RETALHOS DE UMA VIDA EM ÁFRICA
Escrito por: Ester de Sousa e Sá
Em 1952, filosoficamente dizendo, involuntariamente, voei nas asas do vento à descoberta do continente Africano. Era eu então ainda muito pequena, de mente ávida de conhecimento, imaginativa e receptiva a tudo o que fosse mudança.
Nessa época, nos anos após guerra, outra grande crise avassalava a Europa. Meu saudoso pai, destemido e dotado de grande inteligência, procurando melhor nível de vida para si e os seus, em 1948, emigrou para Moçambique. Regressou a Portugal, no fim do verão de 1951 com um pequeno “pé-de-meia,” acumulado à custa de muito sacrifício e trabalho. No entanto, como em Portugal nada tinha mudado, continuando a grassar a malfadada crise, meu pai voltou para África, desta vez levando consigo a família. Naquele tempo, as viagens para além mar eram feitas de barco. Não havendo outro meio de transporte que não fosse o navio e, com centenas de Portugueses todos os meses se aventurando a empreender tais viagens à procura de melhor vida, a marinha mercante portuguesa, prosperava. Com um saco cheio de ilusões, muita coragem alicerçada na fé e uma vontade férrea de vencer, os imigrantes portugueses, atravessavam os mares encafuados dentro do ventre dos navios, que sulcavam os mares tal qual ilhas flutuantes a caminho do desconhecido.
O destino escolhido por meu pai, foi o Porto da Beira em Moçambique. Após quase um mês de viagem marítima, finalmente chegamos ao destino. Embora as condições de vida no princípio fossem muito difíceis, ajudaram a moldar o meu caracter forte e resoluto que me tem ajudado a enfrentar a vida, principalmente nas adversidades. O facto de ter sido criada e educada em África, foi para mim uma aventura e experiência maravilhosa. Tenho imprimido na alma o rufar rítmico dos tambores e das marimbas num batuque desenfreado que em noites de lua cheia acordada ficava a escutar. Embebedei meus sentidos no néctar dos frutos maduros do cajueiro e mimoseei o palato em deliciosas mangas, goiabas e ananases que cresciam ao fundo do quintal amadurecidos pelo calor intenso e sufocante.
A nossa vida em África foi uma mudança radical. Tudo era diferente! As condições de vida eram precárias e o clima inóspito mas, o desconhecido fascinava-me e enquanto mecanicamente executava as obrigações que me impunham colaborando nos trabalhos da casa, minha mente tomava asas. Era livre no meu pensamento, absorvia tudo o que via e ouvia tal e qual uma esponja.
Certa vez, no fim da tarde de mais um fascinante pôr-do-sol rubo, fui despertada do que estava a fazer pelo roncar à distância, do motor do velho camião Ford do senhor Chico que chegava do mato. À medida que o camião se aproximava da nossa propriedade pela estrada de terra batida, esburacada pelas últimas chuvas, mais a chinfrineira aumentava com o bater da pesada carroçaria de madeira contra o metal provocado pelos solavancos. Snr. Chico era um dos poucos amigos da família. Era um homem novo, bem-parecido, de trinta anos apenas, alto moreno, cabelos negros e grandes olhos cor de avelã. Exuberava a energia de homem possante e saudável, na flor da idade. Tinha vindo para África, após a guerra como tantos outros à procura de aventura e fortuna. Naquele tempo percorria as picadas do mato no distrito de Manica e Sofala com o camião carregado com sacos de sal, arroz e açúcar que trocava aos indígenas que viviam longe das povoações, por cabritos, galinhas, galinholas, porcos do mato e outras coisas mais que vendia quando regressava à cidade. Nesse dia, quando o camião entrou na propriedade debaixo duma algazarra infernal à mistura com o latir dos cabritos e cacarejar das galinhas que consistiam na sua preciosa carga, nós em alvoroço, expectantes e empolgados aguardávamos a sua chegada no quintal. De sorriso largo pintado no rosto, o senhor Chico desceu do camião com um macaquinho pequeno ao colo. A mãe deste tinha sido abatida por caçadores furtivos e, a cria de olhitos assustados, agarrada à camisa surrada de suor do seu progenitor adoptivo espreitava-nos com curiosidade. Nós, crianças, ficamos encantadas e revezávamo-nos a tocar-lhe e a afaga-lo. Logo procuramos uma garrafa de sumo vazia e um bico de biberão e, fizemos-lhe uma mamada de leite condensado cruz azul que o bichinho esfomeado, devorou em três tempos. E assim, a esta família de quatro filhos se acrescentou um macaquinho chamado, simão. Aqueles dias em que o nosso amigo chegava do mato eram memoráveis, quebravam a rotina dos dias vividos na nossa casa, situada na pequena povoação da Manga que distava uns quinze quilómetros da cidade da Beira.
A nossa permanência na Beira foi curta, não chegou a dois anos, no entanto foram talvez os dois anos mais marcantes da minha vida. Foi o tempo suficiente para meus pais prepararem as coisas para seguirmos numa outra viagem, esta de comboio até à Rodésia, naquele tempo, uma próspera colónia Inglesa. Aí, nesse país adoptivo, deixei-me beijar pelo perfume das flores do jacarandá que naquela época embelezavam algumas avenidas de Salisbury, a capital e, abracei uma nova cultura onde o progresso era evidente e o esforço era premiado. No entanto, apesar das condições de vida terem melhorado consideravelmente, vi-me confrontada com dois tipos de cultura, o de casa; austero e restricto, à velha maneira Portuguesa, em que aos rapazes tudo era tolerado e permitido e, às raparigas tudo, ou quase tudo era vedado. Fora do lar porém, na escola e na sociedade em que estava inserida uma outra cultura, mais liberal, mais despida de preconceitos, mais equacionada nos direitos de ambos os sexos. Aprendi desde muito nova a viver em harmonia com os dois mundos, valendo-me dos valores que meus pais me incutiram e do discernimento próprio para me ambientar e enquadrar neste novo mundo. Sendo a Rodésia uma colónia Inglesa, o sistema, em todos os planos era o da Inglaterra. Já nessa altura as escolas públicas possuíam todas as facilidades facultativas a um ensino de alto nível, sendo providas de bibliotecas, piscinas e campos de ténis. Como criança a adaptação foi-me mais fácil melhorando ainda mais depois da aprendizagem da língua.
Não obstante a vida do imigrante ser difícil, havia oportunidade de evoluir e chegar mais longe. Como sou a única filha e por sinal a mais velha dos quatro filhos, desde muito nova me foi incutido o senso de responsabilidade. Pertenço àquela camada de gente que acredita que tudo se consegue com muito trabalho e esforço. Apesar dos valores da nossa sociedade estarem a mudar, ainda hoje acredito que nada se consegue sem trabalho e dedicação.
O povo Português para onde quer que emigre, carrega dentro de si um saudosismo do seu retângulo na Europa à beira mar plantado chamado; Portugal. Quase que faz parte do seu ADN. Quando as saudades apertavam, quando havia uns feriados e a vida permitia, meus pais, colmatavam essa tal saudade empreendendo uma viagem de oito a dez horas até à Beira de carro. Nós adorávamos essas curtas férias junto do oceano Índico.
Em Salisbury, uma linda cidade no interior, onde nos fixamos, fiz os meus estudos. Acabei o ensino secundário e matriculei-me na Salisbury Polytechnic School, tendo concluído o curso de secretariado com dactilografia e estenografia. Embora nunca tivesse exercido tal curso, essas aptidões facultaram-me a entrada para o Barclays Bank D.C.O. iniciando assim uma carreira bancária.
Quando casei, fui viver para a capital de Moçambique então chamada Lourenço Marques. Cidade linda, voltada para o Oceano Índico, de palmeiras orlando a marginal ao longo da costa marítima e frondosas acácias em flor, a que os tons garridos e cromáticos das capulanas das suas gentes emprestam alegria. Para saciar o interesse profundo pelo conhecimento que sempre senti dentro de mim, matriculei-me numa escola nocturna para adultos, continuando a estudar e nos fins dos anos sessenta, ensaiei os primeiros passos na pintura a óleo. Aprendi por mim própria tudo sobre diversas artes decorativas e lavores. Sempre tive uma grande paixão pela arte e como adoro o processo de criar algo, ao longo dos anos fui dando extravasão à minha criatividade nas diversas áreas. Volvidos dez anos de vida de casada em Lourenço Marques, deu-se a descolonização. Foram tempos muito difíceis carregados de incertezas e, para salvaguardarmos a nossa segurança física e dos filhos saímos de Moçambique deixando para traz os bens que possuíamos, incluindo a nossa casa, indo viver para Durban na África do Sul. Recomeçar do nada com três filhos, mantendo um certo nível de vida, não foi fácil mas com uma vontade férrea de vencer, saúde e trabalho fomos pouco a pouco alcançando os nossos objectivos. Entretanto, nasceu o meu quarto filho e aí a vida profissional parou. Porém, quando este meu filho tinha dois anos, entrei de novo para o sistema bancário. Fiz-me membro do Instituto dos banqueiros da África do Sul estudando por minha conta à noite, depois de estarem todos jantados e deitados, submetendo-me aos diversos exames periódicos na Universidade do Natal, em Durban.
Foi também em Durban que me fiz associada da Liga da Mulher Portuguesa da África do Sul, tendo sido eleita passado uns meses para fazer parte da direcção. Com o entusiasmo que me é peculiar, dei o melhor de mim mesma a esta Liga que visa promover a cultura Portuguesa, incluindo nossos usos e costumes na África do Sul. Com a colaboração dos restantes membros da direcção organizei o 1º Congresso da Liga em Durban em 1995 e que foi um sucesso.
Vivi durante 44 anos em África dos quais vinte e dois, foram vividos em Durban África do Sul, linda cidade cosmopolita também virada para o Oceano Índico, onde criamos e educamos nossos filhos. Tomei sempre parte activa nas diversas áreas da sociedade em que estive inserida. A convite do Ratepayers Association, uma espécie de Junta de Freguesia, fiz parte da direcção sem qualquer renumeração, atendendo e zelando pelos interesses dos munícipes do bairro onde residia. Desde os primeiros tempos da minha chegada a Durban, o meu gosto pelo canto, levou-me a fazer parte do coro da Igreja e dirigi um grupo de senhoras que tratavam das flores, chamando a mim própria a responsabilidade de enfeitar a igreja pelas grandes celebrações. Fiz voluntariado como animadora para uma organização Internacional denominada “Faith & Light”, um movimento cristão fundado por Jean Vanier em França, com ramificações espalhadas pelo mundo que se dedica e apoia crianças deficientes e suas famílias, uma experiência que me foi muito gratificante, pelo carinho que recebi dessas crianças. Um dia durante uma das tantas reuniões em que participei, uma senhora, mãe de uma criança deficiente, voltada para mim pergunta-me: - Qual é a tua criança? Ficou atónita com a resposta que lhe dei. -Nenhuma, mas como sou mãe de 4 lindos filhos saudáveis, em acção de graças a Deus, resolvi dar um pouco de mim própria a esta causa.
Na Primavera de 1996, já com os filhos criados e entregues a si próprios, regressei com meu marido a Portugal, às minhas origens. Embora me considere uma cidadã do mundo, sou por nascimento uma mulher Portuguesa do Norte. Não vou dizer que volvidos tantos anos desde que daqui parti, a adaptação depois do regresso tenha sido fácil, valeu-me a minha experiência de vida e a minha paixão pela arte.
Agora com mais tempo e liberada da responsabilidade de criar os filhos, dedico-me inteiramente às artes, nomeadamente à escrita, pintura e escultura.
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