segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Ana Costa Lopes comunicação


 

Do exercício pleno da transgressão à conquista da igualdade

                                                                                                    Ana Costa Lopes[1]

 

Se me perguntarem o que tem a ver esta minha comunicação sobre as oitocentistas portuguesas com tudo aquilo que se está a passar aqui, neste encontro, eu responderei: tudo. Se aqui estamos, hoje, em reunião livre, num espaço que escolhemos, e sem constrangimentos ou proibições de qualquer espécie, tratando de todas as questões que achamos pertinentes, sem restrições de natureza intelectual, social, política, religiosa ou outra, às oitocentistas em primeira mão o devemos.

E devemo-lo também a todas as mulheres e homens que, ao longo dos séculos, tiveram a coragem de questionar e negar estereótipos, compor­tamentos e atitudes que limitavam o exercício da igualdade de género, a que inelutavelmente chegam todas as sociedades evoluídas. Mas essa é uma longa história sobre que não nos vamos debruçar aqui.

Previamente a existência destes movimentos intelectuais pela busca da igualdade, tudo era proibido às mulheres, à excepção da assunção total do papel de mãe e de dona de casa e de mulher fútil. Por isso, tudo aquilo que hoje estamos aqui a fazer, era dantes objecto de proibições diversas que se impunham de forma mais ou menos subtil, expressa ou violenta. Pensar, escrever, discutir sobre qualquer questão masculina, aparecer e ter visibilidade em actos públicos era, no mínimo, ridicularizado. Aliás, todo o século XIX oscilou entre períodos de grande repressão das mulheres e outros em que houve uma certa aceitação, por parte de alguns, da necessidade da promoção das suas capacidades e responsabilidades sociais e culturais.

De qualquer maneira, a reflexão que as mulheres iam fazendo sobre a desigualdade exprimiu-se primeiramente na clandestinidade – em monólogos, em conversas, em diálogos epistolares – só depois começando, no decurso do século, estas questões a aparecer à luz da ribalta. As mudanças foram, por isso lentas, cheias de avanços e recuos, muitas delas radicando nos papéis sociais que algumas mulheres nos finais do século XVIII foram assumindo, bem diferentes dos que imaginamos ao ouvir falar dos seus salões literários, dos outeiros, dos saraus.

Mas foi neles que se começou a fazer a afirmação intelectual de algumas mulheres bem conhecidas e notórias. Tudo, porém, se processava em circuitos fechados, em casas particulares, quando muito abertas a um público selecionado. O que não impede que tenham sido essas intelectuais a dirigir e organizar esses espaços de cultura e que neles se tenham afirmado perante a sociedade letrada de então. É mesmo interessante verificar que alguns dos nossos intelectuais do século XIX, como Almeida Garrett, aí deram a conhecer as suas obras, numa espécie de lançamento ou vernissage avant la lêttre. Nesses salões se liam e discutiam muitas obras antes de serem passadas definitivamente a letra redonda, se deram a conhecer composições poéticas, se leram partes de obras em gestação, se permutaram informações sobre as novas tendências literárias. Era nos salões e outeiros que fervilharam ideias novas como as que levaram ao movimento Romântico, entre nós trazido e divulgado pela Marquesa de Alorna, a Stäel portuguesa, no seu célebre salão do palácio da Fronteira. No Portugal de então, limitado e marginal designadamente em termos da sua situação geográfica, Alorna teve um importantíssimo papel, posto em evidência por Alexandre Herculano que justamente lhe reconheceu os méritos.[2]

Para além desta estrela de primeira grandeza, muitas outras intelectuais, contribuíram em Portugal, principalmente em Lisboa, para a notoriedade da intervenção das mulheres no meio intelectual nacional. De entre elas não posso deixar de mencionar os salões de Francisca de Paula Possolo, de Maria Kruz, da Viscondessa de Balsemão, da Condessa de Vila Flor, de Mariana Pimentel Maldonado, de Maria Felicidade de Couto Browne, de Olga Morais Sarmento, de Maria Amália Vaz de Carvalho. Foi neles que, ao longo do século XIX, muitas das intelectuais da época se foram mantendo a par das novas tendências intelectuais e literárias e até da oportunidade de ingressar em organizações, pouco “femininas”, como a maçonaria, que cativou, por exemplo, a Marquesa de Alorna, que pertenceu à Loja da Sociedade da Rosa e a Viscondessa de Juromenha que foi membro da Loja da Virtude (1814). As lojas parecem ter tido aliás um certo atractivo para algumas intelectuais progressistas: alguns anos mais tarde, também a jornalista Antónia Pusich se filiou numa.

O contributo das intelectuais do século XVIII e do XIX para a mudança da mentalidade do tempo, muito bloqueada, não se limitou ao círculo mais ou menos restrito das suas relações sociais, pois contribuiu para a divulgação do que de mais interessante, novo ou revolucionário se produzia nos areópagos internacionais, ao traduzirem autores de mérito, ou ao concorrerem a prémios literários destinados apenas ao sexo masculino, como no caso de Teresa de Mello Breyner, condessa do Vimieiro, que foi premiada com uma medalha de ouro pela Academia Real das Ciências pela sua tragédia Ósmia. A atribuição do prémio surpreende, sendo legítimo pensar que isso se deveu ao facto de ter concorrido com um pseudónimo masculino.

Mencionar os nomes das mulheres que, de maneira semelhante, contribuíram com as suas obras para essa mudança de clima intelectual e social, seria obviamente cansativo e um trabalho interminável. Mas não resisto a referir os da Marquesa de Alorna, os da Viscondessa de Balsemão que deixam obra publicada e de mérito. E para simplificar direi que a quase totalidade das intelectuais de então foram acompanhando a evolução dos seus congéneres masculinos, quando os não ultrapassaram na contestação do sistema social e cultural vigente.

Particularmente significativo deste empenhamento na transformação da mentalidade é a colaboração feminina na imprensa periódica dirigida por homens, onde encontramos a liberal Mariana Pimental Maldonado que não só publicou poemas, em 1812, no Jornal Poetico mas também contribuiu com composições de natureza política n’O Portuguez Constitucional de Pato Moniz, em 1820. E em O Investigador Portuguez dedica um poema muito especial a Manuel Fernandes Tomás (1771-1822). Não posso igualmente deixar de mencionar a actividade política de Carlota Joaquina ou da Marquesa de Chaves não na área da escrita, mas na da intervençao directa.

Durante o século XIX assistimos ainda à emergência de actividades femininas pouco usuais, com a de livreiras, na maior parte dos casos, herdadas de cônjuges falecidos. Mas também há quem dirija gabinetes de leitura como as meninas Férin, que alugavam livros; e quem seja impressora e tipógrafa. Numa sociedade em mudança, as mulheres iam ocupando sorrateiramente lugares, outrora reservados a homens.

Mas a história da conquista de outros territórios não se ficou por aqui. As mulheres não esperaram por um inexistente passaporte, benesses ou milagres. Foram à luta, não se afligindo com as múltiplas e bizarras teses de natureza biológica, histórica, religiosa, etc. sobre a inferioridade ou incapacidade intelectual que as tinham condenado durante séculos ao mero exercício de actividades domésticas e maternais, sendo no entanto certo que tais teorias acerca das limitações intelectuais femininas, inventadas e reinventadas, quando já gastas e sem consistência, se tinham mostrado eficazes na prevenção das aspirações ancestrais das mulheres ao conhecimento e à afirmação intelectual. Sabido é que a sua intervenção e luta não eliminaram a indiferença da maioria e a sua redução à quase total invisibilidade social e cultural bem como as críticas jocosas ou as insinuações, inconvenientes e maldosas de homens que, em muitos casos, tudo fizeram para lhes tirar a voz.

Não esquecer, com efeito, que ler, escrever, pensar, criticar, tratar de matérias que pertenciam aos homens -- afinal todas à excepção da arte de escrever poesia -- era algo inaceitável e condenável. As coutadas estavam tradicionalmente bem definidas. Mas nada disto as assustou; com nada se espantaram e se tal aconteceu, representaram um papel ao invés do habitual, tudo invertendo e dando publicidade com transparência e clareza a todas as suas ideias progressistas. Não se intimidaram com nada e assumiram os papéis de jornalistas, escritoras, directoras, redactoras, colaboradoras de revistas, criticando livros, personalidades célebres como Castilho, assuntos políticos e religiosos. Pior, muito pior: falaram de todas as áreas proibidas, de tudo o que lhes apeteceu, sem peias, sem temores. Criticaram os projectos políticos e religiosos, o sistema de ensino masculino e feminino, a educação ministrada em casa e nos colégios, a docência, os programas, os currículos, as cadeiras, e muito mais, opinando e apresentando novas ideias e soluções, propondo renovações, mudanças. Apresentaram projectos novos para a mudança do meio cultural em que mulheres e homens portugueses, mesmo nas cidades, viviam, designadamente no que dizia respeito à formação das jovens gerações, não esquecendo das demais.

O facto de isto tudo ser visível e, portanto, público, e não para um número restrito de pessoas no sossego do lar foi provocando, embora lentamente, alterações na cultura dominante de então. Assistimos assim, pela primeira vez, na sociedade portuguesa, a uma grande reviravolta a nível da exposição pública de ideias pouco comuns. A revista, o jornal eram o seu campo de batalha, e as suas penas, as armas que há tanto tempo ambicionavam usar com regularidade. O Portugal conservador, de então, impermeável a novas ideias, a novos avanços, assistiu neste «espaço» tão privilegiado à discussão de todas as ideias sobre diversas «emancipações», já florescentes no estrangeiro.

Não tenhamos porém ilusões: apesar da importância do seu esforço surpreendente, o certo é que os seus textos, as suas ideias, as suas reivindicações, as suas lutas pela igualdade e por uma melhoria da condição feminina não atingiam senão um limitado número de pessoas, ficando posteriormente no silêncio, na tumba dos jornais a que poucos prestaram atenção ou deram seguimento. As revoluções são sempre assim: a estruturação dos fundamentos do edifício cultural leva tempo a concretizar-se. Mas as novas ideias vão-se sedimentando no tecido social e sobre elas é que se vai construindo o sólido edifício do futuro.

Referidas que foram as condições gerais -- políticas e sociais -- que delimitaram a intervenção feminina na época de oitocentos, parece-me conveniente passar a alguns exemplos mais notórios dessa intervenção, deixando, também agora, muitas sem voz, nesse espaço de sombras do passado em que muitas avultam, deixando de lado muitos periódicos femininos e suas colaboradoras, e concentrando-me em algumas figuras mais notórias de diversos períodos de Oitocentos, por serem elas que deram a tónica das mudanças ocorridas no século. Retenho-as por as considerar paragdimáticas. E por isso deixarei no silêncio o contributo valioso de muitas outras, pressionada pelo tempo reservado a esta comunicação.

Começo com Catarina de Andrada, em 1836, por ter sido a primeira mulher a acumular na imprensa periódica cargos dantes masculinos; como o de escritora, colaboradora, redactora e directora de um periódico francês, L’Abeille (1836; 1840-1843). Pelo que já foi dito no início desta comunicação, percebe-se a raridade e originalidade desta situação. No entanto, ao contrário do que aconteceria mais tarde, os seus colegas fizeram jus ao seu talento e publicitaram isso na imprensa. A esta atitude, também ela inusitada e moralmente perigosa, reage ela de acordo com os padrões da época, defendendo-se, como convinha a uma senhora casada. A sua resposta, a que ela dá publicidade em vários jornais, é muito saborosa e reveladora. Diz assim: «Senhor Redactor: Acabo de ver, no seu estimável jornal de hoje, um artigo que diz respeito ao jornal francês, A Abelha, muito lisongeiro, por certo; mas a menção que aí faz três vezes do meu nome penaliza-me infinito; porque não pode agradar a uma senhora vir a público ocupar-se dela, e menos na ausência do marido. Ainda que verdadeiramente grata pelo interesse que V. mostra pela Abelha, peço-lhe se sirva de inserir sem falta, na sua folha de amanhã (20 de Outubro de 1841) esta minha carta, para fazer conhecer o sentimento que tenho da publicidade que V. quis dar ao meu nome, sem que eu interviesse nisso de modo algum»[3]. A divisão de espaços privado/público remetia as mulheres para a casa e actividades afins. Por isso, a afirmação de um brilhante exercício intelectual poderia ter consequências muito negativas para ela. A cultura e a mentalidade da época assim o determinavam.

Este exemplo não é único neste início de século. Outras senhoras, seguindo a moda francesa, inglesa, americana, em curso há vários anos, não se coibiram de colaborar em periódicos anteriores ao de Catarina de Andrada. Na sua publicação contou com Pauline de Flaugergues, de Natalie Lajolais, de Sophie de Pannier, de Josefina, Duquesa de Abrantes, entre outros.

Catarina inclui no seu periódico temas com títulos como «De la condition sociale des femmes au dix-neuvième siècle», «Destinée des femmes», «Étude de femme», «De la condition et de l’éducation de la femme» os quais revelam, só por si, a actualidade das temáticas sobre a condição feminina. Seria longo especificar os principais conteúdos desenvolvidos na Abeille, mas não deixarei de referir os estudos e análises feitos sobre o casamento e a educação, o destino das mulheres instruídas e o sucesso profissional destas.

A actividade literária de Catarina de Andrada não se ficou pelo que fez na sua publicação, pois colaborou, mais tarde, na revista de Antónia Pusich. Fez além disso parte, com outras colegas, de um grupo de trabalho de Castilho ligado à instrução, uma das temáticas liberais mais queridas da altura. O arrojo de Catarina de Andrada para os quadros mentais do seu tempo pode aliás ver-se por ter usado a pena para sobreviver, designadamente através de obras de ficção, o que mesmo para o sexo masculino, era raro então.

Catarina foi ainda docente e directora de um conhecido colégio feminino, sendo nisso muito apreciada e louvada. A esses encómios públicos não consta ter reagido, o que parece mostrar que as suas actividades eram socialmente aceites. Dentre estes louvores públicos registo o do Silvestre Pinheiro Ferreira[4] na Revista Universal Lisbonense pelo seu trabalho, pela sua cultura, designadamente musical. E receberia muitos outros louvores mesmo no final do século XIX, entre os quais o do não menos conhecido D. António da Costa.

Uma outra figura paradigmática deste século, é a sua colega e amiga Antónia Pusich, considerada a primeira jornalista portuguesa. As suas revistas situam-se entre 1849 e 1859. Mas colaborou noutros periódicos antes e depois destas datas. Tal como Catarina foi muito elogiada e admirada publicamente por vários intelectuais. Era proprietária das suas publicações periódicas, A Assembléa Litteraria, A Beneficencia, A Cruzada, o que lhe deu total liberdade de expressão. A sua actividade literária foi aliás enorme, pois escreveu seis dramas, quatro comédias, um poemeto, várias produções em verso e prosa impressas avulso e em jornais; uma biografia do pai, um texto sobre as Cortes intitulado Galeria das Senhoras na Câmara dos Senhores Deputados,[5] entre outros. Nesta última obra para além da defesa das pensionistas órfãs e viúvas, assumida até às últimas consequências, teve também de lutar pelo seu bom nome bem como das pessoas que a acompanhavam. Para cumprir o seu objectivo e de tantas protege-se com a lei através de um Requerimento que entrega e em que usa os seus abundantes conhecimentos jurídicos e a sua estadia diária na Assembleia, numa constante pressão que deve ter desagradado a muitos. E para a defesa do seu bom nome denuncia os maus tratos recebidos. Nesta publicação não dá uma mera resposta à rejeição da participação feminina na vida política, mas tenta evitar a ridicularização futura dos seus actos e actividades, com o objectivo de a retirar a ela e às colegas que a acompanhavam daquelas lides contestárias, remetendo-as de vez para as esferas tradicionalmente femininas. Antónia Pusich não se intimida. De nada se coibe. Em vez de se remeter ao silêncio, publica este texto de uma ousada irreverência e coragem; de uma fina, inteligente e perspicaz análise das posições e estratégias misógenas da altura, identificando e denunciando os deputados que agiram indignamente contra elas. Desnuda o quotidiano da Assembleia mostrando inimagináveis compor­tamentos e actos e os podres dos mais importantes governantes da Nação. O país ficou a saber tudo isto e que ela era uma mulher perigosa que não se amedrontava com nada.

Na luta entre as forças do progresso e da tradição, entre a igualdade de género e a manutenção do status quo, ela toma uma posição bem clara. Vale a pena ler o texto de Antónia Pusich na íntegra. Não se se encontrará melhor astrolábio para a navegação entre as procelas e ventos culturais da época.

 Nos seus periódicos transgrediu diariamente. Actuou como um homem ao tratar sem reservas de todas as questões, colocando-se ao mesmo nível dos seu colegas jornalistas. Era extravagante para a época uma senhora dedicar-se a escrever sobre o progresso da população e do país, sobre a ignorância, sobre a situação dos docentes de ambos os sexos, sobre a melhoria dos cursos do magistério masculino e pela criação do magistério feminino, sobre as condições de vida dos professores e professoras que descreve amiúde, sobre os seus magros salários; sobre os benefícios da instrução para ambos os sexos através de métodos de ensino, apoiando o célebre Método de Leitura de Castilho. Mas, se propaga nas suas revistas o Método não deixa de criticar o poeta quando dele discordava. E não deixou de analisar as instituições escolares mostrando destemidamente os aspectos positivos e negativos denunciando publicamente nas suas revistas a corrupção existente. Não se poupa nem a elogios nem a críticas. O seu exemplo e aquilo que defendeu para as portuguesas demonstra como pugnava pela igualdade de género. Nisto não estava só. Muitas outras deram igualmente o seu testemunho de forma muito variada, abarcando múltiplas áreas impossíveis de focar aqui.

Como o tempo escasseia, tenho de passar a Francisca Wood, que uns anos mais tarde, em 1868/69, teve os mesmos cargos de Antónia Pusich na imprensa periódica feminina, retomando de forma ainda mais destemida e actualizada todas as questões tratadas por Pusich, designadamente as do género que aborda de forma muito corajosa, pondo-nos em contacto com teorias concretas e diferentes. Pretendia ela e as colaboradoras das suas revistas que as portuguesas enveredassem pelo caminho da liberdade e deixassem de vez preconceitos estúpidos que as inferiorizavam e impediam de progredir intelectualmente. Faz o diagnóstico da sociedade portuguesa e chega a resultados surpreendentes e alarmantes. Valoriza a inteligência feminina e defende a ilustração de todas as classes sem distinção de género contra uma situação de menoridade e de injustiça a que estavam sujeitas. Provoca a elite intelectual feminina a colaborar com ela, ou seja, a partilhar ideias e actos progressistas. Mas nem todas as intelectuais do tempo a acompanham. Maria Amália Vaz de Carvalho e outras recusam colaborar nas suas revistas porque as suas propostas eram «masculinas», ao que ela responde com as suas colaboradoras falando dos impedimentos na teoria e na prática para o progresso intelectual feminino. Wood critica a educação doméstica feminina, a futilidade, o ócio e reflecte sobre a instrução e sobre as matérias por elas aprendidas, sugerindo outras. E se se ocupa do ensino, não esquece as gerações mais velhas a respeito das quais apresenta algumas propostas, defendendo sempre, em polémica com alguns intelectuais, a igualdade de género.

Com Guiomar Torrezão, colaboradora dos periódicos de Francisca Wood e de muitos outros, chegamos a 1870. Torrezão foi das escritoras que mais interveio culturalmente no período de 1870 a 1890, durante o qual se regressou a um conservadorismo extremo, dos mais difíceis da história das mulheres e da sua luta, sob a égide da tão celebrada Geração de 70, de Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão, de Oliveira Martins, de Antero de Quental, a qual afinal foi repressora dos ideais progeressistas femininos. No que aliás foi acompanhada por Maria Amália Vaz de Carvalho uma das vozes mais consistentes do conservadorismo.

Guiomar Torrezão, ao contrário, fez jus aos valores do progresso defendidos pelas suas antecessoras publicando o Almanach das Senhoras, de que foi proprietária, directora e editora. Fá-lo chegar a todo o país, à Madeira, Açores, Cabo Verde, Angola, ao Brasil e a Espanha. A propósito desta publicação, não resisto a referir o que Oliveira Martins escreve certamente em clara sintonia com o espírito da época e da sua geração a respeito do que devem ser as actividades das mulheres do seu tempo: «de um modo sumário [...] o seu destino comum – salvo as exepções privilegiadas, como V. Ex.ª -- é cozinharem bem a panela a seus maridos, saberem lavar filhos e remendar-lhes os calções.»[6]

Esta rejeição, por parte dos escritores mais conhecidos, das iniciativas e posições das intelectuais do tempo mostra quão corajosas foram todas aquelas que ousaram ir contra esta hegemonia, apoiada numa escassa minoria de gente progressista. Para a maioria dos escritores, a agulha, a panela e todos os objectos domésticos seriam os únicos que poderiam ser manuseados com propriedade pelas mulheres. A pena, a política, a reforma da sociedade eram propriedade masculina. Esta demarcação notória e forte dos campos interrompeu, aliás, o surto da imprensa feminina durante algum tempo.

Mas isso não atemorizou Guiomar. Com Ramalho Ortigão teve uma célebre polémica que a levaria a escrever um manifesto de igualdade intelectual. Como Pusich num discurso mordaz e displicente ridiculariza o seu adversário e destrói-o com as mesmas armas, as literárias. Afirma-se cultural e sexualmente e retoma argumentos já utilizados por outras suas colegas. E Camilo vem em sua defesa bem como das literatas do seu tempo.

As actividades de Torrezão não deixam de ser notórias tendo dirigido periódicos como O Mundo Elegante, A Estação de Paris, A Cronica, onde encontramos muitos artigos sobre as mulheres de natureza conservadora ou progressista, sobre a instrução e a educação, ou ainda correspondência a com Alexandre Herculano sobre a emancipação.

Ficou quase tudo por dizer nesta comunicação, que não passou de uma breve referência a milhares de acções, reflexões, lutas, progressos e retrocessos que teceram a história da emergência das mulheres para a esfera pública durante o século XIX, em que se fundaram e alicerçaram as conquistas que o século XX consagrou. Por isso se pode dizer que foi a luta e as ideias das intelectuais de oitocentos que prepararam a nova vaga de contestação desenvolvida e liderada pelas Republicanas. Foram estas pré-feministas que prepararam o terreno, que abriram quase todos os caminhos da emancipação num invulgar exercício de equilíbrio em frágil corda bamba. Foram elas que, pela reivindicação insistente nos temas da igualdade, de uma educação e instrução diferentes, de uma consciencialização política activa que deram visibilidade aos grandes temas que serão posteriormente retomados, com novos argumentos e enquadramentos, designadamente sociais e políticos, para que a igualdade de género fizesse caminho na cultura e na concepção do poder e que tudo o que foi por elas escrito servisse de fermento para o que aconteceu ao nivel legislativo e prático já no último quartel do século passado.

Foram as oitocentistas que passaram o testemunho às Republicanas. As ideias e posicionamentos destas não apareceram inesperadamente em 1910 ou nos anos subsequentes. Porque mais conhecidas, delas fazemos alarde. Vangloriamo-nos da maturidade do seu pensamento e acção mas raramente nos lembramos que o trabalho de sapa dos alicerces culturais foi feito pelas pré-feministas de Oitocentos, as quais, com muito suor e lágrimas venceram etapas instransponíveis no Portugal conservador e preconceituoso de então. É graças a elas que também estamos aqui hoje. Cada vez que recordamos os seus feitos estamos a agradecer-lhes a determinação de cada um dos seus actos. A História é isto mesmo: uma ligação entre séculos, entre tempos, entre mentalidades que se vão mudando num determinado sentido, nem sempre linear, mas tomando em conta os avanços precedentes. Honra seja feita às percursoras. Honra seja feita às mulheres que aqui estão nesta sala e a todos os seus empreendimentos de diversa ordem por esse mundo fora.

 



[1] Universidade Católica Portuguesa
[2] Alexandre Herculano, «D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna», O Panorama, 2.ª série, vol.3, 156(Dez)1844, p. 404.
[3] Catarina de Andrada, «Correspondência extraída de O Correio de Lisboa», O Correio das Damas, 4 (22)1841, p. 175.
[4] Cf. Silvestre Pinheiro-Ferreira, «Educação de meninas», Revista Universal Lisbonense, 1.ª série, 11(Dez.) 1842, p. 137.
[5] Ana Maria Costa Lopes, «A intervenção política e social de Antónia Pusich», in Imagens da mulher na imprensa feminina de Oitocentos. Percursos de modernidade, cap. 7, Lisboa, Quimera, 2005, p. 260-268; Antónia Gertrudes Pusich, Galeria das senhoras na Câmara dos senhores deputados ou as minhas observações, Lisboa, Tip. De Borges, 1848. Foi editado na íntegra por Ana Maria Costa Lopes, «Intervenção de uma prestigiada oitocentista na Câmara dos Deputados», Povos e Culturas, 8, CEPCEP, Universidade Católica, 2003, p. 207-228.
[6] Oliveira Martins, «Ex.ma Senhora e minha ilustre colega», Almanach das Senhoras para 1885, p. 216.

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