Associação ‘Mulher Migrante’
Mesa Redonda: “Quatro décadas de migrações em liberdade”
(1974-2014)
MNE - Palácio das Necessidades , Lisboa
26 de Março de 2014
Título - Maria Lamas: Migrações para a liberdade
Autora: Maria Benedicta Vassalo Pereira Bastos Monteiro
40 anos de migrações em liberdade é um título que por si só nos
convoca para o antes e para o depois do dia 25 de Abril: para o modo como
muitos portugueses se envolveram na defesa dessa liberdade tão longamente
negada, como para o modo como a conquista da liberdade se traduziu nos
múltiplos quotidianos da Democracia.
Defendo hoje a ideia de que as mulheres do nosso país, apesar do enorme
caminho andado desde que Portugal se tornou numa Democracia, em
1974, continuam a precisar de mais atenção, de mais cuidados, de mais
respeito. Ou seja, continuam a merecer uma tradução mais sólida e
persistente das regras formais da Democracia em formas que as
libertem de todas as velhas servidões do passado.
Merecem mais atenção, mais cuidado e mais respeito. Por parte de nós,
cidadãos. Por parte das instituições de governo da nação. Muitas vezes por
parte delas próprias.
Assim, lembrarei aqui como Maria Lamas, essa mulher torrejana (Torres
Novas, 6 de Outubro de 1893) dedicou a sua vida, que inicialmente parecia
burguesamente pacata, a grandes causas do mundo – a paz mundial
ameaçada, a liberdade política e a educação das mulheres. Para o fazer,
cedo teve que se incluir no grupo das mulheres migrantes, e como elas foi
primeiro vigiada e perseguida no seu país, nomeadamente desde 1945, e
depois empurrada para outras paragens, até poder reentrar em 1970 num
Portugal já Marcelista, quebrado por uma guerra colonial sem fim à vista,
empobrecido e ignorante.
Agradeço o convite da Associação Mulher Migrante, e espero poder contribuir
para o que Maria Lamas esperaria também hoje se aqui estivesse: celebrar os
40 anos da revolução de Abril, celebrar 40 anos de liberdade cívica e política.
E com essa celebração tomar consciência da situação actual das Mulheres,
como primeiro passo para querer intervir nela, para de novo criar as
condições para a mudança necessária.
Foi a isso que dedicou a sua vida.
1. A educação das mulheres
A preocupação com a educação das mulheres chegou muito cedo na vida de
Maria da Conceição Vassallo e Silva, vinda da sua própria experiência como
jovem mulher apaixonada aos 17 anos, casada, divorciada e separada em dois
casamentos em pouco mais de 10 anos, sem armas para afrontar a vida, sem
uma formação profissional e com três filhas a seu cargo.
Essa preocupação veio também das suas intensas leituras, onde pôde saber
que noutras partes do mundo muitas mulheres estudavam, trabalhavam,
votavam, ganhavam a sua autonomia e o respeito da sociedade: ‘Procurava
nos livros o que as pessoas com quem vivia me não diziam da vida’ (Lamas, M.,
1949, O despertar de Sílvia; in As Quatro Estações, vol.1, p. 18).
E veio finalmente da fase inicial da sua vida profissional, como jornalista e
como editora. Aí proliferam os contactos e colaboração com Escritores,
Editoras e Jornalistas, que alargaram as suas oportunidades de afirmação,
como escritora e como militante cívica e política: ‘O jornalismo foi a minha
grande escola. Foi ele que me fez tomar consciência da possibilidade de me
exprimir escrevendo, dando-me confiança para o fazer’ diria Maria Lamas
O seu trabalho para a educação das mulheres, para a maternidade, para a
profissionalização e o respeito por si próprias, e ainda para a intervenção
activa na vida cívica e política, traduziu-se progressivamente em reuniões,
organização de exposições, escrita de livros e de artigos em jornais e revistas,
convites a mulheres portuguesas e estrangeiras para exporem os seus
De que falamos concretamente? Falamos de romances autobiográficos, como
‘O Caminho Luminoso’, (1927) , ‘Para Além do Amor’ (1935) ou a ‘A Ilha
Verde’ (1938), onde se entrecruzam o mito do amor romântico com
pinceladas neo-realistas, em que a figura central da mulher é retratada de
forma polémica, buscando amores virginais e simultaneamente afrontando
relações amorosas difíceis e heterodoxas: ‘...entre o sonho mais puro e a
realidade mais cruel’. (Ferreira, E. M., 2004, Cartas de Maria Lamas a Eugénio
Ferreira, pp. 30-31. Porto, Companhia das Letras).
Falamos da direcção, durante 20 anos, da revista ‘Modas & Bordados’,
suplemento do jornal ‘O Século’. Neste período, entre 1929 e 1947, a sua
profissão central é o jornalismo orientado para a vida e a educação das
Durante este longo período desenvolve a sua maturidade profissional e
cívica: cerca-se de colaboradores, cria uma coluna de correio com as leitoras,
publica notícias, obras e fotografias de mulheres portuguesas e estrangeiras
que se notabilizam como escritoras, cientistas, artistas, empresárias, modelos
e artesãs, propõe e ensina actividades culturais e desportivas, a par de
actividades domésticas de saúde, alimentação, moda, lazer e de educação dos
É ao longo destes anos de direcção da Revista que toma consciência da
pobreza física e educativa e do sofrimento calado em que muitas mulheres
vivem, do seu estatuto cívico de menores (o decreto que concede o voto às
mulheres, desde que tenham estudos secundários, só é aprovado por Salazar
em 1931), ignorando alternativas, amarradas a um destino que uma forte
simbiose entre o fascismo e o catolicismo foram cristalizando em instituições,
como a ‘Obra das Mães’, ou a Mocidade Portuguesa Feminina; e onde a função
social da mulheres se fechava no círculo da organização da casa, da educação
dos filhos, e eventualmente de práticas de caridade e de assistência social.
É para sacudir as mulheres desse torpor sem esperança que multiplica os
contactos e as iniciativas: cria novas revistas para crianças e jovens, como ‘A
Joaninha’, organiza exposições e eventos, de carácter científico, literário e
artístico, como o Ciclo de Conferências sobre ‘As mulheres’, que organiza com
Manuela Porto, Sara Beirão e outras, ou a exposição dos Tapetes de Arraiolos
feitos por mulheres da ‘Cadeia das Mónicas’.
No rescaldo da II Guerra Mundial e do desenvolvimento na Europa de
movimentos femininos de reconhecimento do papel das Mulheres na
resistência ao domínio dos países do Eixo, uma iniciativa de Maria Lamas viria
a adquirir um significado e um impacto que mudou a sua trajectória
profissional e a envolveu necessariamente na resistência ao fascismo em
Portugal. Tratou-se da ‘Exposição de Livros Escritos por Mulheres’, que
organizou em 1947, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa,
enquanto presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP),
cujo catálogo incluía mais de 2000 títulos de escritoras de 28 países da
Europa, Ásia e Américas. A exposição abriu no dia 4 de Janeiro, com uma
conferência proferida por Maria Lamas, explicando os objectivos da exposição
e do conselho a que presidia.
O encerramento da actividade do CNMP pelo Governo Civil de Lisboa, na
sequência desta exposição, constituiu o ponto de ruptura de
Maria Lamas com a Censura política pela ameaça directa à
sua liberdade profissional. Mas foi também o ponto de
partida para a sua obra de maior fôlego e que a notabilizou,
não só nos meios académico e literário, mas no meio político:
‘As Mulheres do meu País’.
A publicação de ‘As Mulheres do meu País’, ‘nascida da urgência e da ofensa’,
foi o culminar de um enorme esforço e determinação para superar, quer as
dificuldades económicas resultantes da sua saída forçada de Directora da
Revista ‘Modas e Bordados: Vida Feminina’ do jornal ‘O Século’, quer os
recursos logísticos e de adaptação cultural que aquele trabalho etnográfico de
amplitude nacional envolvia, quer a a ameaça constante da censura do regime.
Alguns chamaram-lhe ‘jornalismo de iniciativa’, ou ‘jornalismo-reportagem’, o
jornalismo que consegue trazer para a luz do dia as vidas invisíveis ou ocultas
das ‘minorias’ – grupos humanos subordinados, com pouco controlo sobre o
seu destino - normalmente ignoradas e estigmatizadas pelo grupo dominante
na sociedade. Neste caso, as mulheres.
O grande empreendimento em que se tornou a publicação de ‘As Mulheres do
meu País’ exigiu de Maria Lamas que se tornasse uma migrante no seu
próprio país. Percorreu todos os seus distritos, continentais e insulares, não
em busca dos protótipos de figuras femininas e de festas folclóricas que então
o regime divulgava como símbolo do nacionalismo florescente, mas
procurando registar os múltiplos quotidianos das Mulheres, nomeadamente
no trabalho rural e urbano. O texto e as fotografias com que Maria Lamas
registou o que ouviu e observou ao longo de 2 anos, (muitas das fotografias
são hoje consideradas obras relevantes e representativas do neo-realismo
português), vistos hoje, à distância de 70 anos, tornam mais saliente a sua
figura determinada, consciente da responsabilidade de representar as
Mulheres portuguesas, e de com elas enfrentar a ideologia da mulher
doméstica, humilde e resignada que o regime impunha.
2. A paz mundial e a liberdade política. Chegamos então a Maria Lamas,
Mulher lutadora, pelas mulheres, pelos direitos cívicos, contra o regime da
ditadura e pela Paz. E também, de novo, mulher migrante.
Maria Lamas torna-se consciente do progressivo isolamento de Portugal em
relação às democracias europeias, e dedica a maior parte dos anos a partir
do pós-guerra a defender as causas da liberdade política, dos direitos
das mulheres e da paz no mundo.
Aceita fazer conferências, escrever artigos em Jornais, adere a Associações
para a paz, nacionais e estrangeiras, representa Portugal em conferências
internacionais, faz crónicas para a ‘Rádio Moscovo’ (sob o pseudónimo de
Helena Torres).
Em 1946, por exemplo, representa Portugal, enquanto Presidente do CNMP,
no I Congresso Mundial das Mulheres, que reuniu mulheres da Resistência, ex-
detidas em campos de concentração nazis, como foi o caso de Eugénie Cotton.
Volta a representar Portugal em 1948, no II Congresso da ‘Federação
Democrática Internacional das Mulheres´ (FDIM), entretanto criada. Vêmo-la
depois, em 1949, quando sai da prisão, ao lado de outros ex-presos políticos
como Pinto Rodrigues, Rui Luís Gomes, Virgínia Moura, José Morgado,
Albertino de Macedo, Pinto Gonçalves e António Areosa Feio, todos
signatários de um ‘abaixo-assinado’ contra a instalação da Base Americana
das Lages nos Açores.
Em 1950 faz a Conferência ‘A paz e a vida’ em Lisboa, no Museu João de Deus,
e uma outra no Porto, no 15º aniversário da Associação Feminina para a Paz,
onde afirma: ‘A batalha da vida é a batalha da Paz’. É de novo presa meses
depois, em 18 de Julho, por sentença do Tribunal, sendo libertada em Janeiro
Em 1952 participa no Congresso dos Povos para a Paz, em Viena, e em 1953,
está de novo a representar Portugal no III Congresso Mundial das Mulheres
Em 1962 participa, em Moscovo, na ‘Conferência sobre Desarmamento Geral’,
o que comprometeu definitivamente a sua segurança em Portugal. No
regresso ao país, face à ameaça de prisão política pela PIDE, a decisão está
tomada: exilar-se-á em Paris, onde colaborará com outros expatriados na luta
contra a Ditadura.
1968 , À porta do G. Hotel
Saint-Michel, Rue Cujas,
Paris, com Mª Benedicta
(neta) e João Pinto
Aí viveu, mulher migrante no Quartier Latin, Rue
Cujas, no Grand Hotel Saint Michel onde recebia
ininterruptamente membros das oposições ao regime
- do grupo de Argel aos membros do Partido
Comunista na clandestinidade e aos desertores das
guerras coloniais de Portugal em África - jovens
emigrados ao desamparo, amigos de Lisboa e pessoas
sozinhas a precisar de uma palavra.
Lembro-me de ver entrar Jorge Reis, António José Saraiva, Maria Nobre
Franco, José Carlos Ferreira de Almeida, João Freire, a Miriam e a Teresa Rita
Lopes, Helena Pato e Mário Neves, Eugénia Pereira de Moura, Helena Neves e
Maria Antónia Palla. Procuravam ajuda, mas também lhe escreviam cartas e
lhe traziam notícias, coisas suas, como presentes: livros, pintura, gravura
desenho, escultura, fotografias, roupa, alimentos. Passavam, ficavam, partiam.
Às centenas. Iam passear com ela para o Jardim do Luxemburgo. Era a ‘Avó
Maria´. Que continuava a trabalhar nos intervalos nos seus projectos, na sua
correspondência e nas suas traduções, na pequena mesa que tinha no quarto,
dedilhando a máquina de escrever com estojo verde, qua ainda hoje guardo
comigo. Quem não leu, por exemplo, a sua belíssima tradução de ´As Memórias
de Adriano’, de Marguerite Yourcenar?
Nós ficávamos também no Hotel. Em 1967 tínhamos ido frequentar, através
da Pragma, Associação Cultural, em Lisboa (que a PIDE viria a encerrar algum
tempo depois), primeiro um curso de formação em Animação Cultural, e no
ano seguinte, em pleno Junho quente de 1968, uma formação em Dinâmica de
Grupos, ambos promovidos para sindicalistas da CFDT. Mas nos intervalos
saíamos com a Avó Maria Lamas, esfomeados de bons filmes, de teatro, jornais
e livros a que não podíamos ter acesso em Portugal: Bunuel, Bergman,
Nicholas Ray, Fellini, Jean Cocteau, Elia Kazan, Fritz Lang, Murnau, Claudel,
Genet. Foi um deslumbramento que a companhia da Avó Maria Lamas
enriquecia com reflexões e comentários, de tal modo que os seus 75 anos não
era um peso, mas uma energia inesgotável e que sempre nos surpreendia.
Em Paris, Maria Lamas continuou a sua actividade política. Em 1963, estava
na Mesa da Presidência do V Congresso Mundial das Mulheres, em Moscovo,
que reuniu 1400 delegadas de todo o mundo. Ao seu lado, estavam Dolores
Ibarrurri, a Passionária, Eugénie Cotton, Marie Claude Couturier, heroína da
resistência francesa, Gusta Fuchikova, resistente checoslovaca e Valentina
Teereskova, primeira mulher cosmonauta a viajar no Cosmos.
De regresso a Portugal em 1969, na ‘abertura’ da Primavera Marcelista,
espera-a muita actividade, e é ainda antes da Revolução que é homenageada
por outras mulheres em Portugal. Em 1973 tem 80 anos.
O seu entusiasmo com a Revolução de Abril, em 1974,
trouxe-a para a rua, a desfilar no 1º de Maio ao lado da
multidão. E uma das actividades mais importantes foi
o seu papel central, de novo em favor das mulheres
portuguesas, na criação do Movimento Democrático
de Mulheres, de que foi eleita Presidente Honorária
em 1975.
A sua posição de Directora da revista ‘Mulheres’ criada pelo Movimento em
1978 representou, antes de mais, para Maria Lamas, o regresso à imprensa
feminina, onde a sua vida profissional começara, na defesa da educação das
Mulheres, da liberdade política e da paz mundial.
Maria Lamas morre em Lisboa em Dezembro de 1983, dois meses depois de
completar 90 anos.
Nesta dia de evocação de 40 anos de democracia e de migrações em liberdade,
relembrar Maria Lamas, Uma Escritora Portuguesa em Luta pelas
Mulheres do seu país, quero deixar esta mensagem de que é preciso e
urgente, como ela, não baixar os braços, mas continuar a levantar a voz, a
estudar velhos e novos problemas - como o das trajectórias e trabalhos das
mulheres das novas migrações. É preciso ir de novo ver como vivem e pensam
as mulheres e os homens do nosso país.
Um trabalho já começado em dissertações de Mestrado, Teses de
Doutoramento, levantamentos estatísticos sistemáticos das condições de vida
dos portugueses, que espera pela nossa colaboração.
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