Entrevista a Constância Néry por Ricardo Varela Pinto de Sá, aluno do 8º ano da Escola Básica
e Secundária Domingos Capela no Encontro em Espinho
1-A construção das caravelas, para serem apresentadas no serão cultural,
realizado na Escola Básica e Secundária Domingos Capela, sobre o tema
"Camões" e a sua obra emblemática «Os Lusíadas», obedeceu a um
projeto com base numa memória descritiva. Poderemos saber se algumas das suas
obras aqui apresentadas obedeceram a esta dinâmica ou nasceram de forma
espontânea?
Começo por citar o mundialmente
famoso analista de Arte Anatole Jakovsky, que justifica o fato de a arte naïf
resgatar a criança que está esquecida dentro do ser humano:“ … A pintura de uma
criança não é obra de arte, não passa de divertimento, enquanto que para o
pintor naïf trata-se do objetivo de suas vidas. Abolem o tempo e remontam às
fontes, a esses paraísos infantis perdidos e, afinal reencontrados…” As minhas obras são criadas e produzidas
no estilo Naïf, também conhecida como Arte espontânea, ínsita, ingênua. A
expressão espontânea define melhor uma arte que não obedece a critérios
determinados pelas academias, mas aplica a emoção e a sagacidade na elaboração
da obra, a beleza e o encanto na composição de cores, conta sempre uma história
a partir do desenho e usa o olhar da alma na escolha dos temas. O meu processo de criação passa pela planificação do trabalho, com requintes
nos detalhes, nas informações, nas intenções. Direi que há imensas etapas neste
processo criativo, onde os artistas que bebem na fonte naïf, por exemplo, Matisse,
Picasso e outros se inspiram e se aproximam de vários estilos: impressionismo,
surrealismo, cubismo, expressionismo. A arte naïf regista formas elaboradas em
alguns artistas e formas brüit
noutros.
2- O que a inspira ou inspirou nos
países onde esteve como emigrante (pessoas, locais)?
O que me
inspira: os casarios históricos, antigas esculturas nos logradouros públicos.
Objetos de arte ou utilitárias. Gente, especialmente. Costumes de raiz, da
terra, o jeito de ser do povo. Em Portugal, adoro a primavera, quando chega o
tempo em que o sol transpassa as folhas e os troncos das árvores, com uma inexplicável
luz que chega por todos os lados e mesmo assim nos dá a luz e a sombra. É
diferente da luz do sol do Brasil, ou então parece diferente por ser tão rara.
A música me inspira muito, especialmente José Zeca Afonso, em Portugal, as
ladainhas, os pregões das feiras e mercados.
3 - Até
que ponto poderíamos dizer que há, no país onde esteve, uma arte no feminino em
oposição a uma arte no masculino? Ou há uma relação entre género e
expressão artística?
Desconfio
desses movimentos do feminino e do masculino. Acho que já está fora de tempo. Temos
que estar sempre vigilantes, é claro. Mas eu sou uma “dona do meu espaço no
feminino, onde quem quiser pode também entrar” e adoro somar, interagir, sempre
respeitando o meu ser e o outro. Sei que tropeço nos preconceitos, se pudesse
pisava neles.
Por outro
lado, na vida social, não sou anarquista, sou até meio burguesa. Já basta a
minha arte que não obedece a regras nem instituições.
Sei que
há mulheres que sofrem essa divisão, especialmente as de classe desfavorecida
por terem pouco poder económico e fracos conhecimentos. Acho que devemos dar a
nossa expressão feminina sem confrontos com a masculina, sempre que possível. Juntar
sim, separar não. Faço parte de um grupo de 80 artistas do elenco do meu
marchand, há mais de trinta anos. Sou uma das primeiras contratadas por ele e,
no grupo, há muitos homens, muitas mulheres. Todos somos respeitados, tanto na
expressão como no valor dos quadros. Convivemos bem com a igualdade e com o
direito de oportunidades. Não creio que Tarsila do Amaral e Di Cavalcante e
Portinari tenham sofrido por culpa do masculino-feminino, durante a Semana de
Arte Moderna no Brasil.
Acho que
quando a cidadania, a responsabilidade, a generosidade estão presentes, aliadas
com o saber, com o conhecimento, tudo fica mais claro e mais fácil fica a
convivência.
4- Para uma artista plástica em comunidade estrangeira, como absorveu a
nova cultura do país onde vive e como é que a interligou com a sua cultura de
origem?
Cheguei
em 2008, em plena crise; moro na cidade do Porto, onde sou convidada para
muitos movimentos de arte. Sou sempre bem recebida e não me posso queixar. No
Brasil, eu já tinha um histórico, um grupo de pertença e ainda o tenho. Percebo
e estranho os veteranos portugueses a fazerem exposições sem retorno de vendas.
Outros a fazer suas Fundações. Preciso de um tempo para poder responder melhor,
mas vejo um povo que, ou não teve o
costume de consumir arte, ou não está a fazer aquisição de arte por conta da
crise. No Brasil, quem não pode enfrentar o preço de um quadro, compra e paga
em prestações, como é o caso dos intelectuais, dos professores, jornalistas.
5- Quais as barreiras que encontrou enquanto mulher- preconceito e enquanto
criativa - liberdade?
Eu,
pessoalmente, nenhum, nos dois sentidos, caminho normal, sem problemas.
Eu falo
como uma portuguesa, já me confundem, pois eu sou assim mesmo, se converso com
russo de manhã, à tarde já estou inserida no sotaque. Há uma situação de
barreira que tive que enfrentar, mas foi temporária, ou seja, o meu marchand
pediu para não pintar igrejas, por que não conseguia vender para os judeus. Depois
da minha mudança para Portugal, alguns colegas brasileiros começaram a implicar
comigo, por que eu estava a pintar os “meus” adorados azulejos. Pedi que eles,
os meus colegas pintores implicantes, espichassem o olhar pelo interior de
Minas Gerais e do Recife, da Bahia e de Parati. Pintei um quadro cheio de
azulejos e dei o título: “Onde estou: em São Paulo, Rio, Parati ou em Lisboa,
Porto, Viana do Castelo?”
6- Pensando no percurso, será
que teríamos maior êxito ou maiores oportunidades
se estivéssemos nos respetivos países de origem
Não
acredito que seja uma questão de local, mas sim da qualificação profissional de
cada um e da qualidade de ensino, de educação do país que hospeda. Não adianta
estar no país de origem se ele não está propício. Como também não adianta
esperar melhores oportunidades, sem qualificação profissional e num país em mau
estado.
7- O que ganharam, neste particular domínio, as mulheres migrantes na sua
itinerância por vários universos culturais?
Depende
muito do projeto de vida. O grande Ariano Suassuna, antropólogo, dramaturgo,
historiador, escultor, pintor, escritor, advogado e poeta, conhecido no mundo
inteiro, cria e tem a grande energia a seu favor por que vive no Brasil, sorve
o Brasil, idolatra o Brasil e toda a sua obra é criada e produzida no seu
pequeno local onde nasceu, casou e viveu com a mesma mulher, mais de setenta
anos; e lá continua, cheio de vida e de sucesso, sem crise, não acredita na
crise. A felicidade está onde ele está. Nunca viaja. Para o exterior. Mas penso
que sempre é uma mais-valia, para o processo de criação e produção, conhecer
novos mapas.
8- Que importância acha que devemos atribuir às Artes como formas de
intervenção e afirmação cívica e humana?
Temporariamente
está um pouco enfraquecido, mas não morreu, esse sentimento que, na composição
da carne e do espírito, se instala no espírito do ser.
Esse
sentimento é uma essência que corre no sangue puro da veia paralela e que o ser
humano necessita dele para alimentar a alma. Essa essência é a ilusão que nos
sustenta e nos dá a cegueira necessária e generosa, para que possamos suportar
a outra veia, onde corre o sangue das dificuldades, do desamor, da falta de
paixão e ausência do mistério. Na veia de sangue puro, podemos garantir a morada
para as Artes, o saber, o conhecimento, os Artistas e todos os seres bons,
sejam doutores ou não.
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