Expressões
Femininas de Cidadania: As Portuguesas no Recife
Gabinete
Português de Leitura em Recife, 18/11/13
“Serviço
de Apoio à Mulher Wilma Lessa (SAMWL): Um exemplo de Atendimento a Mulheres
Vítimas de Violência”, Berta Fernanda de Souza Guedes Santana, psicóloga,
vice-presidente da ‘Folia das Deusas”, organizadora do evento.
Boa
noite a todos!
Cumprimento
o nosso anfitrião, o Dr. Celso Stamford Gaspar, Presidente em exercício do
Gabinete Português de Leitura, a quem agradeço a cessão do espaço e todo o
apoio da sua equipe.
Cumprimento
as Presidentes da Direção e da Assembléia Geral, Dra. Rita Gomes e Dra. Manuela
Aguiar, da Associação de Estudos, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante, a
quem agradeço por nos confiarem a organização deste evento, o que muito nos
honrou.
Cumprimento
o Vice-Cônsul de Portugal no Brasil, Dr. Adriano Moutinho, a quem agradeço todo
o apoio e incentivo que nos deu.
Cumprimento
todas as palestrantes e o palestrante, agradecida por aceitarem o convite para
falar neste encontro.
Senhoras
e Senhores!
Sou
portuguesa nascida em Lisboa, cidade que adoro, de alma lusa e nordestina de
coração. Filha de português, do Porto, da Foz do Douro, e de brasileira, de
Recife (sou, portanto, resultado do encontro de 3 rios – Tejo, Douro e
Capibaribe – todos deságuam no oceano Atlântico, oceano que aqui me trouxe, fazendo-me
lembrar Fernando Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Meus avós
maternos, que alguns aqui neste salão com certeza conheceram, eram de Trás-os-
Montes: Berta e João de Souza, um dos sócios fundadores do Clube Português,
sócio benfeitor do Real Hospital Português, reconhecidos anfitriões, sempre
prontos a acolher os seus conterrâneos, como tantos outros de seu tempo. Vim
para Recife às vésperas de completar 12 anos e aqui estudei, formei-me e
comecei minha vida profissional, sem maiores dificuldades por ser esta a terra
natal da minha mãe, cidade onde passei muitas férias e que tão bem me acolheu.
Como
fonoaudióloga e psicóloga, trilhei caminhos ou naveguei por águas que sempre me
levaram para as minorias ou os menos favorecidos: desde os beneficiários do
INSS[i],
deficientes físicos e mentais na APAE[ii],
usuários de álcool e outras drogas quando estive na coordenação clínica do
CAPSad[iii]
Professor Luiz Cerqueira e, atualmente, trabalhando, como psicóloga, com
acolhimento, apoio e acompanhamento a mulheres vítimas de violência no Serviço
de Apoio à Mulher Wilma Lessa[iv],
e é desta experiência que falarei.
Violência
contra as mulheres, alguns podem estar se perguntando porquê o tema num
encontro como este?
Além
da relevância do assunto, estamos antecipando em uma semana o dia internacional
para a eliminação da violência contra a mulher, que é o dia 25/11, e que no ano
passado recebeu a seguinte mensagem do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon:
“Milhões de mulheres e meninas em todo o mundo são agredidas,
espancadas, estupradas, mutiladas ou até mesmo assassinadas, atos que
constituem violações atrozes dos direitos humanos. Do campo de batalha para a
casa, nas ruas, na escola, no local de trabalho ou na sua comunidade, cerca de
70% das mulheres sofrem de violência física ou sexual em algum momento de sua
vida. Um quarto de todas as mulheres grávidas é afetado.”[v]
Portanto,
infelizmente, violência contra a mulher é um flagelo mundial, uma prática que
atravessa os anos e com características muito semelhantes em países cultural e
geograficamente distintos, mais e menos desenvolvidos, de tal ordem, que a ONU
criou em 2010 uma entidade – a ONU Mulheres - para promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres em
todo o mundo.
Em
2003, a Organização Mundial da Saúde considerou que a violência doméstica “é um
grave problema de saúde pública e que as conseqüências que lhe estão associadas
são devastadoras para a saúde e para o bem–estar de quem a sofre, comprometendo
o desenvolvimento da criança, da família, da comunidade e da sociedade em geral”[vi],
representando enormes gastos para os cofres públicos.
Segundo
o Conselho da Europa, a violência contra as mulheres no espaço doméstico é a
maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos,
ultrapassando o câncer, acidentes de viação e até a guerra.[vii]
Estes dados internacionais cruzados com outros disponíveis em Portugal sugerem
que, semanalmente, morrem mais de cinco mulheres por razões direta e
indiretamente relacionadas aos atos de violência doméstica.
Estudos
de 2002 e 2003 indicam que, em Portugal, cerca de 1/3 das mulheres com 18 anos
ou mais são vítimas de violência e que o custo médio com a saúde por mulher
vítima de violência doméstica é de cerca de 140€ por ano, sendo que desse valor
127€ /ano são suportados pelo Serviço Nacional de Saúde, o equivalente a 91%
dos custos.[viii]
Comparando com os dados internacionais, verificamos que, com uma
taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, o Brasil ocupa a 7ª posição e
Portugal a 72ª, no contexto dos 84 países, estados-membros da ONU, com dados atualizados
na OMS entre 2006 e 2010.[ix]
No
Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA)[x], ocorrem, em média, 5.664
mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, o que corresponde a 15,52
mortes por dia, ou seja, um óbito a cada hora e meia.
O
Mapa da Violência contra a mulher de 2012, baseado em dados do SINAM[xi]
(Sistema de Informação de Notificação de Agravos à Saúde da Mulher) sinaliza que
uma mulher é agredida a cada
5 minutos no Brasil, que a região
Nordeste (entre 2009 e 2011) lidera o ranking com a maior taxa de feminicídios
do País: 6,9 mortes violentas por cada 100 mil mulheres. Esse mesmo mapa indica
que Pernambuco ocupa a 10ª posição entre os estados da federação e que Recife é
a 6ª capital do país em número de mulheres mortas em conseqüência de violência.
Tanto
Portugal quanto o Brasil tem vindo a desenvolver políticas continuadas e
serviços que visam dirimir ou amenizar as conseqüências que a violência provoca
na vida das mulheres bem como promovendo ações preventivas.
No
Brasil muito vem sendo feito neste sentido e, atualmente, com uma mulher na
presidência, mas também desde a criação, ainda no governo Lula, da Secretaria de
Políticas para a Mulher, com status de Ministério, esperamos que as políticas
nesta área sigam avançando. A nossa realidade estadual e municipal acompanha
esse quadro nacional, com inúmeras iniciativas, que perpassam várias
secretarias, em ações inter-setoriais, como muito bem já falaram a Secretária
estadual, Dra. Cristina Buarque[xii]
e a Secretária Municipal, Dra. Sílvia Cordeiro[xiii].
Todos
nós, de uma forma ou de outra, já nos deparamos com alguma situação desta
natureza e é nosso dever, enquanto cidadãs e cidadãos (pois falo também para os
homens) contribuir para transformar esta realidade tão sofrida.
Trago
o exemplo de uma iniciativa pioneira implantada no Hospital Agamenon Magalhães[xiv],
que é um equipamento público, estadual onde existe uma ilha de excelência no
atendimento às mulheres vítimas de violência. Este serviço chamado Serviço de
Apoio à Mulher Jornalista Wilma Lessa, mulher que muito lutou pela causa
feminista, foi inaugurado em 2001 num espaço diferenciado e reservado do
hospital e funciona em regime de plantão, 24h, de 2ª a 2ª, inclusive feriados.
É constituído por uma equipe multiprofissional da qual fazem parte médicos,
enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, equipe que integro desde 2006.
Esta
equipe é responsável por acolher a mulher vítima, prestar-lhe os primeiros
socorros, examiná-la do ponto de vista tanto clínico quanto biopsicossocial,
estabelecer e aplicar a conduta médica obedecendo o protocolo adequado ao tipo
de violência sofrida.
É
realizado o acolhimento e prestada a assistência psicológica não só no 1º
atendimento, mas durante o período em que a paciente apresente sintomas de
estresse pós-traumático, ajudando-a na recuperação da sua auto-estima e na
reconstrução do seu projeto de vida.
O
serviço acompanha esta paciente durante o tempo necessário ao seu
restabelecimento e promove também a conversa com os outros organismos e
instituições envolvidas para que a paciente tenha toda a atenção e cuidados
pertinentes, cuidados estes que envolvem desde esclarecimentos sobre a Lei Mª
da Penha e seus encaminhamentos (a lei que tipifica a violência doméstica como
crime), ao aborto previsto por lei (que se aplica aos casos em que a gestação é
fruto de um estupro), passando por toda a conduta de prevenção e profilaxia
para DST/AIDS bem como a realização da cadeia de custódia.
Eis
alguns números do serviço neste ano de 2013, contabilizados até Setembro:
Nº
de atendimentos de novos casos: 512 (257 vítimas de violência sexual, 224 vítimas
de violência física, 29 vítimas de ambas as violências e 2 sofreram ameaças)
Nº
de retornos ao serviço: 677
Nº
de casos encaminhados para o Programa de Aborto Legal: 8
Nº
de casos em Programa Pré-Natal no serviço: 17
Nº
de casos de reincidência: 9 (4 vítimas de violência sexual, 4 vítimas de
violência física e 1 vítima de ambas as violências).
Há um soneto de Florbela Espanca que muito me lembra o sofrimento das mulheres que diariamente nos procuram no serviço, por falar de um vazio, de um desamparo, de um sentimento de não-pertencimento que é tão comum a estas mulheres:
Lágrimas ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca[xv]
Finalizo
citando novamente o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon:
“A violência contra as mulheres não pode ser tolerada, de
nenhuma forma, em nenhum contexto, em nenhuma circunstância, por nenhum líder
político nem por nenhum governo.” [xvi]
Queria
situar que foi destas experiências de trabalho que surgiu a idéia de criar uma
associação que cuidasse das mulheres, mas de outra perspectiva, com foco nos seus
direitos de cidadã, na sua saúde e educação, autonomia financeira,
criatividade, enfim, visando o tão necessário e desejado empoderamento. Em
conversas com amigas e colaboradores concluímos que por meio de um bloco de
Carnaval, instituição enraizada na nossa cultura, poderíamos chamar a atenção
da sociedade para essas questões e, assim, nasceu “Folia das Deusas”,
associação que organizou este evento.
Por
fim, peço às portuguesas e luso-descendentes que não fizeram parte desta mesa
que não se sintam desprestigiadas e sim estimuladas a participar da próxima
edição, contribuindo com as suas experiências.
Não
queria encerrar sem antes agradecer à jornalista Geórgia Alves pela divulgação
e articulação, e à Sra. Fernanda Dias pelo patrocínio da Casa do Frios, ao Sr.
Manuel Tavares do Conselho da
Comunidade Portuguesa de Pernambuco e ao Real Hospital Português também
pelo patrocínio.
Muito
obrigada pela atenção de todos!
[i] Instituto Nacional do Seguro Social, órgão do Governo Federal
responsável pela Seguridade Social no Brasil, cuja missão é “garantir proteção
ao trabalhador e sua família, por meio de sistema público de política
previdenciária solidária, inclusiva e sustentável, com o objetivo de promover o
bem-estar social.”
[ii] Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, associação sem fins
lucrativos que tem por missão educar, prestar atendimento médico,
suprir as necessidades básicas de sobrevivência e lutar por direitos dos portadoras de deficiências mentais, na perspectiva da inclusão social.
[iii] CAPSad Professor Luiz Cerqueira, Centro de Apoio Psicossocial para
usuários de Álcool e Outras Drogas localizado no Distrito Sanitário I em
Recife. O CAPS é um serviço de saúde aberto e comunitário do SUS (Sistema Único
de Saúde), local de referência e tratamento para pessoas que sofrem com
transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e persistentes e demais quadros
que justifiquem sua permanência num dispositivo de atenção diária,
personalizado e promotor da vida.
[iv] Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa é uma unidade de serviço que
atende mulheres vítimas de violência de gênero no Hospital Agamenon Magalhães,
hospital público estadual, de grande porte, localizado na cidade do Recife.
[v] Ban Ki Moon, Secretário Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), mensagem proferida em 25 de novembro de 2012, no Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher..
[vi] II Plano Nacional
Contra a Violência Doméstica em Portugal, Diário da República Nº154 de
07.06.2003.
[vii] II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica em Portugal, Diário
da República Nº154 de 07.06.2003.
[viii] LISBOA, Manuel e BARROS, Pedro Pita. “Custos Sociais e Econômicos
da Violência Exercida Contra as Mulheres em Portugal: dinâmicas e processos
socioculturais”. Universidade Nova de Lisboa.
[ix] WHOSIS, CENSUS, IBGE
[x] IPEA: Instituto Brasileiro de Pesquisa Aplicada é uma fundação pública federal vinculada à Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Suas atividades de pesquisa
fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a
formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento
brasileiros.
[xi] SINAM:
O Sistema de Informação de Agravos de
Notificação - Sinan é alimentado, principalmente, pela notificação e
investigação de casos de doenças e agravos que constam da lista nacional de
doenças de notificação compulsória (Portaria GM/MS Nº 104,
DE 25 DE JANEIRO DE 2011.
[xii] Cristina Maria Buarque é
feminista e ocupa, desde janeiro de 2007, o cargo de Secretária da Mulher do
Governo do Estado de Pernambuco. Sua experiência no campo do feminismo e da
defesa dos direitos das mulheres é reconhecida pelos movimentos sociais de
mulheres urbanas e rurais, nos âmbitos nacional e internacional. Formada em
Ciências Econômicas, Cristina Buarque fez mestrado em Ciência Política e,
atualmente, é doutoranda em Sociologia. Antes de ocupar o cargo de Secretária
de Estado, Cristina, que também é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco,
idealizou a Rede Mulher & Democracia cujo principal objetivo é promover a
inserção das mulheres nos espaços de poder. Além disso, é presidenta do Conselho
Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim-PE), coordenadora dos fóruns Regional e
Estadual de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres e membro do
Fórum Nacional de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres.
[xiii] Sílvia Cordeiro, atual secretária da Mulher da Prefeitura Municipal
da Cidade do Recife
é médica sanitarista e feminista. Fundadora e ex-coordenadora do Centro das
Mulheres do Cabo, integrou a Rede Mulher e Democracia, iniciativa de lideranças
do movimento de mulheres e feminista do Nordeste que tem o objetivo de
fortalecer e ampliar a participação e representação política das mulheres .
Participou também do Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social do
Governo do Estado. Há 30 anos, tem atuação destacada junto aos grupos de
mulheres populares em diversas categorias.
[xiv] Hospital Agamenon Magalhães é um dos mais
importantes suportes ao SUS em Pernambuco, hospital público estadual, de grande
porte, credenciado como hospital de ensino, localizado na cidade do Recife. Atende mais de 10 mil pacientes nas emergências e
mais de 7 mil pacientes no ambulatório de especialidades por mês.
[xv] Florbela Espanca (1894-1930), poetisa portuguesa nascida em Vila Viçosa, no Alentejo. Florbela
viveu durante trinta e seis anos, teve uma vida tumultuada e cheia de
sofrimentos, que eram transformados em poesias, cheias de erotização e
feminilidade.
[xvi] Ban Ki Moon é atual Secretário-Geral das Nações Unidas. Campanha do
Secretário-Geral das Nações Unidas “Una-se pelo Fim da Violência Contra as
Mulheres” América Latina.
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