domingo, 7 de dezembro de 2014

Intervenção de MM Aguiar em Berkeley -Abril de 2014

BERKELEY Abril 2014


1 - Até 1974, as revoluções portuguesas não “revolucionaram” nunca as políticas de emigração – nem sequer, verdadeiramente as reformaram. Há uma linha de continuidade multissecular na forma de olhar o fenómeno migratório, que já vem do antecedente, do período de colonização de possessões ultramarinas, das ilhas do Atlântico à Africa, do Oriente ao Brasil… A distinção entre esses dois períodos é, aliás, difícil de fazer, quando se olham os projectos individuais no quadro do projecto estatal, como salienta Joel Serrão e, de um modo geral, os estudiosos deste passado longo.
O êxodo ininterrupto para o Brasil, que foi o grande palco onde se deu a transição entre colonização e emigração bem o comprova – era ainda colónia ou Reino unido, e já atraía, incessantemente, mais voluntários do que a Coroa estimava como bastantes. E, por isso, as políticas de emigração visaram, fundamentalmente, limitar as partidas – ou mesmo
proibi-la – sobretudo as das mulheres, a s migrações de grupo, de família. Preocupações demográficas, financeiras, uma visão economicista das migrações, e, consequentemente, uma mesma ideia do interesse público, sobrepuseram-se, sempre, aos direitos individuais.
A Revolução de 1910 não veio alterar nem estas correntes de pensamento dominante, nem a ordem jurídica, e a “praxis” vigente
O primeiro gesto revolucionário é, assim, a imposição da liberdade de emigrar, expressamente consagrada na Constituição de 1976. Com ela, o cidadão passou a ocupar o centro da decisão, a ser sujeito de novas políticas personalistas.

2 - A abertura de fronteiras não foi o único ímpeto libertário de Abril – seguiu-se o reconhecimento nas leis da República do princípio da igualdade de todos os cidadãos portugueses, não só no rectângulo continental e nas ilhas atlânticas, mas no imenso espaço da emigração portuguesa. O Estado assumiu, consequentemente, o seu dever de protecção dos nacionais, onde quer que estivessem. A democracia era, pela primeira vez, concebida à dimensão nacional, e seria aprofundada na transição do "paradigma territorialista" para o
"paradigma personalista", focalizado na pessoa, nos seus direitos individuais, num verdadeiro “estatuto do expatriados” em constante aperfeiçoamento, a nível interno e, também, a nível internacional, através de novas convenções e acordos multilaterais. O direito dos expatriados baseia-se na sua pertença a uma comunidade demarcada, não apenas por linhas de fronteira geográficas, mas pelos sentimentos de identidade nacional. Representa o encontro do Estado com a Nação. É uma via aberta à procura de formas de inclusão dos expatriados na vida do país. Não é contudo, um processo acabado, nem no nosso, nem em outros países de emigração.

3 - Subsistem múltiplas restrições, nomeadamente no campo da participação política: a Constituição e as leis limitam o número de representantes dos círculos de emigração na Assembleia da República: o voto na eleição do Presidente da República foi negado até 1997,   e ainda o é nas eleições autárquicas e autonómicas. Também em matéria de direitos à prestações sociais se pode referir a inexistência de pensões mínimas, cujo sucedâneo é um esquema de atribuição de reduzidos subsídios em casos de pobreza extrema – o “apoio social a idosos carenciados”, ASIC). E até no que respeita ao acesso dos filhos dos emigrantes ao ensino da língua e da cultura, que é incumbência constitucional do Estado, desde a revisão de 1982, a desigualdade subsiste, por imperfeito cumprimento desse dever pelos governos, embora mais numas comunidades do que noutras (com as mais distantes, fora da Europa, a ficarem dependentes da sua própria iniciativa

3 – No ímpeto libertário da revolução se desfez, no imediato, a política colonialista, a visão decadente e anacrónica de um Portugal do Minho a Timor, do mesmo passo que se revelava à “inteligentzia” nacional, aos políticos e à sociedade civil, a dimensão humanista da presença portuguesa universal, através da emigração e da diáspora – uma dimensão que andava esquecida e que se devia, integralmente, às pessoas, não ao Estado ou aos regimes.
As comunidades portuguesas, com as suas próprias e poderosas organizações – que se tinham substituído ao Estado ausente, no plano social e cultural - impuseram-se como parceiras obrigatórias da execução das novas políticas, incluindo as que se dirigiam aos portugueses, na defesa de direitos individuais. As políticas de protecção das pessoas, de informação, os projectos culturais, passaram, frequentemente, por elas.
O Conselho das Comunidades Portuguesas, uma câmara de audição de representantes das associações e do jornalismo em todo o mundo, veio, a partir da década de 80, dar forma oficial a esse diálogo entre os governos e as comunidades orgânicas.

4 – Nem sempre foi fácil o entendimento, o acordo, ou a satisfação das reivindicações expressas no CCP ou fora dele.. O que não aconteceu logo nos momentos primordiais de arrebatamento colectivo, no auge da Revolução, caiu, depois, no andamento gradual e, quantas vezes hesitante, do reformismo. E por isso, no que respeita aos direitos dos emigrados, às políticas que se dirigiam aos seus problemas específicos, ao aparelho burocrático, que lhes deu sustentáculo, podemos falar de lenta evolução, com alguns retrocessos de permeio. Mesmo quando havia consenso nas grandes linhas de actuação concertadas com as comunidades, os meios eram escassos…
 São estas 4 décadas de reformismo, no domínio das migrações que a AEMM propõe a debate. ao longo deste ano de 2014, num ciclo de colóquios, iniciado em Lisboa, no Palácio das Necessidades  com uma motivadora intervenção do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. O cicço prossegue, aqui, integrado nas comemorações  da Revolução promovidas na Universidade de Berkeley. Seguir-se-ão colóquios e mesas redondas na Universidade Aberta de Lisboa, na Sorbonne, no Arquivo Municipal de Gaia, e na Universidade de Toronto – as duas últimas especialmente voltadas para as migrações de retorno de África

5 - Dos movimentos migratórios registados nos últimos 50 anos em Portugal, podemos dizer que constituíram as maiores vagas de saída e retorno jamais vistos numa história pontuada por ciclos infindáveis de partidas em massa, mas nunca de regressos tão vultosos. Estes movimentos condicionaram decisivamente as prioridades políticas dos Executivos, apesar de só um deles se ligar, directamente, à Revolução – o retorno de Africa, que trouxe de volta mais de 800.000 portugueses, em circunstâncias dramáticas, desapossados de todos os seus bens e psicologicamente abatidos pelo infortúnio. “De jure” não eram emigrantes nem refugiados, todavia enfrentavam dificuldades análogas no seu esforço de reinserção
A crise económica europeia e geral pusera abruptamente termo ao êxodo que, entre 1950 e 1973, envolvera quase dois milhões de portuguesas. Muito deles preparavam o regresso ou já o tinham concluído, de uma forma voluntária, discreta, bem sucedida – os primeiros estudos realizados por equipas de investigadores universitários, sobre o censo de 1980, surpreenderam o país, quando foram divulgados, em 1984 – mais de 500.000 já estavam de volta, outros tantos viriam, previsivelmente, até final do século.
Em 1974, só o Brasil abriu, de forma incondicional, o seu território aos retornados de Africa. Algumas dezenas de milhares ficaram na Africa do Sul, alguns centenas dispersos por outros continentes. A Europa apenas permitia entradas para reagrupamento familiar, beneficiando, com isso, maioritariamente a imigração feminina. Escassas oportunidades surgiram no Médio Oriente, num país europeu, que foi excepção à regra, a Suiça, a partir de 80 – e pouco mais,

6 – As acções desenvolvidas no pós 25 de Abril, foram, naturalmente, dirigidas a ajuda aos emigrantes, cuja situação precária era conhecia – na Europa, sobretudo – e de apoio aos movimentos de regresso.
Foi criada, em 1974 a Secretaria de Estado da Emigração, - que iria estendendo a sua rede de delegações no estrangeiro (núcleos de assistentes sociais, de animadores culturais, professores de português, enviados pelo Ministério da Educação). No país reforçou, gradualmente, as suas estruturas, a Direcção-Geral, o Instituto de Emigração, dotado de autonomia administrativa e financeira. Foram recrutados e a formados técnicos altamente especializados – um património humano que lhe permitiu actuar utilmente, mesmo quando os orçamentos para acções eram reduzidos. Ao associativismo continuaria a caber um papel de primeiro plano, aspecto social e cultural
De sucesso se pode, certamente falar, principalmente, nas políticas de apoio ao regresso, a dos recém-chegados de Africa (a cargo da “Secretaria de Estado dos Retornados”) e da emigração., Nenhum país, em circunstâncias, de algum modo, semelhantes, conseguiu resultados comparáveis. Portugal perdera, na década anterior, quase dois milhões de pessoas. Como foi possível reabsorver, em época de tremenda crise económica, um número equivalente nos anos seguintes? Uma das respostas estará, seguramente, no diferente perfil de quem partiu e de quem veio, das circunstâncias em que veio e do lugar que escolheu para viver…E, numa boa parte, também, no acerto das políticas…Políticas de incentivo ao investimento no interior. Muitos retornados de África, como a maioria dos emigrantes não escolheram para residir as grandes cidades, mas as suas terras de origem, onde os laços familiares e a solidariedade de vizinhos eram facilitadores da integração. Áreas que os emigrantes haviam despovoado e que, então, repovoavam, com outros meios de subsistência, reformas, capitais, projectos de negócios… De Africa, os portugueses traziam experiência de vida, de empreendimento e a vontade de recomeçar.
Instrumentos muito concretos, como isenções fiscais e alfandegárias, as contas de poupança crédito, empréstimos a juro bonificado foram bem utilizadas pelos emigrantes, como o foram as verbas adiantadas para projectos de investimento dos retornados da descolonização – em larga medida financiados por um Fundo especial concedido pelo governo dos EUA.

7 – Estabilizados os desmesurados fluxos migratórias, melhor conhecida a realidade da vida das comunidades portuguesas e dos cerca de 5 milhões de concidadãos dispersos pelo universo, o olhar dos governantes, a partir da década de oitenta, sem prejuízo da atenção dada às questões do regresso e ao processo de adesão à CEE – dirige-se, também, para outros continentes, para a emigração mais antiga, para a Diáspora, com um acento nas políticas culturais. O CCP pretendia ser um elo de ligação cultural das diásporas, embora, nos seus trabalhos, a componente social da emigração recente e a vertente política e mais conflitual, introduzidas pela representação da Europa, tenham tido sempre maior visibilidade mediática,
A década de 90 foi dominada pelo discurso oficial do fim da emigração e do início da imigração (cujo anúncio era, aliás, prematuro…) e marcada pela extinção dos serviços autónomos da Emigração, que foram anexados pela Direcção Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas. E também pelo fim do CCP, cujas reuniões plenárias cessaram em 1988. Em 1996 O Conselho seria recriado, num novo modelo, com eleição por sufrágio directo e universal de portugueses de passaporte – excluindo os lusos descendentes, o círculo mais lato da Diáspora lusófona.
O maior equilíbrio no relacionamento do Estado com as comunidades de dentro e fora da Europa não foi, porém, prejudicado, beneficiando com a criação da RTPI, em 1990 - o maior investimento jamais feito na aproximação ao mundo disperso da lusofonia, que uma melhoria da qualidade da programação poderá potenciar enormemente.

8. No início do século XXI, Portugal tornara-se, de facto, um país de imigração, com a chegada em massa de europeus de leste, após a queda do muro de Berlim, e de brasileiros. Todavia, não deixara de ser definitivamente terra de emigração…Um novo ciclo se desenha, um novo êxodo já comparável ao dos anos sessenta… Fala-se de nova emigração muito qualificada, de “brain drain” , de uma forte componente feminina… Na verdade, partem todos os que podem partir…A principal característica desta nova vaga é a  maior heterogeneidade e dispersão geográfica. Predominam os que vão como trabalhadores temporários, com o antigo perfil – sexo masculino, baixas qualificações. Mas pela primeira vez, há muitos profissionais altamente qualificados, e é sobretudo neste grupo que se encontram mulheres a emigrar autonomamente.
A Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas perdeu muitos dos meios humanos e materiais de intervenção de que laboriosamente se havia dotado na primeira década pós revolução, mas mantém a tradição de convívio e audição das pessoas sedimentada ao longo de 40 anos. e a estratégia de mobilização através da cooperação com o movimento associativo, em particular no que respeita aos mais jovens, aos potencialmente mais intervenientes, às mulheres – de que vai, em seguida, falar, detalhadamente a Profª Graça Guedes.
Esta tem sido uma inteligente prática comum a sucessivos Secretários de Estado no novo século – e, com ela se tem minimizado a insuficiência de recursos destinados à emigração (no caso da Secretaria de Estado, mas, mais globalmente, de todo o Governo, pois se trata, como é obvio, de um domínio que toca todos os sectores da administração pública)  

9 – Houve, neste século, progressos assinaláveis, sobretudo, no domínio legislativo: a recuperação automática da nacionalidade, com efeitos retroactivos, processa que se arrastava desde a aprovação da chamada Lei da dupla nacionalidade, em 1981; a votação de todos os recenseados no estrangeiro na eleição presidencial: o alargamento do estatuto de igualdade de direitos entre portugueses e brasileiros: a votação nas eleições para o Parlamento Europeu, dos cidadãos residentes fora das fronteiras da EU.
De mencionar, também, como medidas positivas: a extensão da rede do ensino de português fora da Europa, que cabe agora nas competências do Instituto Camões (integrado no Ministério dos Negócios Estrangeiros); a informatização dos serviços consulares; a multiplicação das permanências consulares, com que se procura combater o encerramento de alguns postos e a impossibilidade de instalar consulados em comunidades distantes; a reforma do CCP, em apreciação na Assembleia da República

10 – Olhamos o passado e vemos um povo que, ciclicamente, se evade de um pequeno território para todos os continente do globo, levando consigo e a língua e a presença pátria (ou mátria, como diria Natália Correia). Nenhuma revolução alterou esta realidade. O que o regime democrático trouxe de novo, desde 1974, foi, por um lado, a liberdade de assim ser, sem a vã oposição do Estado, e, por outro o reconhecimento dos laços de cidadania, e da existência e força das comunidades extra territoriais.
Olhamos prospectivamente as próximas décadas em Portugal e vemos um país que é o 6º ou o 7º mais envelhecido do planeta, fatalmente dependente da emigração e da imigração para sobreviver. Só com muitos jovens estrangeiros, numa sociedade aberta e multicultural, só com o eventual regresso dos jovens portugueses se pode pensar a sustentabilidade demográfica,
 O futuro de Portugal passa essencialmente por políticas económicas, sociais e culturais que incentivem os movimentos de regresso e de uma imigração, de sinal mais, em crescendo, de uma emigração, em decréscimo, e de diáspora e lusofonia em imparável expansão.


Maria Manuela Aguiar



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