È difícil saber se as coisas inesperadas são frequentemente maravilhosas por serem excecionais
ou simplesmente por serem inesperadas. Seja como for, este texto é sem dúvida um caso de algo
inesperado e maravilhoso. Numa manhã ensolarada, O Professor Donald Warrin e eu saímos de
Berkeley devidamente equipados para gravar as histórias orais do Casal Câmara (José e Joanne)
residentes em Hayward Califórnia, ambos com longos anos de voluntariado em prol de diversas
organizações Portuguesas tanto fraternais como culturais. Sabíamos de antemão que Joanne era
uma historiadora por natureza, aliás foi Joanne Câmara que compilou as edições editadas por
duas Sociedades Fraternais Portuguesas da Califórnia (a UPEC e a UPPEC) na ocasião dos seus
respetivos Centenários. Assim, um dos nossos objetivos era no âmbito da entrevista indagar
sobre o processo de investigação e as fontes consultadas para as referidas compilações. No
entanto, quando casualmente Joanne nos informa que acabara de reunir e traduzir um grupo de
cartas que encontrara na casa de seus pais quando se dedicava a penosa tarefa de a preparar para
ser vendida após o falecimento de sua mãe, a nossa curiosidade foi quase incontrolável. Mas
nada nos podia preparar para o que estava prestes a chegar as nossas mãos. Uma vez terminada a
entrevista, Joanne foi buscar a compilação dizendo-nos: “vou buscar a Maria Inácia. Encontrei as
cartas que ela escrevia dos Açores para os seus filhos (meu pai e meus tios) residentes na
Califórnia, estavam numa caixa muito bonita, daquelas decoradas com flores em estilo Vitoriano,
fiquei muito emocionada quando as li, e resolvi traduzi-las para que os meus netos pudessem ter
conhecimento dos sentimentos mais íntimos da sua trisavó.” Esta pequena frase teve um efeito
quase estonteante, especialmente pensando toda esta dinâmica dentro de uma perspetiva de
construção de identidade feminina, em que uma mulher desenterra e traz à luz os pensamentos e
preocupações de uma das suas antepassadas, reconstrói as suas palavras através do processo de
tradução e projeta-a para o futuro para as gerações vindouras.
Para além de todo o inerente valor histórico e social das cartas em questão, este processo
de renascimento de Maria Inácia pelas mãos da sua neta Joanne, que por sua vez pretende
transmitir essa voz aos seus netos, e que efetivamente une cinco gerações, é extremamente
simbólica a diversos níveis.
Num texto que publicamos previamente, defendemos que tal como declara o filósofo
John Searle no seu emblemático texto The Construction of Social Reality (A Contrução da
Realidade Social) cada sociedade constrói uma rede de dogmas que servirão de parâmetros de
identidade vem a ser incorporados e propagados por cada membro da sociedade em questão,
eventualmente construindo-se em “realidade” ou “verdade” social e cultural. Também nesse
mesmo texto, e ainda de acordo com o trabalho de Searle, desta vez desenvolvido no texto
Expressions and Meaning - Study in the Theory of Speech Acts (Expressão e Significado –
Estudos no Âmbito da Teoria de Enunciação) que desenvolve o poder de construção das palavras
e por extensão da escrita, e estabelece uma relação entre o acto elocutório e o texto literário, ou
seja a escrita. Esta relação acaba por ser um dos centros de debate no texto Gender Trouble de
Judith Butler, no qual a autora defende que “a linguagem tem o poder de criar «realidade social»
através de locuções de agentes enunciadores” Assim, se Maria Inácia se auto constrói através das
cartas que escreve, Joanne Câmara constrói-se a si própria apropriando-se da voz de sua avó e
reconstruindo-a pelo processo da compilação e tradução. É pois precisamente esta cadeia de
construção que representa um dos elementos a ter em consideração durante a leitura do texto que
aqui apresentamos.
Obviamente, o teor histórico e social, tanto da Ilha Terceira nos Açores, como da
Califórnia, é outra faceta de grande interesse para historiadores e sociólogos pois poucos
testemunhos deste tipo, especialmente com o nível crítico e analítico das cartas em que a sua
autora agilmente tece conselhos maternais, pensamentos íntimos, eventos históricos e relações ou
coscuvilhices comunitárias, chegam aos nossos dias. Como tal, as cartas aqui compiladas
representam documentos únicos e preciosos para todos aqueles interessados em temas histórico-
sociais. As cartas escritas entre 1908 e 1919 são importantíssimas pois durante este período
tanto Europa como Os Estados Unidos e especificamente a Califórnia, atravessavam momentos
conturbados como o Colapso da Monarquia e início da Primeira Republica em Portugal, a Primeira
Guerra Mundial, Aumento da comunidade Portuguesa da Califórnia e subsequente decréscimo e
desenvolvimento e ainda inúmeras Alterações nas leis de emigração dos Estados Unidos principalmente
a lei da literacia que exigia que todos os emigrantes maiores de 16 anos que entrassem os Estados
Unidos, tinha que ser letrados na sua língua materna.
Finalmente, as cartas em questão são reveladoras do grande amor que unia Maria Inácia e
seus filhos, todos emigrados para a Califórnia, longe da vista, mas definitivamente nunca longe
do coração. Afinal, é esse o legado que Joanne quer passar a seus netos o amor que une cinco
gerações de uma família, quebrando todss as limitações de tempo e espaço, e que tal como as
cartas de Maria Inácia, atravessa mais de um século e cruza um oceano e um continente.
Efetivamente, esta publicação subverte todos os limites, pois inserem tanto avó como neta na
esfera da eternidade.
A leitura das cartas leva-nos à intimidade da família Vaz ou mais precisamente:
Maria Ignacia Cotta Menezes Vaz
Manuel Vaz (filho de Maria Ignacia)
Evaristo Vaz (filho de Maria Ignacia)
Jose Vaz (filho de Maria Ignacia)
Ezequiel Vaz (filho de Maria Ignacia)
Augusto Vaz (filho de Maria Ignacia)
Assim como o núcleo familiar da irmã de Maria Ignacia ou seja Francisco, Adelaide e Clemente
Lemos.
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