Este encontro tem como linhas condutoras "As expressões femininas da cidadania " e " 20 anos num mundo sem fronteiras". Ambas encaixam perfeitamente na nossa grande escritora, do início do séc. XX, Maria Archer que, infelizmente, é ainda tão pouco conhecida dos que têm menos de 40 anos hoje. Maria Archer (1899-1982) exprimiu, como nenhuma outra na sua época, a mulher portuguesa de então não apenas nas suas vertentes social, cultural, como também pessoal e, atrever-me-ia a dizer, até intimista, pois não se limita a ser uma narradora observadora mas muitas vezes é omnisciente. Conhece e mostra o íntimo, os desejos, medos e lutas das suas heroínas, cativando o público que aderia ao ponto de levar, na década de 30, muitos dos seus romances, à terceira edição. No entanto, a sua paixão pela escrita talvez demasiado "moderna" para a época também lhe granjeara inimizades ao ponto de ver dois dos seus livros apreendidos pela censura (Ida e Volta de Uma Caixa de Cigarros e Casa sem pão). Mas não foi só a sua obra que foi diversificada escrevendo romances, contos, peças de teatro, literatura infantil, literatura colonial e fazendo traduções. Também a sua vida o foi. Viajou na infância com os pais por um mundo sem fronteiras (Ilha de Moçambique, Guiné e Angola) que nos deu a conhecer nos seus escritos e em 1955 partiu para o Brasil donde só regressou em 1979. Maria Archer é uma mulher da Diáspora e uma mulher que participou ativamente na vida literária e social da sua época. Digo isto pois, para além das cerca de trinta obras que nos deixou, Maria Archer foi também, ao longo de toda a sua vida ativa, jornalista e foi como jornalista que mostrou também a vida da mulher portuguesa no mundo e ao mundo, primeiro em Portugal e depois no Brasil, onde escreveu também para diversos jornais.
Recordo-me agora de uma página que vem mesmo a calhar para este encontro. Intitulava-se a mesma "A Portuguesa no mundo" e era uma página assinada por Maria Archer no jornal Humanidade nos anos 37, 38 onde chegou a dar conselhos a uma senhora que tinha viajado para África, sobre como educar as suas filhas que se viram forçadas a ir para um longínquo lugar de África longe da civilização, mostrando o mérito que o trabalho tem na vida de qualquer um, mostrando-lhe que não se preocupasse com a chita que as filhas vestiam quando o mais importante era vesti-las «com uma couraça moral que lhes sirva de esteio pela vida fora», mostrando-lhes também o amor pela leitura sobretudo de viagens. Também no jornal Sol fala do mundo sem fronteiras quando escreve, na Rubrica Eu e Elas, uma carta aberta ao Ministro da Economia pedindo-lhe que interceda com firmeza na moda que pretende ser importada de Paris dessa época, que era semelhante à de décadas passadas. Falava então com receio de voltar «às saias compridas, ombros estreitos e cabelos longos» que Paris defendia e que ela considerava que levaria os nossos burgueses à falência. Maria Archer mostrou e modelou a vida da mulher na sua época e daí a sua importância na nossa literatura e sociedade do início do séc. XX. Soube sair da sua casa e da vida que vivera para conhecer o mundo, primeiro português, depois africano e finalmente brasileiro, ultrapassando sempre as limitações que na época se impunham à mulher, daí esta merecida homenagem que hoje mais uma vez lhe prestamos.
Termino com duas citações: uma da página do seu diário no jornal Sol de 1948 (11-9):
«Mas eu sou mulher. Fui criada em casa, em regime de gineceu, para o lar, muito em convívio com frivolidades, trapos, mundanidades e vaidades. Cheguei à maturidade sem ter uma generosa ideia de interesse geral. (…) Milagre foi que eu conseguisse passar do estado de ser sensível, comum à mulher portuguesa, para o de ser sensível e consciente, capaz de pensar e de agir sob o impulso do pensamento controlado pelo coração. (…) O sentimento de liberdade mantenho-o mesmo perante aqueles a quem me alio.»
E outra, também do jornal Sol (8-10-49), sobre os homens e a posição da mulher na sociedade, em resposta a Artur Portela:
«Pelo direito da força o homem apossou-se dos postos directivos da orgânica social e da riqueza económica. Talhou a História com a sua vontade e relegou a mulher para o panorama dos segundos planos, quase integrada na paisagem.
Nós, mulheres, vivemos sob a égide das leis criadas pelos homens, da História saída das suas guerras e feitos, da sociologia e costumes que ideou e consentiu. Nós, mulheres, vivemos economicamente sujeitas ao pai e ao marido, economicamente relegadas para um segundo plano de salários.
Mas entendamo-nos: não sou inimiga dos homens – sou inimiga dos privilégios dos homens. (…) Só admito o homem como rei da criação- quando eu for rainha.»
Dina Botelho (out. 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário