Entrevista a CRISTINA MAYA
CAETANO
1- A construção das caravelas, para serem
apresentadas no serão cultural realizado na Escola Básica e Secundária Domingos
Capela , sobre o tema "Camões" e a sua obra emblemática «Os
Lusíadas», obedeceu a um projeto com base numa memória descritiva. Poderemos
saber se algumas das suas obras aqui apresentadas obedeceram a esta dinâmica ou
nasceram de forma espontânea?
As
minhas obras expostas nesta II Bienal de Mulheres em Espinho, tiveram o seu
nascimento em poemas. Primeiro escrevi-os e depois a pintura a óleo foi
crescendo, acompanhando os versos. Por vezes senti a necessidade de adaptar as
tonalidades das cores à escrita, como se o pincel tivessse vida própria e
criasse à sua maneira.
O
quadro “Florais Outonais” pretende ser uma homenagem ao outono, demonstrando
que esta estação onde as folhas caiem e perdem cor, tem uma dinâmica, voz,
beleza e cor própria. “Coloridas Folhas”, é um quadro que representa diversas
folhas de tamanhos e feitios distintos, símbolo das variadas fases da vida de
cada ser humano.
2- O que a inspira ou inspirou nos países
onde esteve como emigrante (pessoas, locais)?
Nascida
em Luanda, Angola, com os meus tenros seis meses, os meus olhos não chegaram a
contemplar a minha terra natal. Apenas me recordo de Lourenço Marques (atual
Maputo), Moçambique, país onde foi batizada e vivi feliz. Ainda hoje,
inspiram-me as corridas e as aventuras de triciclo em que insistia em chocar
contra as árvores e esmurrar os joelhos. As bonecas, que adorava vestir e
despir, ao mesmo tempo em que da varanda espreitava quem passava. O kukuana o
homem velho do saco, onde colocava as crianças que não se portavam bem e as
levava com ele. A luz do dia, as cores da terra, os cheiros, a alegria das
pessoas, o sol grande e vermelho. A praia com areias finas e brancas e a água
do mar quente, onde caminhava com a água a bater-me nos tornozelos. As comidas,
como o frango à cafrial, o chocol (especie de moussse de chocolate em lata), as
gomas e os chocolates sul-africanos. O ringue de patinagem artistica, onde
sonhava aprender a patinar e a dançar com tutus vestidos. O drive in onde com a minha família
assistia ao ar livre, dentro do carro aos filmes do Trinitá, bebendo coca-cola
e trincando pipocas. As matinés, a leveza das roupas e o pé descalço. “O
casamento dos macacos”, apelidado ao tempo de sol, interrompido por uma
repentina queda de chuva, onde imaginava uma idílica e pormenorizada cerimónia.
A fruta sumarenta, como a manga, papaia, mamão e diversos outros tropicais
sabores. O Natal, com uma grande e enfeitada árvore de Natal coberta de grandes
presentes. As passagens de ano com pessoas nas varandas e carros a apitarem a
saudarem o ano novo.
Tudo
isto, eu transporto na minha arte e nos meus escritos (como na Fadinha Lótus,
simbolo de magia da minha infância e das bonecas que tinha. O seu lago de
nascimento com águas quentes e mansas – O mar de Moçambique e os seus amigos,
animais, como tantos que lá havia). Bem como as cores que uso e materiais que
me transportam a Moçambique com todo o seu exotismo, e tantas vezes espelhado
nos saris de indianas que encontrava
na rua, recriando-me para outra cultura, sentir, cheiro e comida picante.
3 - Até que ponto poderíamos dizer que há, no
país onde esteve, uma arte no feminino em oposição a uma arte no masculino? Ou
há uma relação entre género e expressão artística?
Considero que em Moçambique, a
predominância do masculino é marcante. O tribalismo, a tradição, o colonialismo
e guerra colonial, independência, contacto com conceitos e arte ocidentais,
reconstruçao de um país, a procura das raízes, são todos eles fatores
importantes numa maior compreensão da cultura moçambicana e transparência de
todos os seus componentes. Na arte plástica destacam-se vários nomes como:
Pancho Guedes; Azymir Chiluteque
com as suas criações que contribuíam para a narrativa da história de Moçambique;
Naguibe com destaque para o Mural em homenagem a Samora
Machel junto com a sua equipe. Jorge Dias,
criador de novas formas de relações culturais e o inesquecivel Mestre
Malangatana Valente Ngwenya que levou o nome
de Moçambique ao mundo, tendo sido embaixador das artes plásticas, educador,
impulsionador, divulgador e criador de oportunidades para a arte e artistas
moçambicanos. No feminino, as artistas
Fátima Fernandes e a falecida Bertina Lopes com vários prémios internacionais
de pintura, são exemplos de sucesso e de integração vivenciais em outros
países, respetivamente Portugal e Itália, expressando e alargando a
moçambicanidade feminista no mundo.
4- Para uma artista plástica portuguesa em
comunidade estrangeira, como absorveu a nova cultura do país onde estudou ou
viveu e como é que se interligou com a sua cultura de origem? E para uma
artista plástica estrangeira em comunidade portuguesa?
A
cultura daquele país africano, na altura solo Português, pulsava dentro de mim,
quer no meu respirar, batimento cardiaco, ou na génese das minhas células. Eu
estava em África e África estava em mim. Fugida da guerra colonial, deixei para
trás família e a terra que acreditava ser minha. Em Cerejo, aldeia do meu pai,
para onde fui residir, deparei-me com valores e costumes culturais distintos
aos que estava acostumada e por isso não os reconhecia. Para mim, a comunidade estrangeira a que me
tive de adaptar foi a portuguesa. Com o tempo fui tentando habituar-me com a frequência
da escola, ingresso nos escuteiros, faculdade, trabalho e situações próprias da
vida, que me levaram a aprender novos costumes, criar defesas e uma compreensão
própria ao que me rodeava. Muitos anos mais tarde, regressada a Moçambique, fiz
a minha própria catarse: o encontro comigo e com o meu passado. E aí sim, por
fim, com raivas desaparecidas, aceitei em plenitude a portuguesa que havia em
mim.
Tal
como tudo, penso que para uma artista plástica estrangeira em comunidade
portuguesa, há que ponderar alguns aspetos. A personalidade da pessoa em causa,
o país donde é originária e a comunidade onde se inseria. Também é importante
se entrou em Portugal, sozinha ou acompanhada de amigos ou familiares,
acentuando o fator solidão ou de comunicação. Se constituiu família já em
Portugal, permitindo-lhe um contacto e convívio mais próximo com a cultura
portuguesa, a integração poderá tornar-se mais acessível. Seja qual for o caso,
as vivências, técnicas e gostos pessoais adquiridos noutras fronteiras, sem
dúvida poderão e devem enriquecer as artes. Conjugadas com vivências e
interações em Portugal, a evolução resultante é salutar e propício para o
desenvolvimento das artes.
5- Quais as barreiras que encontrou enquanto
mulher- preconceito e enquanto criativa - liberdade?
Uma
visão diferente da vida e um sonho idealista de a viver: Fazer o que gostava.
Deixando para trás emprego e padrões convencionais de vida, experimentei a
sensação de muros erguidos, perconceitos e de medos originadados pela
incompreensão de uma profissão diferente e de um futuro incerto. Questionando
qual o melhor caminho a traçar, a arte gritava dentro de mim. Primeiro em forma
de crónicas, escrita científica, depois nos contos infantis, na pintura a óleo,
na poesia, nos romances, na ilustração, no teatro, cinema e no contar de histórias.
E foi aí que percebi: a arte é sem limites! Senti-me livre e o meu espirito
sossegou.
6- Pensando no nosso percurso, será
que teríamos maior êxito ou maiores oportunidades
se estivéssemos nos respetivos países de origem
Não.
Acredito que tudo acontece como tem de ser. Nós não somos o passado, mas somos
o que somos graças ao passado que tivemos. O passado não é importante, apenas o
que fazemos com ele. As dificuldades que travamos, as batalhas que perdemos ou
ganhamos, ensinam-nos algo importante para o nosso crescimento evolutivo, e
para fortelecidos, encararmos novos desafios.
Acredito que as vivências que tive não seriam as mesmas se tudo tivesse
sido de outra forma. Hoje, certamente não seria a mesma pessoa. Provavelmente
até nem seria artista...
7- O que ganharam, neste particular domínio,
as mulheres migrantes na sua itinerância por vários universos culturais?
Aprendizagens
culturais e formas diferentes de sensibilidade, ver, ouvir e sentir a vida.
Contagiarem-se a si mesmas e contagiarem outros povos sendo veículos portadores
de transmissão de novos conhecimentos. Crescerem como seres humanos, olhar de
dentro para fora e seguir em frente. Retirar pedras do caminho e construir
pontes para comunicar com todos os povos da terra.
8- Que importância acha que devemos atribuir
às Artes como formas de intervenção e afirmação cívica e humana?
A
importância de uma vida. A importância de todas as vidas. Nasce no ser humano.
É criado no âmago de cada um. É puro, autêntico, natural. É a voz do sentimento
no seu expoente máximo. Não o calem, nem o mutilem! Antes ouçam-no e deêm voz
às populações para na arte se expressarem e intervirem na sociedade, observando
valores humanos e comportamentos cívicos. Poderão perceber melhor o pulsar de
culturas e melhor transmitir a história da civilização. Reinventarem-se a si
mesmos, e contribuirem para um tão precisado colorir do mundo.
Daniela Amaral Moreira, aluna da escola
Domingos Capela, AEMGA , Espinho, setembro de 2013
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