Maria Lamas - Uma mulher portuguesa na Diáspora
Evocação por Maria Benedicta Vassalo Pereira Bastos Monteiro
Evoco hoje aqui precisamente uma mulher migrante, a minha avó, Maria
Lamas, na sua qualidade de Mulher, de Escritora, de Expatriada e de
Lutadora Política. Junto a esta imagem a de peregrina e a de solidária.
Peregrina duplamente: em busca das mulheres do seu país, qual jornalista-
etnóloga, em busca da sua liberdade como expatriada, e através delas em
busca de si própria.
Uma busca que sempre lhe conheci exaltada, inquieta, quase imatura na sua premência, não
fora a doçura e a tranquilidade com que se abria a outros espaços de escuta e de empatia
inefáveis. Assim parece que a perceberam também muitos dos que a ela se chegaram, no Jornal ‘O
Século’, no Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, no seu quarto de exilada em Paris, no
Movimento Democrático de Mulheres, ou nas casas das suas três filhas, em Lisboa e em Évora,
onde viveu durante longos anos.
Maria da Conceição Vassallo e Silva, Ribeiro da Fonseca pelo seu primeiro casamento e Lamas
pelo seu segundo casamento foi, antes de tudo, uma mulher, como ao longo da vida se evocou a
si própria. Nascida em Torres Novas em 1893, numa família burguesa e conservadora, foi a mais
velha dos quatro filhos Vassallo e Silva: Maria (como lhe chamava já a família), Joana, Aurora e
Manuel António. Numa cidade de província, como então se dizia, a sua educação foi conservadora
e protegida: internada aos 10 anos num colégio religioso em Torres Novas para receber uma
educação esmerada, é uma rapariga de 15 anos, cheia de fervor religioso e de sonhos, a que sai
do Colégio para se vir a casar em regime civil, em 1910, com 17 anos, com o Oficial de Cavalaria
republicano Teófilo José Pignolet Ribeiro da Fonseca, meu avô, que ali estava em comissão no
Quartel de Torres Novas, e com ele partir em seguida para Angola, onde ele permaneceria em
comissão de serviço durante dois anos. Diz Maria Lamas que assim se cumpriu o que dela se
esperava como mulher: casar, ter uma família e filhos, viver um grande amor. Nas suas palavras ‘o
amor, uma perturbação suavíssima, um olhar demorado, uma carícia, um beijo’. A vida trocou-lhe
as voltas: depois de sete anos de casamento e duas filhas, a sua angústia e sofrimento com uma
relação falhada dá-lhe coragem para voltar para casa dos pais com as duas filhas e partir aos 25
anos, para um divórcio que não tinha desejado.
Um segundo casamento em 1921 com Alfredo da Cunha Lamas, jornalista
monárquico que conheceu na Agência Americana de Notícias, e o nascimento
de mais uma filha, em 1922, estão na origem da sua decisão de consolidar a
sua vida de trabalho. A sua vida familiar neste novo casamento viria também,
em breve, a revelar-se insustentável, e alguns anos depois é de novo uma
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jovem sozinha, agora com três filhas, que enfrenta uma nova fase da sua vida
de mulher, onde a escrita virá ocupar um lugar central de realização pessoal e
de sobrevivência familiar.
A vida afectiva e relacional de mulher de Maria Lamas não terminou, no entanto, aqui, embora
os seus biógrafos mais não consigam contar. Ela continuou durante toda a vida a exprimir a sua
paixão pelas relações humanas, pela busca de muitas formas de amizade e de amor, e foi com
ligações amorosas fortes, e por vezes conturbadas, que atravessou a vida até ao fim. E assim,
elogiada por uns e polémica para outros, se afirmou como mulher inteira.
Mas falemos agora da segunda dimensão da sua vida que aqui queremos salientar: Maria Lamas
Escritora. Em ‘O Despertar de Sílvia: Fragmentos de uma Confissão’, uma novela autobiográfica
publicada em 1949, Maria refere que teve desde a infância uma paixão pela leitura e que desde
cedo sentiu a escrita como uma vocação. Durante toda a década de 20, vai então publicar, sob o
pseudónimo de Rosa Silvestre, uma diversidade de textos, que revelam a premência da escrita,
mas também mostram a sua plasticidade expressiva. Inicia-se com a poesia, em 1923, com o livro
de poesia ‘Os Humildes’, e no mesmo ano com o romance ‘Diferença de Raças’, enquanto cria e
dirige sucessivamente revistas para a infância - ‘O Pintainho’ (1926), ‘O Correio dos Pequeninos’
(1927), ‘A Semana Infantil’ (1927) e ‘O correio dos Miúdos (1928) e publica a sua primeira novela
para crianças – ‘Maria Cotovia (1929).
É em 1927 que publica o segundo romance ‘O Caminho Luminoso’, ainda sob o pseudónimo de
Rosa Silvestre, editado pela Sociedade Nacional de Tipografia ‘O Século’, em Lisboa. Nesta fase
da sua vida proliferam os contactos com Escritores, Editoras e Jornalistas que alargaram as suas
oportunidades de afirmação como escritora e de militância cívica e política: ‘O jornalismo foi
a minha grande escola. Foi ele que me fez tomar consciência da possibilidade de me exprimir
escrevendo, dando-me confiança para o fazer’ diria ela mais tarde.
As décadas que se seguem assistem à continuação da sua actividade como
escritora, tanto de livros infantis (As Aventuras de Cinco Irmãozinhos, 1931; ‘A
Montanha Maravilhosa’, 1933; ‘A Estrela do Norte’, 1934; ‘Os Brincos de
Cereja’, 1935; e ‘O Vala dos Encantos, 1942), como de romances.
‘Para Além do Amor’ (1935) foi o primeiro que assinou com o nome de
Maria Lamas e onde inscreveu o seu ex libris ‘, desenhado por Júlio de Sousa,
Sempre mais alto’, seguindo-se ‘A Ilha Verde’ (1938), passado em S. Miguel,
nos Açores.
A par desta escrita intensa, de caracter romanesco, onde se entrecruzam o mito do amor
romântico e pinceladas neo-realistas, Maria Lamas trabalhava para sobreviver e educar as filhas.
Mas em 1929, ano em que o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, impulsionado por
Adelaide Cabete, apoiava o ‘Congresso Abolicionista da Prostituição’, ela é convidada, através de
Ferreira de Castro, a ingressar na revista ‘Modas & Bordados, suplemento do jornal ‘O Século’, que
iria dirigir durante 20 anos. A partir desta data, a sua profissão central é o jornalismo orientado
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para a vida das mulheres. Chama colaboradores, cria uma coluna de correio com as leitoras
– o Correio da Tia Filomena - publica notícias, obras e fotografias de mulheres portuguesas
e estrangeiras que escrevem, pintam, cantam, dançam, fazem desporto, ganham prémios,
notabilizam-se como cientistas, artistas, empresárias, modelos e artesãs, propõe e ensina
actividades domésticas de saúde, alimentação, lazer e de educação dos filhos.
Maria Lamas não ficou sozinha neste empreendimento. Aliás, uma das características do seu perfil
de liderança, será sempre a de formar equipas, de alargar o círculo da participação, de aceitar a
experiência e a competência de outros para multiplicar os efeitos. As revistas que criou e dirigiu
estão repletas de colaboradores. Podemos lembrar, nomeadamente, outras escritoras: Adelaide
Bramão, Emília de Sousa e Costa, Sara Beirão, Manuela Porto, Branca de Gonta Colaço ou Berta
Leite. Mas também outras Jornalistas e Directoras de Revistas da época, sobretudo no Porto e
em Lisboa, como Carolina Homem-Cristo, anterior Directora do Modas & Bordados, Maria Amélia
Teixeira (do Portugal Feminino), Olga de Morais Sarmento (do Sociedade Futura), ou Albertina
Paraíso (do Jornal da Mulher).
É ao longo destes anos de direcção da Revista que toma consciência
da pobreza educativa e do sofrimento calado em que muitas
mulheres vivem, do seu estatuto cívico de menores (Salazar só
aprova o decreto que concede o voto às mulheres, desde que
tenham estudos secundários, em 1931), ignorando alternativas,
amarradas a um destino que o fascismo e o catolicismo foram
cristalizando em instituições que definiam claramente a função
social da mulher: organização da casa, educação dos filhos, práticas
de caridade e de assistência social. E é para sacudir as mulheres desse torpor sem esperança
que vai tendo mais e mais iniciativas – revistas, como ‘A Joaninha’, exposições, eventos, como
a ‘Exposição da Obra Feminina’, de caracter científico, literário e artístico, que organiza nas
instalações de ‘O Século’, ou um Ciclo de Conferências sobre ‘As mulheres’, que organiza com
Manuela Porto, Sara Beirão e outras, ou ainda a exposição dos Tapetes de Arraiolos feitos por
mulheres da ‘Cadeia das Mónicas’. Mas a que mais impacto político teve foi a ‘Exposição de Livros
Escritos por Mulheres’, que organizou em 1947, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa,
enquanto presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), cujo catálogo
incluía títulos de escritoras de 28 países da Europa, Ásia e Américas. A exposição terminou com
uma conferência proferida por Maria Lamas, explicando os objectivos da exposição e da instituição
promotora.
Quatro dias depois a o CNMP foi fechado por mandato do governo Civil
de Lisboa, que se justificou: ‘Não precisa de se preocupar com a situação
das mulheres portuguesas. O ‘Estado Novo’ já confiou à ‘Obra das Mães’ o
encargo de as educar e orientar.’
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Mas a sua obra de maior fôlego e que a notabilizou, não só nos meios
académico e literário, mas no meio político, foi ‘As Mulheres do meu País’.
A obra consistiu numa extensa ‘reportagem’ sobre a vida das mulheres portuguesas, publicada
em 24 fascículos pela Editora Actualis (criada por Manuel Fróis de Figueiredo, Orquídea Fróis de
Figueiredo e a própria Maria Lamas) entre 1947 e 1950, data em que aparece em livro.
A sua publicação, ‘nascida da urgência e da ofensa’, como a descreve a sua neta Maria José Lamas
Caeiro no prefácio da obra, foi o culminar de um enorme esforço e determinação para superar,
quer as dificuldades económicas, logísticas e de adaptação cultural que um trabalho etnográfico
de amplitude nacional envolve, mas também a ameaça constante da censura do regime. Alguns
chamaram-lhe ‘jornalismo de iniciativa’, ou ‘jornalismo-reportagem’, aquele que consegue trazer
para a luz do dia as vidas esquecidas ou ocultas daquilo a que hoje chamamos ‘minorias’ – grupos
humanos subordinados, com pouco controlo sobre o seu destino, normalmente ignorados e
estigmatizados pelo grupo dominante na sociedade. Neste caso, as mulheres.
Sempre as mulheres. Em 1949 a Actualis edita os três primeiros volumes de um projecto de
livro, ‘As Quatro Estações’, coordenado por Maria Lamas: a ‘Primavera’, o ‘Verão’ e o ’Outono’
(o ‘Inverno’ não chegará a ser editado). Com a experiência da direcção, durante 20 anos, do
suplemento ‘Modas e Bordados’ do jornal ‘O Século’, este livro tem a marca do projecto de
Maria Lamas: a educação das mulheres através da leitura. “Um bom livro é um companheiro
indispensável na jornada da Vida”, escreve a autora na primeira página. “As ‘Quatro Estações
deseja ser esse companheiro agradável e sincero, ajudando a preencher, com proveito, as
horas em que o espírito procura alargar os seus horizontes, para além da rotina diária, das
responsabilidades e dos cuidados materiais.” Nele encontramos o seu romance autobiográfico ‘O
Despertar de Sílvia: Fragmentos de uma Confissão’, bem como textos de muitas mulheres que
a ela se juntaram neste projecto cívico, como Manuela Porto, Ilse Losa, Emília de Sousa Costa,
Manuela de Azevedo, Maria Elvira Barroso, Graça Brosque, Matilde Rosa Araújo, Maria Lúcia
Namorado, Tereza Águas e Lília da Fonseca. Mas também a colaboração de escritores, ilustradores
e pintores, como Lima de Freitas, Estrela Faria, Fernando Carlos, Maria Keil, Julião Quintinha,
Carlos de Oliveira, Manuel Avelar e Gaspar Santos.
Maria Lamas vai entretanto mudar de rumo e mergulhar na vida política. Mas publica ainda, em
formato de fascículos, o resultado de velhos projectos: ‘A Mulher no Mundo’, editado como livro,
em 2 volumes, em 1952, ‘O Arquipélago da Madeira, Maravilha Atlântica’, em 1956 e ‘O Mundo
dos Deuses e dos Heróis: Mitologia Geral’, em 1961.
Chegamos a Maria Lamas, Mulher lutadora, pelas mulheres, pelos direitos cívicos, contra
o regime da ditadura em Portugal e pela Paz. É durante os anos 40, nomeadamente após a
revitalização do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP) sob a sua presidência,
do impacto público da exposição de ‘Livros escritos por Mulheres’ na Sociedade Nacional de
Belas Artes de Lisboa, do encerramento político do CNMP pelo Governo Civil de Lisboa e da sua
demissão voluntária do jornal ‘O Século’ (´Senhora D. Maria, ou escreve no ‘Século’ ou faz política’,
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disse-lhe angustiado Pereira da Rosa, o Director do Jornal, sob ameaça da censura e de suspensão
do jornal pela polícia política), e ainda do endurecimento da Ditadura após a 2ª Guerra Mundial,
com um progressivo isolamento em relação às democracias europeias, que a sua consciência cívica
e política está fortalecida, inabalável, e dedica a maior parte dos anos que se seguem a defender
as causas da liberdade, dos direitos das mulheres e da paz no mundo. Ela própria recorda, “como o
meu primeiro acto político”, a assinatura das listas para a formação do MUD juvenil, em 1945.
Aceita fazer conferências, escrever artigos em Jornais, adere a
Associações para a paz, nacionais e estrangeiras, representa Portugal
em conferências internacionais, faz crónicas para a ‘Rádio Moscovo’
(sob o pseudónimo de Helena Torres). Em 1946, por exemplo,
representa Portugal, enquanto Presidente do CNMP, no I Congresso
Mundial das Mulheres, que reuniu mulheres da Resistência, ex-detidas
em campos de concentração nazis, como foi o caso de Eugénie Cotton.
Volta a representá-lo em 1948, no II Congresso da ‘Federação Democrática Internacional das
Mulheres´ (FDIM), entretanto criada. Vêmo-la depois, em 1949, quando sai da prisão, ao lado de
outros ex-presos políticos como Pinto Rodrigues, Rui Luís Gomes, Virgínia Moura, José Morgado,
Albertino de Macedo, Pinto Gonçalves e António Areosa Feio, todos signatários de um ‘abaixo-
assinado’ contra a instalação da Base Americana das Lages nos Açores.
Em 1950 faz a Conferência ‘A paz e a vida’ em Lisboa, no Museu João de Deus, e uma outra no
Porto, no 15º aniversário da Associação Feminina para a Paz, onde afirma: ”A batalha da vida é a
batalha da Paz”. É de novo presa meses depois, em 18 de Julho, por sentença do Tribunal, sendo
libertada em Janeiro de 51. Em 1952 participa no Congresso dos Povos para a Paz, em Viena, e em
1953, está de novo a representar Portugal no III Congresso Mundial das Mulheres, em Copenhaga.
Nesse mesmo ano, ao regressar via Paris de uma reunião na União Soviética,
onde fizera uma intervenção, é de novo presa no Aeroporto, com todos os
que a esperavam (excepto a família), sendo depois libertada sob caução
paga por um dos genros. Nos anos que se seguem é frequentemente instada
pela PIDE para responder pelos seus actos políticos: pela sua participação
no Conselho Mundial da Paz, em Ceilão, em 1956, pelo seu encontro com
Mao- Tse-Tung em Pequim nesse mesmo ano, ou pela visita a Hiroshima
bombardeada.
Encontramos, então, Maria Lamas, expatriada, mergulhando no enorme mundo da Diáspora
portuguesa em França, fazendo a experiência da solidariedade social e política em condições de
extremas restrições económicas. Acontece assim: primeiro em 1956, depois da sua visita a
Hiroshima e do seu encontro com Mao-Tsé-Tung, escapa à perseguição da polícia política
refugiando-se em Paris, numa estadia de alguns meses, voltando depois a Portugal para continuar
as suas actividades. Mas em 1962 participa, em Moscovo, na ‘Conferência Internacional para o
Desarmamento Geral’, o que comprometeu definitivamente a sua segurança em Portugal. No
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regresso ao país a decisão está tomada: exilar-se-á em Paris, onde colaborará com outros
expatriados na luta contra a Ditadura de Salazar. Aí viveu no Quartier Latin, Rue Cujas, no Grand
Hotel Saint Michel onde a visitei em 1967 e 1968, com o meu marida Gonçalo Monteiro.
Descobrimos aí uma avó de 74 anos, a viver num pequeno quarto do hotel, onde preparava
refeições simples e onde recebia ininterruptamente membros das oposições ao regime - do grupo
de Argel aos membros do Partido Comunista na clandestinidade e aos desertores das guerras de
África - jovens emigrados ao desamparo, amigos de Lisboa e pessoas sozinhas a precisar de uma
palavra. Lembro-me de ver entrar Jorge Reis, António José Saraiva, Maria Nobre Franco, José
Carlos Ferreira de Almeida, João Freire, a Miriam e a Teresa Rita Lopes, Helena Pato e Mário
Neves, Eugénia Pereira de Moura e Helena Neves. Procuravam ajuda, mas também lhe escreviam
cartas e lhe traziam notícias, coisas suas, como presentes: livros, pintura, gravura, desenho,
escultura, fotografias, roupa, alimentos. Passavam, ficavam, partiam. Iam passear com ela para o
Jardim do Luxemburgo. Às centenas. Era a ‘Avó Maria´. Que continuava a trabalhar nos intervalos
nos seus projectos, na sua correspondência e nas suas traduções, na pequena mesa que tinha no
quarto, dedilhando a máquina de escrever com estojo verde, qua ainda hoje guardo comigo.
Quem não leu, por exemplo, a sua belíssima tradução de ´As Memórias de Adriano’, de Marguerite
Yourcenar? Nós ficávamos também no Hotel. Tínhamos ido frequentar, através da ‘Pragma,
Associação Cultural’ que a PIDE viria a encerrar algum tempo depois, primeiro um curso de
formação em Animação Cultural, e no ano seguinte uma formação em Dinâmica de Grupos, ambos
promovidos para sindicalistas da CFDT. Mas nos intervalos saíamos com a Avó, esfomeados de
bons filmes, de teatro, jornais e livros a que não podíamos ter acesso em Portugal: Bunuel,
Bergman, Nicholas Ray, Fellini, Jean Cocteau, Elia Kazan, Fritz Lang, Murnau, Claudel, Genet. Foi
um deslumbramento que a companhia da Avó enriquecia com reflexões e comentários, de tal
modo que a sua idade não era um peso, mas uma energia e uma boa surpresa.
Em Paris, Maria Lamas continuou a sua actividade política. Em 1963,
estava na Mesa da Presidência do V Congresso Mundial das Mulheres,
em Moscovo, que reuniu 1400 delegadas de todo o mundo. Ao seu
lado, estavam Dolores Ibarrurri, a Passionária, Eugénie Cotton, Marie
Claude Couturier, heroína da resistência francesa, Gusta Fuchikova,
resistente checoslovaca e Valentina Teereskova, primeira mulher
cosmonauta a viajar no Cosmos.
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Mas a sua presença na Diáspora portuguesa em Paris ficou também marcada por inúmeros
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testemunhos de uma sua actividade mais silenciosa: a do apoio a outros portugueses, emigrantes
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ou, como ela, refugiados políticos. Deixamos aqui o testemunho de uma outra mulher (1) sobre
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o tseu encontro com Maria Lamas: “O meu contacto mais estreito com Maria Lamas remonta ao
Outono de 1957, em Paris. Já na minha qualidade de funcionária do Partido Comunista Português
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no desempenho de uma tarefa, rumei a França, onde nunca havia estado, com a minha filha de 8
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meses. Levava apenas a indicação de procurar Maria Lamas no velhinho Hotel Saint-Michel (em
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Paris), ponto obrigatório de encontro dos intelectuais progressistas portugueses, e pedir-lhe que
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me pusesse em contacto com um camarada. Porque era inconveniente, na situação em que me
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encontrava, ficar muito tempo no hotel, frequentemente ‘visitado’ pela polícia, os camaradas
franceses resolveram o problema da minha instalação num apartamento desabitado, no último
andar de um velho prédio no Boulevard Saint Germain. Aí fiquei 3 semanas. Foi-me recomendado
que saísse à rua o menos possível, apenas o estritamente necessário para resolver problemas de
alimentação.
Eram tempos difíceis, esses que então se viviam em França. Estava-se em plena guerra da Argélia,
o povo argelino lutava pela sua independência. O ambiente em Paris era de cortar à faca. (…)
Durante as três semanas que aí permaneci, invariavelmente ao entardecer Maria Lamas batia-me
à porta. Chegava calma, um sorriso aberto no rosto, uma palavra amiga, nas mãos um jornal, uma
revista, um doce, uma flor. (…) Seguiam-se, ao crepúsculo, longas conversas, palavras cheias de
confiança, de esperança. De uma discrição absoluta, jamais me perguntou o que fazia ali, com os
meus 23 anos e uma filha de meses nos braços…
Um dia perguntei-lhe porque chegava sempre ao entardecer. Razões haveria, certamente.
Olhando-me nos olhos, tomando entre as suas as minhas mãos, disse, com serenidade e voz
calma: Venho a esta hora porque sei, por experiência, que é ao entardecer que nós, mulheres,
somos assaltadas por pensamentos mais tristes e não quero que te sintas só. Era assim, também,
Maria Lamas, a combatente anti-fascista, batalhadora e corajosa, a da solidariedade activa, a da
palavra amiga e do gesto carinhoso no momento certo.”
De regresso a Portugal em 1969, na ‘abertura’ da Primavera Marcelista, espera-a ainda muita
actividade. O seu entusiamo com a Revolução de Abril, em 1974, trouxe-a para a rua, a desfilar no
1º de Maio ao lado da multidão. E uma das actividades mais importantes foi o seu papel central,
de novo em favor das mulheres portuguesas, na criação do Movimento Democrático de Mulheres,
de que foi eleita Presidente Honorária em 1975. A sua posição de Directora da revista ‘Mulheres’
criada pelo Movimento em 1978 representou, antes de mais, para Maria Lamas, o regresso à
imprensa feminina, onde a sua vida profissional começara.
Aos anos que se seguem chamei ‘Maria Lamas, uma Memória’. A
par das suas intensas relações com os amigos de toda a vida, que
a visitavam em Évora ou em Lisboa, em casa das filhas, sucedeu-
se um sem número de apelos à sua presença nos mais variados
eventos: conferências, visita a escolas, a fábricas, reuniões com
escritores, artistas, entrevistas na rádio, na televisão, em jornais.
De tal modo que se tornou difícil situá-la. Vivera? Vivia? Iria chegar ela mesma, em pessoa? Já não
estava connosco?
Em 1974 Maria Lamas e Elina Guimarães foram homenageadas no programa da RTP ‘Nome-
Mulher’, dirigido pelas jornalistas Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa.
Em 1982 o MDM organizou em Lisboa uma exposição evocadora da vida e obra de Maria Lamas,
que ela visita, enquanto emocionadamente revisita a sua própria vida enquanto memória de
outros. E o concelho de Torres Novas emite, nesse ano, uma medalha em sua homenagem com a
sua efígie.
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Maria Lamas morreu em Lisboa em 1983, alguns dias depois de completar 90 anos.
Medalhas, evocações, nomes de ruas e de escolas, tapeçarias, desenhos, quadros e placas
comemorativas multiplicam a sua memória: das Mulheres Democratas do Barreiro, da Sociedade
Cooperativa Piedense, da Voz do Operário, do Coral Phydellius de Torres Novas, da Escola
Preparatória de Maria Lamas, no Porto, de muitas mais.
Em 1993, a Biblioteca Nacional de Lisboa comemorou o centenário do seu nascimento com uma
grande exposição do seu espólio literário e pessoal.
Em 2003 foi editada a sua primeira Biografia, escrita por Maria Antónia
Fiadeiro, e em 2004 o MDM organizou no Porto o Congresso ‘A memória,
a obra e o pensamento de Maria Lamas ‘, cujas intervenções foram
posteriormente editadas no livro com o mesmo título, coordenado por
Regina Marques. O reconhecimento cruza-se com a nossa memória
da vida e trabalho de Maria Lamas. Reconhecimento também feito
de gestos públicos: a medalha da Ordem da Liberdade, em 1980, que
recebe pela mão do Presidente da República, General Ramalho Eanes; a
primeira ‘Medalha de Honra’ do MDM, em 1982; e a ‘Medalha Eugénie
Cotton’, em 1983, da Federação Democrática Internacional de Mulheres.
Evocar Maria Lamas neste contexto é para mim motivo de profunda comoção, mas também de
honra, pela saudade que guardo da minha avó Maria, do seu nobre coração de mulher, da sua
profunda empatia com o sofrimento dos outros, do seu valente afrontamento do poder ilegítimo,
do seu feminismo que uniu homens e mulheres no mesmo abraço, da sua insaciedade em busca
do amor. Nesta revista de evocação das mulheres portuguesas da Diáspora, junto-me convosco,
como membro da comunidade científica e como parte dessa ‘metade da humanidade’ que nós,
mulheres, constituímos. E não sei qual dessas pertenças, que não consigo separar, me ditou mais
as palavras que aqui lhe dedico. Não importa. O registo de universalidade em que Maria Lamas
inscreveu a sua vida e o seu trabalho farão dela, seguramente, uma mulher sem tempo e sem
pertenças.
Lisboa, Novembro de 2012
( 1) Depoimento de Maria da Piedade Morgadinho na obra “A memória, a obra e o pensamento de Maria
Lamas” (pp. 137-138). Editado em 2004, em Lisboa, pelas Edições Colibri, com a coordenação de Regina
Marques.
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