Do exercício pleno da transgressão à conquista da igualdade
Se me perguntarem o que tem a ver
esta minha comunicação sobre as oitocentistas portuguesas com tudo aquilo que
se está a passar aqui, neste encontro, eu responderei: tudo. Se aqui estamos,
hoje, em reunião livre, num espaço que escolhemos, e sem constrangimentos ou
proibições de qualquer espécie, tratando de todas as questões que achamos
pertinentes, sem restrições de natureza intelectual, social, política,
religiosa ou outra, às oitocentistas em primeira mão o devemos.
E devemo-lo também a todas as mulheres
e homens que, ao longo dos séculos, tiveram a coragem de questionar e negar
estereótipos, comportamentos e atitudes que limitavam o exercício da igualdade
de género, a que inelutavelmente chegam todas as sociedades evoluídas. Mas essa
é uma longa história sobre que não nos vamos debruçar aqui.
Previamente a existência destes
movimentos intelectuais pela busca da igualdade, tudo era proibido às mulheres,
à excepção da assunção total do papel de mãe e de dona de casa e de mulher
fútil. Por isso, tudo aquilo que hoje estamos aqui a fazer, era dantes objecto
de proibições diversas que se impunham de forma mais ou menos subtil, expressa
ou violenta. Pensar, escrever, discutir sobre qualquer questão masculina, aparecer
e ter visibilidade em actos públicos era, no mínimo, ridicularizado. Aliás,
todo o século XIX oscilou entre períodos de grande repressão das mulheres e
outros em que houve uma certa aceitação, por parte de alguns, da necessidade da
promoção das suas capacidades e responsabilidades sociais e culturais.
De qualquer maneira, a reflexão que
as mulheres iam fazendo sobre a desigualdade exprimiu-se primeiramente na
clandestinidade – em monólogos, em conversas, em diálogos epistolares – só
depois começando, no decurso do século, estas questões a aparecer à luz da
ribalta. As mudanças foram, por isso lentas, cheias de avanços e recuos, muitas
delas radicando nos papéis sociais que algumas mulheres nos finais do século
XVIII foram assumindo, bem diferentes dos que imaginamos ao ouvir falar dos
seus salões literários, dos outeiros, dos saraus.
Mas foi neles que se começou a fazer
a afirmação intelectual de algumas mulheres bem conhecidas e notórias. Tudo,
porém, se processava em circuitos fechados, em casas particulares, quando muito
abertas a um público selecionado. O que não impede que tenham sido essas
intelectuais a dirigir e organizar esses espaços de cultura e que neles se
tenham afirmado perante a sociedade letrada de então. É mesmo interessante
verificar que alguns dos nossos intelectuais do século XIX, como Almeida
Garrett, aí deram a conhecer as suas obras, numa espécie de lançamento ou vernissage avant la lêttre. Nesses
salões se liam e discutiam muitas obras antes de serem passadas definitivamente
a letra redonda, se deram a conhecer composições poéticas, se leram partes de
obras em gestação, se permutaram informações sobre as novas tendências
literárias. Era nos salões e outeiros que fervilharam ideias novas como as que
levaram ao movimento Romântico, entre nós trazido e divulgado pela Marquesa de
Alorna, a Stäel portuguesa, no seu célebre salão do palácio da Fronteira. No
Portugal de então, limitado e marginal designadamente em termos da sua situação
geográfica, Alorna teve um importantíssimo papel, posto em evidência por
Alexandre Herculano que justamente lhe reconheceu os méritos.[2]
Para além desta estrela de primeira
grandeza, muitas outras intelectuais, contribuíram em Portugal, principalmente
em Lisboa, para a notoriedade da intervenção das mulheres no meio intelectual
nacional. De entre elas não posso deixar de mencionar os salões de Francisca de
Paula Possolo, de Maria Kruz, da Viscondessa de Balsemão, da Condessa de Vila
Flor, de Mariana Pimentel Maldonado, de Maria Felicidade de Couto Browne, de
Olga Morais Sarmento, de Maria Amália Vaz de Carvalho. Foi neles que, ao longo
do século XIX, muitas das intelectuais da época se foram mantendo a par das
novas tendências intelectuais e literárias e até da oportunidade de ingressar
em organizações, pouco “femininas”, como a maçonaria, que cativou, por exemplo,
a Marquesa de Alorna, que pertenceu à Loja da Sociedade da Rosa e a Viscondessa
de Juromenha que foi membro da Loja da Virtude (1814). As lojas parecem ter
tido aliás um certo atractivo para algumas intelectuais progressistas: alguns
anos mais tarde, também a jornalista Antónia Pusich se filiou numa.
O contributo das intelectuais do
século XVIII e do XIX para a mudança da mentalidade do tempo, muito bloqueada,
não se limitou ao círculo mais ou menos restrito das suas relações sociais,
pois contribuiu para a divulgação do que de mais interessante, novo ou
revolucionário se produzia nos areópagos internacionais, ao traduzirem autores
de mérito, ou ao concorrerem a prémios literários destinados apenas ao sexo
masculino, como no caso de Teresa de Mello Breyner, condessa do Vimieiro, que
foi premiada com uma medalha de ouro pela Academia Real das Ciências pela sua
tragédia Ósmia. A atribuição do prémio surpreende, sendo legítimo
pensar que isso se deveu ao facto de ter concorrido com um pseudónimo
masculino.
Mencionar os nomes das mulheres que,
de maneira semelhante, contribuíram com as suas obras para essa mudança de
clima intelectual e social, seria obviamente cansativo e um trabalho
interminável. Mas não resisto a referir os da Marquesa de Alorna, os da
Viscondessa de Balsemão que deixam obra publicada e de mérito. E para
simplificar direi que a quase totalidade das intelectuais de então foram
acompanhando a evolução dos seus congéneres masculinos, quando os não
ultrapassaram na contestação do sistema social e cultural vigente.
Particularmente significativo deste
empenhamento na transformação da mentalidade é a colaboração feminina na
imprensa periódica dirigida por homens, onde encontramos a liberal Mariana
Pimental Maldonado que não só publicou poemas, em 1812, no Jornal Poetico mas
também contribuiu com composições de natureza política n’O Portuguez
Constitucional de Pato Moniz, em 1820. E em O Investigador Portuguez
dedica um poema muito especial a Manuel Fernandes Tomás (1771-1822). Não posso
igualmente deixar de mencionar a actividade política de Carlota Joaquina ou da
Marquesa de Chaves não na área da escrita, mas na da intervençao directa.
Durante o século XIX assistimos ainda
à emergência de actividades femininas pouco usuais, com a de livreiras, na
maior parte dos casos, herdadas de cônjuges falecidos. Mas também há quem
dirija gabinetes de leitura como as meninas Férin, que alugavam livros; e quem
seja impressora e tipógrafa. Numa sociedade em mudança, as mulheres iam ocupando
sorrateiramente lugares, outrora reservados a homens.
Mas a história da conquista de outros
territórios não se ficou por aqui. As mulheres não esperaram por um inexistente
passaporte, benesses ou milagres. Foram à luta, não se afligindo com as múltiplas
e bizarras teses de natureza biológica, histórica, religiosa, etc. sobre a
inferioridade ou incapacidade intelectual que as tinham condenado durante
séculos ao mero exercício de actividades domésticas e maternais, sendo no
entanto certo que tais teorias acerca das limitações intelectuais femininas,
inventadas e reinventadas, quando já gastas e sem consistência, se tinham
mostrado eficazes na prevenção das aspirações ancestrais das mulheres ao
conhecimento e à afirmação intelectual. Sabido é que a sua
intervenção e luta não eliminaram a indiferença da maioria e a sua redução à
quase total invisibilidade social e cultural bem como as críticas jocosas ou as
insinuações, inconvenientes e maldosas de homens que, em muitos casos, tudo
fizeram para lhes tirar a voz.
Não esquecer, com efeito, que ler,
escrever, pensar, criticar, tratar de matérias que pertenciam aos homens --
afinal todas à excepção da arte de escrever poesia -- era algo inaceitável e
condenável. As coutadas estavam tradicionalmente bem definidas. Mas nada disto
as assustou; com nada se espantaram e se tal aconteceu, representaram um papel
ao invés do habitual, tudo invertendo e dando publicidade com transparência e
clareza a todas as suas ideias progressistas. Não se intimidaram com nada e assumiram
os papéis de jornalistas, escritoras, directoras, redactoras, colaboradoras de
revistas, criticando livros, personalidades célebres como Castilho, assuntos
políticos e religiosos. Pior, muito pior: falaram de todas as áreas proibidas,
de tudo o que lhes apeteceu, sem peias, sem temores. Criticaram os projectos
políticos e religiosos, o sistema de ensino masculino e feminino, a educação
ministrada em casa e nos colégios, a docência, os programas, os currículos, as
cadeiras, e muito mais, opinando e apresentando novas ideias e soluções,
propondo renovações, mudanças. Apresentaram projectos novos para a mudança do
meio cultural em que mulheres e homens portugueses, mesmo nas cidades, viviam,
designadamente no que dizia respeito à formação das jovens gerações, não
esquecendo das demais.
O facto de isto tudo ser visível e,
portanto, público, e não para um número restrito de pessoas no sossego do lar
foi provocando, embora lentamente, alterações na cultura dominante de então.
Assistimos assim, pela primeira vez, na sociedade portuguesa, a uma grande
reviravolta a nível da exposição pública de ideias pouco comuns. A revista, o
jornal eram o seu campo de batalha, e as suas penas, as armas que há tanto
tempo ambicionavam usar com regularidade. O Portugal conservador, de então,
impermeável a novas ideias, a novos avanços, assistiu neste «espaço» tão
privilegiado à discussão de todas as ideias sobre diversas «emancipações», já
florescentes no estrangeiro.
Não tenhamos porém ilusões: apesar da
importância do seu esforço surpreendente, o certo é que os seus textos, as suas
ideias, as suas reivindicações, as suas lutas pela igualdade e por uma melhoria
da condição feminina não atingiam senão um limitado número de pessoas, ficando
posteriormente no silêncio, na tumba dos jornais a que poucos prestaram atenção
ou deram seguimento. As revoluções são sempre assim: a estruturação dos
fundamentos do edifício cultural leva tempo a concretizar-se. Mas as novas
ideias vão-se sedimentando no tecido social e sobre elas é que se vai
construindo o sólido edifício do futuro.
Referidas que foram as condições
gerais -- políticas e sociais -- que delimitaram a intervenção feminina na época
de oitocentos, parece-me conveniente passar a alguns exemplos mais notórios
dessa intervenção, deixando, também agora, muitas sem voz, nesse espaço de
sombras do passado em que muitas avultam, deixando de lado muitos periódicos
femininos e suas colaboradoras, e concentrando-me em algumas figuras mais
notórias de diversos períodos de Oitocentos, por serem elas que deram a tónica
das mudanças ocorridas no século. Retenho-as por as considerar paragdimáticas.
E por isso deixarei no silêncio o contributo valioso de muitas outras,
pressionada pelo tempo reservado a esta comunicação.
Começo com Catarina de Andrada, em
1836, por ter sido a primeira mulher a acumular na imprensa periódica cargos
dantes masculinos; como o de escritora, colaboradora, redactora e directora de
um periódico francês, L’Abeille (1836; 1840-1843). Pelo que já foi dito
no início desta comunicação, percebe-se a raridade e originalidade desta
situação. No entanto, ao contrário do que aconteceria mais tarde, os seus
colegas fizeram jus ao seu talento e publicitaram isso na imprensa. A esta
atitude, também ela inusitada e moralmente perigosa, reage ela de acordo com os
padrões da época, defendendo-se, como convinha a uma senhora casada. A sua
resposta, a que ela dá publicidade em vários jornais, é muito saborosa e
reveladora. Diz assim: «Senhor Redactor: Acabo de ver, no seu estimável jornal
de hoje, um artigo que diz respeito ao jornal francês, A Abelha, muito
lisongeiro, por certo; mas a menção que aí faz três vezes do meu nome
penaliza-me infinito; porque não pode agradar a uma senhora vir a público
ocupar-se dela, e menos na ausência do marido. Ainda que verdadeiramente grata
pelo interesse que V. mostra pela Abelha, peço-lhe se sirva de inserir sem
falta, na sua folha de amanhã (20 de Outubro de 1841) esta minha carta, para
fazer conhecer o sentimento que tenho da publicidade que V. quis dar ao meu
nome, sem que eu interviesse nisso de modo algum»[3]. A
divisão de espaços privado/público remetia as mulheres para a casa e
actividades afins. Por isso, a afirmação de um brilhante exercício intelectual
poderia ter consequências muito negativas para ela. A cultura e a mentalidade
da época assim o determinavam.
Este exemplo não é único neste início
de século. Outras senhoras, seguindo a moda francesa, inglesa, americana, em
curso há vários anos, não se coibiram de colaborar em periódicos anteriores ao
de Catarina de Andrada. Na sua publicação contou com Pauline de Flaugergues, de
Natalie Lajolais, de Sophie de Pannier, de Josefina, Duquesa de Abrantes, entre
outros.
Catarina inclui no seu periódico
temas com títulos como «De la condition sociale des femmes au dix-neuvième
siècle», «Destinée des femmes», «Étude de femme», «De la condition et de
l’éducation de la femme» os quais revelam, só por si, a actualidade das
temáticas sobre a condição feminina. Seria longo especificar os principais
conteúdos desenvolvidos na Abeille,
mas não deixarei de referir os estudos e análises feitos sobre o casamento e a
educação, o destino das mulheres instruídas e o sucesso profissional destas.
A actividade literária de Catarina de
Andrada não se ficou pelo que fez na sua publicação, pois colaborou, mais
tarde, na revista de Antónia Pusich. Fez além disso parte, com outras colegas,
de um grupo de trabalho de Castilho ligado à instrução, uma das temáticas
liberais mais queridas da altura. O arrojo de Catarina de Andrada para os
quadros mentais do seu tempo pode aliás ver-se por ter usado a pena para
sobreviver, designadamente através de obras de ficção, o que mesmo para o sexo
masculino, era raro então.
Catarina foi ainda docente e
directora de um conhecido colégio feminino, sendo nisso muito apreciada e
louvada. A esses encómios públicos não consta ter reagido, o que parece mostrar
que as suas actividades eram socialmente aceites. Dentre estes louvores
públicos registo o do Silvestre Pinheiro Ferreira[4] na Revista
Universal Lisbonense pelo seu trabalho, pela sua cultura, designadamente
musical. E receberia muitos outros louvores mesmo no final do século XIX, entre
os quais o do não menos conhecido D. António da Costa.
Uma outra figura paradigmática deste
século, é a sua colega e amiga Antónia Pusich, considerada a primeira
jornalista portuguesa. As suas revistas situam-se entre 1849 e 1859. Mas
colaborou noutros periódicos antes e depois destas datas. Tal como Catarina foi
muito elogiada e admirada publicamente por vários intelectuais. Era
proprietária das suas publicações periódicas, A Assembléa Litteraria, A
Beneficencia, A Cruzada, o que lhe deu total liberdade de expressão.
A sua actividade literária foi aliás enorme, pois escreveu seis dramas, quatro
comédias, um poemeto, várias produções em verso e prosa impressas avulso e em
jornais; uma biografia do pai, um texto sobre as Cortes intitulado Galeria
das Senhoras na Câmara dos Senhores Deputados,[5] entre
outros. Nesta última obra para além da defesa das pensionistas órfãs e viúvas,
assumida até às últimas consequências, teve também de lutar pelo seu bom nome
bem como das pessoas que a acompanhavam. Para cumprir o seu objectivo e de
tantas protege-se com a lei através de um Requerimento que entrega e em que usa
os seus abundantes conhecimentos jurídicos e a sua estadia diária na
Assembleia, numa constante pressão que deve ter desagradado a muitos. E para a
defesa do seu bom nome denuncia os maus tratos recebidos. Nesta publicação não
dá uma mera resposta à rejeição da participação feminina na vida política, mas
tenta evitar a ridicularização futura dos seus actos e actividades, com o
objectivo de a retirar a ela e às colegas que a acompanhavam daquelas lides
contestárias, remetendo-as de vez para as esferas tradicionalmente femininas.
Antónia Pusich não se intimida. De nada se coibe. Em vez de se remeter ao
silêncio, publica este texto de uma ousada irreverência e coragem; de uma fina,
inteligente e perspicaz análise das posições e estratégias misógenas da altura,
identificando e denunciando os deputados que agiram indignamente contra elas.
Desnuda o quotidiano da Assembleia mostrando inimagináveis comportamentos e
actos e os podres dos mais importantes governantes da Nação. O país ficou a
saber tudo isto e que ela era uma mulher perigosa que não se amedrontava com
nada.
Na luta entre as forças do progresso
e da tradição, entre a igualdade de género e a manutenção do status quo, ela toma uma posição bem
clara. Vale a pena ler o texto de Antónia Pusich na íntegra. Não se se
encontrará melhor astrolábio para a navegação entre as procelas e ventos
culturais da época.
Nos seus periódicos transgrediu diariamente.
Actuou como um homem ao tratar sem reservas de todas as questões, colocando-se
ao mesmo nível dos seu colegas jornalistas. Era extravagante para a época uma
senhora dedicar-se a escrever sobre o progresso da população e do país, sobre a
ignorância, sobre a situação dos docentes de ambos os sexos, sobre a melhoria
dos cursos do magistério masculino e pela criação do magistério feminino, sobre
as condições de vida dos professores e professoras que descreve amiúde, sobre
os seus magros salários; sobre os benefícios da instrução para ambos os sexos
através de métodos de ensino, apoiando o célebre Método de Leitura de Castilho.
Mas, se propaga nas suas revistas o Método não deixa de criticar o poeta quando
dele discordava. E não deixou de analisar as instituições escolares mostrando
destemidamente os aspectos positivos e negativos denunciando publicamente nas
suas revistas a corrupção existente. Não se poupa nem a elogios nem a críticas.
O seu exemplo e aquilo que defendeu para as portuguesas demonstra como pugnava
pela igualdade de género. Nisto não estava só. Muitas outras deram igualmente o
seu testemunho de forma muito variada, abarcando múltiplas áreas impossíveis de
focar aqui.
Como o tempo escasseia, tenho de
passar a Francisca Wood, que uns anos mais tarde, em 1868/69, teve os mesmos
cargos de Antónia Pusich na imprensa periódica feminina, retomando de forma
ainda mais destemida e actualizada todas as questões tratadas por Pusich,
designadamente as do género que aborda de forma muito corajosa, pondo-nos em
contacto com teorias concretas e diferentes. Pretendia ela e as colaboradoras
das suas revistas que as portuguesas enveredassem pelo caminho da liberdade e
deixassem de vez preconceitos estúpidos que as inferiorizavam e impediam de
progredir intelectualmente. Faz o diagnóstico da sociedade portuguesa e chega a
resultados surpreendentes e alarmantes. Valoriza a inteligência feminina e
defende a ilustração de todas as classes sem distinção de género contra uma
situação de menoridade e de injustiça a que estavam sujeitas. Provoca a elite
intelectual feminina a colaborar com ela, ou seja, a partilhar ideias e actos
progressistas. Mas nem todas as intelectuais do tempo a acompanham. Maria
Amália Vaz de Carvalho e outras recusam colaborar nas suas revistas porque as
suas propostas eram «masculinas», ao que ela responde com as suas colaboradoras
falando dos impedimentos na teoria e na prática para o progresso intelectual
feminino. Wood critica a educação doméstica feminina, a futilidade, o ócio e
reflecte sobre a instrução e sobre as matérias por elas aprendidas, sugerindo
outras. E se se ocupa do ensino, não esquece as gerações mais velhas a respeito
das quais apresenta algumas propostas, defendendo sempre, em polémica com
alguns intelectuais, a igualdade de género.
Com Guiomar Torrezão, colaboradora
dos periódicos de Francisca Wood e de muitos outros, chegamos a 1870. Torrezão
foi das escritoras que mais interveio culturalmente no período de 1870 a 1890,
durante o qual se regressou a um conservadorismo extremo, dos mais difíceis da
história das mulheres e da sua luta, sob a égide da tão celebrada Geração de
70, de Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão, de Oliveira Martins, de Antero de
Quental, a qual afinal foi repressora dos ideais progeressistas femininos. No
que aliás foi acompanhada por Maria Amália Vaz de Carvalho uma das vozes mais
consistentes do conservadorismo.
Guiomar Torrezão, ao contrário, fez
jus aos valores do progresso defendidos pelas suas antecessoras publicando o Almanach
das Senhoras, de que foi proprietária, directora e editora. Fá-lo chegar a
todo o país, à Madeira, Açores, Cabo Verde, Angola, ao Brasil e a Espanha. A
propósito desta publicação, não resisto a referir o que Oliveira Martins
escreve certamente em clara sintonia com o espírito da época e da sua geração a
respeito do que devem ser as actividades das mulheres do seu tempo: «de um modo
sumário [...] o seu destino comum – salvo as exepções privilegiadas, como V.
Ex.ª -- é cozinharem bem a panela a seus maridos, saberem lavar filhos e
remendar-lhes os calções.»[6]
Esta rejeição, por parte dos escritores
mais conhecidos, das iniciativas e posições das intelectuais do tempo mostra
quão corajosas foram todas aquelas que ousaram ir contra esta hegemonia,
apoiada numa escassa minoria de gente progressista. Para a maioria dos
escritores, a agulha, a panela e todos os objectos domésticos seriam os únicos
que poderiam ser manuseados com propriedade pelas mulheres. A pena, a política,
a reforma da sociedade eram propriedade masculina. Esta demarcação notória e
forte dos campos interrompeu, aliás, o surto da imprensa feminina durante algum
tempo.
Mas isso não atemorizou Guiomar. Com
Ramalho Ortigão teve uma célebre polémica que a levaria a escrever um manifesto
de igualdade intelectual. Como Pusich num discurso mordaz e displicente ridiculariza
o seu adversário e destrói-o com as mesmas armas, as literárias. Afirma-se
cultural e sexualmente e retoma argumentos já utilizados por outras suas
colegas. E Camilo vem em sua defesa bem como das literatas do seu tempo.
As actividades de Torrezão não deixam
de ser notórias tendo dirigido periódicos como O Mundo Elegante, A
Estação de Paris, A Cronica, onde encontramos muitos artigos sobre
as mulheres de natureza conservadora ou progressista, sobre a instrução e a
educação, ou ainda correspondência a com Alexandre Herculano sobre a
emancipação.
Ficou quase tudo por dizer nesta
comunicação, que não passou de uma breve referência a milhares de acções,
reflexões, lutas, progressos e retrocessos que teceram a história da emergência
das mulheres para a esfera pública durante o século XIX, em que se fundaram e
alicerçaram as conquistas que o século XX consagrou. Por isso se pode dizer que
foi a luta e as ideias das intelectuais de oitocentos que prepararam a nova
vaga de contestação desenvolvida e liderada pelas Republicanas. Foram estas
pré-feministas que prepararam o terreno, que abriram quase todos os caminhos da
emancipação num invulgar exercício de equilíbrio em frágil corda bamba. Foram
elas que, pela reivindicação insistente nos temas da igualdade, de uma educação
e instrução diferentes, de uma consciencialização política activa que deram
visibilidade aos grandes temas que serão posteriormente retomados, com novos
argumentos e enquadramentos, designadamente sociais e políticos, para que a
igualdade de género fizesse caminho na cultura e na concepção do poder e que
tudo o que foi por elas escrito servisse de fermento para o que aconteceu ao
nivel legislativo e prático já no último quartel do século passado.
Foram as oitocentistas que passaram o
testemunho às Republicanas. As ideias e posicionamentos destas não apareceram
inesperadamente em 1910 ou nos anos subsequentes. Porque mais conhecidas, delas
fazemos alarde. Vangloriamo-nos da maturidade do seu pensamento e acção mas
raramente nos lembramos que o trabalho de sapa dos alicerces culturais foi
feito pelas pré-feministas de Oitocentos, as quais, com muito suor e lágrimas
venceram etapas instransponíveis no Portugal conservador e preconceituoso de
então. É graças a elas que também estamos aqui hoje. Cada vez que recordamos os
seus feitos estamos a agradecer-lhes a determinação de cada um dos seus actos.
A História é isto mesmo: uma ligação entre séculos, entre tempos, entre
mentalidades que se vão mudando num determinado sentido, nem sempre linear, mas
tomando em conta os avanços precedentes. Honra seja feita às percursoras. Honra
seja feita às mulheres que aqui estão nesta sala e a todos os seus empreendimentos
de diversa ordem por esse mundo fora.
[1]
Universidade Católica Portuguesa
[2]
Alexandre Herculano, «D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna», O Panorama, 2.ª série, vol.3,
156(Dez)1844, p. 404.
[3]
Catarina de Andrada, «Correspondência extraída de O Correio de Lisboa», O
Correio das Damas, 4 (22)1841, p. 175.
[4]
Cf. Silvestre Pinheiro-Ferreira, «Educação de meninas», Revista Universal Lisbonense, 1.ª série, 11(Dez.) 1842, p. 137.
[5]
Ana Maria Costa Lopes, «A intervenção política e social de Antónia Pusich», in Imagens da mulher na imprensa feminina de
Oitocentos. Percursos de modernidade, cap. 7, Lisboa, Quimera, 2005, p.
260-268; Antónia Gertrudes Pusich, Galeria
das senhoras na Câmara dos senhores deputados ou as minhas observações, Lisboa,
Tip. De Borges, 1848. Foi editado na íntegra por Ana Maria Costa Lopes,
«Intervenção de uma prestigiada oitocentista na Câmara dos Deputados», Povos e Culturas, 8, CEPCEP,
Universidade Católica, 2003, p. 207-228.
[6]
Oliveira Martins, «Ex.ma Senhora e minha ilustre colega», Almanach das Senhoras para 1885, p. 216.
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