Licenciada em História (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), Pós-Graduada em Estudos Europeus (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e Mestre
em Literatura e Cultura Portuguesa – Época Moderna (Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
Aposentada desde Outubro de 2006, exerceu sempre a actividade docente, tendo leccionado em vários níveis de ensino. Nos últimos anos de docência, desempenhou o cargo de Leitora de Língua e Cultura Portuguesas no Estrangeiro, ao serviço do ICALP e do Instituto Camões.
Em 1989, cumpriu uma primeira missão de oito anos, na Universidade de Helsínquia,
Finlândia, a que se seguiu uma segunda de cinco anos na Universidade de Toronto, Canadá, de 1998 a 2003. De 2004 a 2006, dirigiu o Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões, em Benguela (Angola) e leccionou no Instituto Superior de Ciências de Educação de Benguela, Pólo da Universidade Agostinho Neto de Luanda.
Obras publicadas: Passaporte Inconformado, Edições MinervaCoimbra, 2004; Chão da
Renúncia, Edições MinervaCoimbra, 2008; Entre Margens de Afectos (c/ Gabriela Silva), Liga Portuguesa Contra o Cancro, Ponta Delgada, 2009; Passos de Nossos Avós (c/ Manuela Marujo), Ponta Delgada, Publiçor, 2010; Abraço de Mar entre Ilhas e Continentes (c/ Gabriela Silva), Ponta Delgada, Publiçor, 2011.
Colabora com alguns jornais e revistas, onde publica artigos ligados às questões da e/imigração.
Resumo da comunicação
AVoz das Avós - Vozes de Agora, Vozes de Outrora
Ao longo da História das Migrações, as mulheres têm constituído um grupo
esquecido, quase só tendo direito a registo quando este se faz à sombra/ou ao lado de
um homem.
Há algumas décadas, contudo, começaram a ser consideradas matéria-prima de
interesse para trabalhos de investigação. Entre elas, o grupo das avós e o papel
determinante que têm desempenhado na organização da vida familiar, em situações de
convivência inter-geracional.
Em contexto de diáspora este papel é ainda mais relevante porque elas
contribuem para a construção de uma identidade social, que se afirma através de um
forte legado patrimonial passado de geração em geração.
Esta comunicação pretende, através de testemunhos de netos (vozes de agora)
analisar e perceber a importância da força das avós (vozes de outrora), no percurso das
suas vidas, ao desenvolverem relações e linguagens muito cúmplices de interacção
social.
A VOZ DAS AVÓS: VOZES DE AGORA, VOZES DE OUTRORA
Vivo, passo e nasço a cada instante
e não me demoro:
respiro um tempo que já morreu.
Estou de passagem, já disse.
Eduardo Bettencourt Pinto, Viajar com sombras, 2008
Estando este Encontro centrado na temática, MULHERES PORTUGUESAS
NA DIÁSPORA, somos desde já convocados a falar de um grupo que, ao longo da
História, tem sido duplamente esquecido. Primeiro, enquanto Mulheres, depois, como
Mulheres em contexto de Diáspora, pesem embora as iniciativas que nas últimas
décadas se têm realizado, de que destaco o dinâmico papel da Associação Mulher
Migrante.
Como cidadã, que passou pela experiência de ter vivido espaçados períodos da
sua vida afastada do espaço-berço, sinto-me particularmente tocada por este tema. Por
isso, em 2003 estive de forma muito empenhada ligada à organização do 1º Congresso
Internacional «A Vez e a Voz da Mulher Imigrante Portuguesa»1, cuja iniciativa partiu
do entusiasmo e profissionalismo da Professora Manuela Marujo, Directora Associada
dos Estudos Portugueses da Universidade de Toronto, em cujo Departamento de
Espanhol e Português, eu desempenhava a função de Leitora de Português do Instituto
Camões.
Se o berço deste congresso foi a Universidade de Toronto, outros se seguiram a
regatear-lhe o colo, de tal modo que depois de Berkeley, Macau, Curitiba e Paris, será
Ponta Delgada, nos Açores, a acolher a sua sétima edição no próximo ano.
Consulte-se Manuela Marujo, Aida Baptista, Rosana Barbosa, The Voice and Choice of Portuguese
Immigrant Women/A Vez e a Voz da Mulher Imigrante Portuguesa, Proceedings 1st Internacional
Conference/Actas 1º Congresso Internacional, 2003, University of Toronto.
1
Aquando desta incursão pelo universo feminino das Migrações, um grupo de
mulheres se destacou pelo papel que até então tinha desempenhado na organização da
vida familiar, em situações de convivência intergeracional - o das avós - pela forma
como têm contribuído para a construção de uma identidade social, como defende
Natália Ramos2: «No espaço familiar constroem-se laços de solidariedade e identidades,
tecem-se vínculos e relações privilegiadas, desenvolvem-se competências emocionais e
sociais... (...)», pág. 210.
De facto, a prática docente junto de alunos emigrados ou lusodescendentes,
revela-nos que estes, quando questionados sobre uma figura que tivesse marcado as
suas vidas, quase sempre apontaram os avós e, de entre estes, as avós. E isto é válido
para qualquer grupo étnico, credo, condição social, latitude ou longitude, porque o
mapa dos afectos é avesso a qualquer nomenclatura que categorize as emoções, e às
mulheres incumbe quase sempre este papel afectivo. No entanto, ganha uma
importância maior quando falamos de comunidades que vivem entre dois mundos - o
que deixaram e aquele em que passaram a viver -, cujas vidas são um cais permanente
de partidas e de chegadas. O fio ténue que une as duas fronteiras é, na maioria das
vezes, tecido pelas avós. Num universo de ausências e encontros breves, a voz da avó é,
amiúde, a única ponte a unir dois tempos: o passado e o presente, num ritual de
passagem de uma memória colectiva.
Não esqueço nunca uma aluna ruiva, de olhos profundamente azuis e pele clara
salpicada de sardas, que, sem saber construir uma frase em português, me recitava
orações e benzeduras para espantar o quebranto e o mau-olhado, no mais característico
e cerrado sotaque de Rabo de Peixe, que aprendera da boca da sua avó açoriana.
Foram outros testemunhos como este, a indiciarem o forte contributo dos avós
para a preservação e salvaguarda de um rico património linguístico, que levaram
Manuela Marujo, a interessar-se, entre outros estudos, pelo papel das avós na
manutenção da língua materna como língua de afectos. Daí até realizar um congresso
exclusivamente voltado para a temática dos avós, foi apenas o clique de uma ideia.
Assim nasceu o 1º Congresso Internacional «A Voz dos dos Avós - Migração e
Património Cultural», realizado em 2008, em Ponta Delgada, em parceria com a
Universidade dos Açores. Congressos centrados nesta temática, tendo em conta a
natureza e diversidade dos painéis tratados, constituem um valioso contributo para o
2
Ramos, Natália, Relações e solidariedades intergeracionais na família - dos avós aos netos, Revista
Portuguesa de Pedagogia, 2005, Ano 39, nº 1.
arquivo do que é já considerado Património Imaterial da Humanidade, à luz da
Convenção da Unesco de 2003, que entrou em vigor a 20 de Abril de 20063. Para
efeitos desta Convenção, o patimónio imaterial manifesta-se no domínio das tradições e
expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; as
artes do espectáculo; as práticas sociais, rituais e eventos festivos; conhecimentos e
práticas relacionadas com a natureza, bem como as aptidões ligadas ao artesanato
tradicional. Daqui se conclui que o património imaterial está em cada um de nós,
enquanto produtor de conhecimentos e guardador de memórias. Contudo, se nos
restringirmos apenas a guardar essas memórias, sem lhes darmos vida, seremos simples
fiéis de armazém - aquele que arquiva coisas paradas no tempo.
Contrariando este conceito de fiel de armazém, quando se preparava a
organização do segundo congresso, em 2010, em Lisboa, propusemo-nos (a professora
Manuela Marujo e eu) fazer uma recolha de narrativas em que, num esforço selectivo da
memória, pedíamos a netos (vozes de agora) que nos falassem do período em que
tinham vivido/convivido com os avós (vozes de outrora) e das marcas que estes haviam
deixado nas suas vidas. Desta forma, nasceu a Antologia «Passos de Nossos Avós»4,
constituída por um conjunto de textos, cujos autores provenientes de diferentes
geografias, nos dão a perspectiva de mundividências de diversas diásporas: Cabo Verde,
S. Tomé, Angola, Brasil, Macau, Estados Unidos, Canadá e Portugal.
No que toca à figura retratada, as avós maioritariamente surgem em primeiro
plano, ficando-se os avôs por presenças diluídas no turbilhão das lembranças. Se um ou
outro testemunho aparece sobre o avô, quase sempre se ficou a dever a uma insistência
nossa, que nunca quisemos transformar a avosidade num reduto exclusivamente
feminino.
Tal tendência não é de estranhar, já que tanto a tradição literária como os
estudos que nas últimas décadas têm sido feitos, de que destaco a mais recente
publicação da professora Stella António5, comprovam o estabelecimento de uma linha
matrilinear nas relações entre avós e netos. Como nos diz a pesquisadora Ilda Januário6,
na recensão que fez sobre a obra, «Os frutos do matrimónio eram coisas de mulheres,
assim como os do património captavam mais a atenção e a energia dos homens». E a
3
Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, Paris, 17 de Outubro de 2003.
Aida Baptista, Manuela Marujo, Passos de Nossos Avós, 2010, Ponta Delgada, Publiçor.
5 António, Stella, Avós e Netos, Relações Intergeracionais: A Matriliniaridade dos Afectos, Universidade
Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2010.
6 Ilda Januário, Mestre em Antropologia Universidade de Toronto, Revista Senso, Winter/Spring 2011, nº
10, pág. 38, Toronto.
4
verdade é que ainda hoje, apesar das grandes transformações que os papéis têm sofrido
dentro da família, a tradição continua a fazer recair sobre as mulheres a
responsabilidade de prestar cuidados aos outros: às gerações mais novas (filhos e netos)
e à geração mais velha (dos pais, avós e outros parentes idosos). Segundo a tese de
Maria de Fátima Ferrão Pires7, «Assim como a idade influencia a relação avós-netos,
também o género é determinante neste tipo de relação, justificando a tendência das
avós, mais do que dos avôs, para se relacionarem com os netos, e mais
particularmente com as netas».
Ao lermos as narrativas de Passos de Nossos Avós, bem como todo o material
com que frequentemente somos brindados através da literatura, depressa percebemos a
importância que as avós ganham no seio do agrupamento familiar. Estas e outras
histórias de vida (sob a forma de crónicas, contos ou romances) atestam a permanência
de determinados padrões culturais que contribuem para a construção de uma identidade
social. Diz-nos Eduardo Bettencourt Pinto8, um dos autores representados na antologia
Passos de Nossos Avós, que «o nosso apelido tem uma história e um percurso, e que
na linha enviesada da estirpe somos a consequência de uma miríade de passos e
vidas que nos antecederam» (pág. 45).
Não sendo pretensão desta minha comunicação entrar pela via dos pesquisadores
que, de forma rigorosa, se têm dedicado à tarefa de estudar casos e nos darem
estatísticas precisas e fiáveis, fico-me pela palavra literária que, por outras vias, retrata
uma mesma realidade. Se estivermos atentos a alguma das mais recentes publicações
que versam o tema da emigração/imigração, constatamos que as avós desempenham o
papel de figuras tutelares, à volta das quais se constrói toda a narrativa. Na
impossibilidade de exemplificar com personagens de várias obras lidas, ficar-me-ei pela
referência a autoras que, no actual contexto, satisfazem o guião da minha exposição:
Isabel Mateus9, Júlia Nery10 e Adelaide Freitas11.
Isabel Mateus, no seu conto «Os Meninos da Avó» e nos primeiros textos de «A
Terra do Chiculate», fala-nos de meninos órfãos de mães que partiram a rasgar as
estradas francesas da emigração, deixando os filhos ao cuidado das avós. O conto «Os
7
Maria de Fátima Ferrão Pires, Presença e papel dos avós: estudo de caso, Tese de Mestrado (2º Ciclo)
em Ciências da Educação, 2010, Universidade de Aveiro.
8 Aida Baptista, Manuela Marujo, Passos de Nossos Avós, 2010, Ponta Delgada, Publiçor.
9 Mateus, Isabel, Outros Contos da Montanha, 2009.
___________, A Terra do Chiculate, Relatos da Emigração Portuguesa, 2011, Gráfica de Coimbra.
10 Nery, Júlia, pouca terra... poucá terra, 1984, Lisboa, Edições Rolim.
11 Freitas, Adelaide, Sorriso por Dentro da Noite, 2004, Gaia, Editores Ausência.
Meninos da Avó» começa: «Ficavam muitos na Granja. (...) Os pais partiam para
lhes darem uma vida melhor» (pág. 57). A Granja tem representação física no mapa
do nordeste transmontano, mas é uma metáfora para qualquer outro lugar do mundo, de
onde saíram mulheres com peitos cheios de leite para os deixaram secar na ânsia de
alimentarem a fome de partir.
Mais tarde voltavam, em diálogos de incertezas: «Olha homem aquela é com
certeza a nossa filha! Só pode ser ela, os traços que dela tenho na lembrança são os
mesmos!» (pág. 58). Mas a filha, essa, vivera uma vida vazia de memórias: «Eu é que
de mãe nada sabia. (...) Avó sim, essa sabia o que significava. Era por ela que
chamava quando tinha fome, sede, frio ou calor. Nas noites frias do Inverno
transmontano dormia enroscada no seu ventre e, para consolar outras feridas da
alma, colava-lhe as minhas mãos no rosto como pequenas tenazes que não
deixassem escapar a quentura das brasas» (pág. 58).
Os Meninos da Avó, se por um lado são uma homenagem às avós - estas, no
caso concreto, mães duas vezes -, não deixam de ser um libelo acusatório contra as
mães que, em nome de um futuro risonho para os filhos, lhes deram presentes de
abandonos. Não admira, portanto, o forte sarcasmo contido neste pensamento da
protagonista do conto: «Chegavam e pensavam que num mês se tornavam pais!»
(pág. 59). Por isso, lhes desobedeciam negando-lhes qualquer autoridade sobre as suas
vidas. Meu pai disse-me: «- Com este calor pensas que vais regar a horta com a tua
avó?» (pág. 59). A resposta, que ganhou a forma de pensamento por não ter tido
coragem de se soltar, foi: «Eu não queria saber da rega, queria a minha avó, afinal a
minha mãe» (pág. 59).
Numa idade em que os papéis não estão ainda devidamente definidos e
hierarquizados, mãe e avó fundem-se e confundem-se, quando à função biológica
se sobrepõe a dos afectos. Atente-se no desabafo desta personagem de «A Terra do
Chiculate»: «Antes dos doze meses, tinha perdido contra a França a mãe que me
possuíra nas suas entranhas. Aos vinte e um anos, desaparecera, para junto de
Deus, a que me embalara» (pág. 59).
Na primeira parte de «A Terra do Chiculate» são inúmeros os textos que nos
dão, como refere a badana, uma «pungente perspectiva infantil» de quem se viu
obrigado a lidar com um processo, nem sempre pacífico, de transferência de
afectos. «Sem pontos de referência sólidos que me ligassem a ela [à mãe], nos meus
primeiros anos de vida, todas as minhas recordações dessa época passavam por
uma vinculação à minha avó...» (pág. 53).
Os pais, demasiado envolvidos na conquista do sucesso, desvalorizavam a
existência destes dramas interiores quando, já com uma vida confortável, os arrancavam
dos braços das avós para os terem junto de si.
«Que te falta? Não tens tudo?» - pergunta uma das mães.
A resposta ficava suspensa na recordação da avó: «Tinha. (...) Mas, sem a
presença da minha avó, faltava-me tudo. Não possuía o seu afecto e o seu carinho,
que só ela me dava sem imposições, nem contrapartidas. (...) Eu precisava do pão,
mas que não me tirassem o mimo. Para minha mãe, o pão destronava por
completo o amor e os afagos do dia-a-dia» (pág. 54).
Neste doloroso processo de rupturas familiares causadas pela emigração, muitas
destas crianças cresceram sem a memória da voz dos pais. Já crescidas, sentiam-se
confundidas e nomeavam-nas mães ou avós, conforme lhes ditava a sonoridade do
carinho com que eram ditas ou a falta de nunca as terem pronunciado. Atente-se no
desejo da menina que nunca perdoara à mãe o não a ter levado consigo, de cade vez
que, depois de uma visita, regressava a França: «Deitara-me resoluta a saltar da cama
no mesmo instante em que pressentisse os passos de minha mãe e os últimos
preparativos para a partida. Iria contra a sua vontade. Estava decidido. Também
me queria habituar a pronunciar a palavra "mãe" no dia-a-dia» (pág. 37). Noutros
casos, porém, a recusa era bem evidente: «Por infelicidade minha, a sonoridade da
palavra mãe não fazia ressonância nos meus tímpanos, assim como também tenho
a convicção de que o seu significado não era bem recebido ou aceite no meu
subconsciente. Habituara-me desde o berço a outra palavra pequenina, aguda,
cujo "ó" ecoa ao mesmo ritmo do embalo que se dá a uma criança» (pág. 48).
Significativo é o título do texto onde este excerto se insere - A Batalha Campal -,
porque nos coloca perante a disputa, em campo aberto, entre dois tipos de afectos: um
que reclama a força do ventre, o outro, a do colo. E, «a menina de oito anos, a
completar quase os nove, teria de, num abrir e fechar de olhos, chamar-lhe mãe
em vez de avó... (pág. 47) e esquecer que, durante todos aqueles anos, também o colo
de sua mãe tinha andado a salto num jogo de Cá e Lá que ela nunca entenderia.
Enquanto Isabel Mateus, focada numa emigração voltada toda ela para França,
nos dá narrativas muito vivas de avós que ficaram do lado de cá a criar os netos, para
que fossem os filhos a poder sair, Júlia Nery, retrata-nos em "pouca terra... poucá terra"
uma neta que «não escolhera cortar as raízes e partir; fora levada para longes
terras a cavalo dos sonhos da família, a que a avó Maria Menina pusera
fermento...» (pág. 13). Nesta obra, é a figura da avó, conhecida na aldeia por Maria
Francesa, que ocupa o lugar principal na narrativa. Dotada de um enorme poder, é ela
quem toma as decisões mais importantes da família, empurrando a filha Maria da Luz e
o marido para a emigração por terras de França. O seu projecto não passava por
amealhar francos, mas «entrar pelo mundo fora, mudar; conhecer coisas novas e ter
uma neta estudada» (pág. 14), porque, diz-nos a autora, «A instrução era, no
entender de Maria Menina, a chave mágica que abre todas as portas, até a dos
palácios» (pág. 121).
Maria Menina realiza o sonho - Leonor faz estudos superiores em França, em
Ciências Políticas, viveiro dos quadros da nação, comprovando, desta forma, o grau de
inserção na sociedade. Contudo, de Portugal, sabe apenas o que a avó lhe ensinou e as
aprendizagens que as curtas férias de verão lhe permitiam guardar. Um dia, regressa de
comboio e, esta viagem, «descrita por uma mulher emigrante, através da qual se
reconstitui a sua condição e histórias de vida da irmã, da mãe e, sobretudo, da
figura axial da avó, traz para primeiro plano, segundo José Manuel Esteves12, mais
do que a mulher emigrante, a mulher, deslocando-se o próprio romance, por vezes
em sobressalto, como se as agulhas não estivessem certas, entre dois carris: o da
emigração e o da mulher» (Portuguesas na Diáspora, pág. 103).
Porém, os carris em que viajamos pelas vidas desta avó e desta neta estão em
sintonia perfeita numa cumplicidade toda ela feita de compreensão e afectos. Maria
Menina é bem o exemplo da mulher a quem o passado tolheu o futuro, quando
condenada às leis de todo o sempre: «mulher escrava da vontade alheia, casada -
submissão, ventre cheio, pudor e honra, agrilhoada ao seu homem, ao trabalho, às
dores das entranhas repetidamente habitadas, escondendo as leis da sua cabeça e
dos seus cinco sentidos na solidão» (pouca terra... poucá terra, pág. 127).
Maria Menina nunca se conformou e, assim que a viuvez lhe devolveu a
liberdade de voltar a ser ela - a mulher que nascera com as estradas nos pés e a fome do
mundo no olhar -, empurrou toda a família para o ventre de um vagão que, deslocando-
Esteves, José Manuel, Vozes de Mulheres Portuguesas da Diáspora no Romance de Júlia Nery, pouca
terra... poucá terra, in Portuguesas na Diáspora, histórias e sensibilidades, org. de Roseli Boschilia, Maria
Luiza Andreazza, 2011, Curitiba, editora UFPR.
12
se ao som ritmado da onomatopeia, pouca terra... poucá terra..., se encheu de muito
mundo.
Adelaide Freitas, uma açoriana com anos de emigração no currículo, já que o
seu crescimento e percurso académico se fez nos Estados Unidos, é autora de «Sorriso
por Dentro da Noite», num registo muito próximo da autobiografia, onde igualmente se
conta a saga de uma família emigrante. Sorriso por Dentro da Noite - todo ele
construído à volta de uma família açoriana separada pela força dos movimentos
migratórios do século passado, que empurraram grande parte da sua população
para a América do Norte - espelha bem uma realidade vivida por todos aqueles
que, usando as palavras da autora, “formaram-se em ilhas e nunca mais se
arquipelaram”. Neste arquipélago de ausências e encontros breves, a avó é o traço
de união entre todos os tempos:
o seu, aquele em que ela, imigrante também, viveu numa América que lhe
deu um marido e quatro filhos, seguido de um divórcio que a fez retornar à ilha e
enfrentar uma sociedade pouco preparada para aceitar viúvas de vivos;
o dos filhos, dispersos pelos sonhos das terras prometidas;
o dos netos que se encarregou de criar, quando a filha decidiu partir com o
marido para a América»13 (Avós e Migração: Raízes e Identidade, pág. 26).
Destes seis netos (cinco raparigas e um rapaz), Xana, a protagonista do
romance, foi entregue aos cuidados da avó materna, com seis meses de fragilidades.
É, portanto, graças ao zelo da avó que a menina sobrevive. Os pais, esses, chegam-
lhe por fotografia, espalmados nas cartas que de vez em quando vinham da América.
E foi através de rectângulos sem alma, e amarelecidos pelo tempo, que a avó lhe deu a
conhecer a mãe, na esperança de que Xana a amasse, como se fosse possível amar seres
prisisoneiros de molduras. E é assim que Xana vai crescendo, sem pai nem mãe, mas
toda ela cheia de avó.
Quando um dia os pais regressaram, o primeiro momento foi de deslumbramento
e orgulho perante a beleza da mãe, ao mesmo tempo que a sua cabeça de criança se
enchia de dúvidas: “Onde ficarei eu, quando desde os cinco meses sempre vivi com a
vovó?! (...) Eu nunca os senti, nunca os palpei. Não sei qual o cheiro da sua pele, se
crespa ou macia; se doces ou acres são as suas mãos; se o coração é quente ou frio”
13
Aida Baptista, Prisioneiros de uma Moldura: a subversão dos afectos em Sorriso por Dentro da Noite,
in Manuela Marujo (org.), Avós e Migração: Raízes e Identidade, 2010, University of Toronto.
14
(Sorriso por Dentro da Noite, pág. 203). As dúvidas depressa deram lugar a certezas
porque, desde o primeiro beijo, Xana sentiu que a mãe, fora da moldura, era qualquer
coisa indefinida, deslocada no lugar e no tempo, como se não pertencesse a nenhum dos
mundos.
Os pais de Xana decidem voltar a partir, desta vez para o Brasil. A decisão de
Xana adivinha-se muito antes do desenlace final porque, ao longo da narrativa, a autora
vai-nos dando pistas, como é o caso deste diálogo com o irmão mais chegado: «Olha
Daniel, quando a avó embarcar para as nuvens, não te esqueças de me avisar para
não me enganar no caminho, porque eu quero é ir dentro da sua barriga» (Sorriso
por Dentro da Noite, pág. 117). A barriga que Xana escolhe não é a da mãe, mas a da
avó, parideira de dor e amor de que são feitos todos os partos da emigração.
Para concluir, direi que estamos perante três Mulheres (Isabel Mateus, Júlia
Nery e Adelaide de Freitas) de gerações diferentes e com diferentes percursos de vida,
mas unidas pelo mesmo fio condutor – a autoria de textos sobre emigração, onde as
protagonistas são mulheres: mães, filhas e netas.
Muitas destas avós - representadas aqui pelas que ficam (em Isabel Mateus),
pelas que partem (em Júlia Nery) e pelas que regressam (em Adelaide Freitas) - são
mulheres sem rosto, sem nome, analfabetas, mas que dominam como ninguém uma
sabedoria ancestral, que transmitem ao longo de gerações, sob a forma de jogos, usos,
costumes, expressões populares, rezas, crenças, causos a par de estórias de fundos ou
de encantar e canções de embalar, num universo dominado pela oralidade. Se, como
nos diz Vidigal15, «Pela memória colectiva das experiências lúdicas de infância, as
nossas crianças enquanto futuros adultos, receberão as bases culturais, enraizadas no
grupo social de onde provêm», então, não temos dúvidas de que estas avós encheram o
quotidiano dos netos de saberes e sabores entranhados até hoje na memória e imaginário
de todos.
Assim, e porque é do senso comum dizer que a educação começa na mama ou,
no sentido mais lato, no berço, é importante destacar o papel destas vozes esquecidas de
outrora, que, nas diferentes diásporas souberam ser o esteio das famílias. Edgar Morin16
defende que é «Enraizando-se no seu passado que um grupo humano encontra a energia
para afrontar o seu presente e preparar o seu futuro». Ora, como na tradição judaico-
Freitas, Adelaide, op. cit.
Vidigal, L, Testemunhos Orais na Escola, 1996, Colecção Perspectivas Actuais, Porto: Asa.
16 Morin, Edgar, Os Sete Saberes para a Educação do Futuro, 2002, Col. Horizontes Pedagógicos, Lisboa:
Instituto Piaget.
14
15
cristã a vida é representada por uma árvore – a árvore de Jessé – vou recorrer a um outro
poema do autor da epígrafe,
Se ergueres alpendres no desertos
e um jardim de regressos, todas as gerações do vento
dançarão
na única memória
porque da nossa passagem, como elemento de uma família, ficará sempre um
galho de memória a mover-se no tronco do presente.
Aida Baptista,
Maia 25/11/2011
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