar os projectos em que rapidamente se lançaram
para reorganizar as sus vidas.
9 -Cabe aqui falar da criação do Fundo de Financiamento dos Retornados.
A certa altura, os Estados Unidos resolveram, numa louvável atitude
de solidariedade com Portugal, oferecer um donativo de um milhão de
contos. Se esse donativo fosse utilizado para melhorar as prestações
de apoio aos retornados, o seu impacto seria relativamente reduzido
e esgotar-se ia rapidamente. Sabia que muitos retornados se tinham
queixado de que tinham projectos económicos considerados viáveis,
para os quais não conseguiam financiamento na Banca por não disporem
do chamado “capital próprio”. Não sendo cumprido esse requisito, o
projecto ficava pelo caminho.
Foi então que, discutindo com os meus acessores a melhor utilização que
poderia ser dada a este donativo, o Dr. Paulo Daniel, que foi mais tarde
Subsecretário de Estado da Educação, propôs que com ele se criasse um
fundo para financiar projectos de retornados, destinado exactamente a
substituir o capital próprio de que eles não dispunham.
O apoio monetário a estes projectos poderia ser concedido se a Banca
considerasse o projecto viável e se decidisse financiá-lo. Desta maneira
não se gastaria um centavo em custos administrativos. Este apoio
era considerado um empréstimo que só seria reembolsável depois
de reembolsado o empréstimo concedido pela Banca. Optámos por
esta solução porque, com o reembolso dos empréstimos concedidos
aos projectos que tivessem sido bem-sucedidos, se reforçaria o fundo
de financiamento com a consequente possibilidade de ajudar mais
retornados.
O que é certo é que este projecto vingou. Os bancos comprometeram-
se a apreciar os projectos, a conceder financiamento adequado no
caso de os considerarem viáveis. Portanto, quando a banca desse o
financiamento, era sinal de que acreditava no projecto, e, sendo assim,
o Fundo entrava com a parte que correspondia ao capital próprio do
retornado. Devo dizer que, por esta via, foram efectivamente centenas de
projectos de retornados que tiveram financiamentos – até porque o fundo
foi sucessivamente reforçado pelo governo seguinte – abrindo a porta
a muitos retornados para criarem as suas próprias empresas, o que lhes
permitiu reorganizar a sua vida e rapidamente resolver os seus problemas
financeiros pessoais e até dar um contributo muito importante para o
progresso do próprio país. Numa altura em que a economia estava longe
de ter o dinamismo necessário, os retornados, com a sua reconhecida
experiência, conhecimentos, iniciativa e dinamismo acabaram por ajudar o
próprio país ajudando-se a eles mesmos.
10 -Para terminar, gostaria ainda de informar que também foi feito um
esforço especial para resolver o grave problema da habitação através
da execução de um programa de construção de casas destinadas aos
retornados e que, neste domínio, pudemos ainda contar com a ajuda
generosa do Governo da Noruega , que nos ofereceu um número muito
considerável de casas prè-fabricadas que foram implantadas pelo país
fora, não em Lisboa, em terrenos cedidos pelas diferentes autarquias, e
atribuidas gratuitamente a muitas famílias de retornados.
11 - O balanço final que se pode fazer da descolonização, já o dissemos, é
muito negativo, quer para os nativos das antigas colónias, que sofreram
os horrores de uma guerra fratricida durante vários anos, quer para os
portugueses que lá viviam e que foram forçados a regressar a Portugal em
condições particularmente dramáticas. Penso ter mostrado, todavia, que,
em compensação, Portugal e os portugueses souberam estar à altura das
suas responsabilidades na resolução dos problemas que a descolonização
desgraçadamente provocou. Pode dizer-se que não foram precisos mais
de dois ou três anos para que os retornados estivessem plenamente
integrados no seu país de origem como cidadãos de pleno direito e com os
seus problemas básicos em geral resolvidos
Deve referir-se, porém, em homenagem à verdade, que não existiam
neste caso os verdadeiros problemas das migrações. Apesar de alguns
terem nascido em África, o que é certo é que a sua matriz cultural era
portuguesa. Sem esquecer que as condições e modo de vida em Portugal
eram claramente diversas das que tinham em África, virem para Portugal
era, de algum modo, um verdadeiro regresso a casa, ao encontro, para
muitos deles, de familiares e amigos que cá tinham deixado e de quem
nunca se tinham esquecido.
Amândio de Azevedo
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