6º Painel: Contributos
Culturais de Expressão Feminina – Artes”
Comunicações
de Aida Batista (Escritora); Ana Maria (Pintora); Thais Mattarazzo (Jornalista)
– Brasil; Ana Maria Cabrera (Escritora) – Argentina e Balbina Mendes (Pintora);
Moderadora – Manuela Bairos (MNE)
Há alguns anos assisti a uma sessão sobre igualdade de
género organizada com o objectivo de sensibilizar as mulheres portuguesas para
a necessidade de maior participação política em que era oradora a maestrina
Joana Carneiro. Com a afabilidade que lhe é característica, a Joana relatou a
sua participação num workshop para jovens maestros organizado por um país de
tradição germânica. A sua presença feminina não deixou de causar surpresa e
curiosidade entre os participantes porventura todos homens jovens. Um deles não
terá conseguido esconder a sua perplexidade: uma mulher reger Beethoven? admito
que sim... Mozart? ainda... mas Wagner?
O mundo feminino tem sido definido em função dos padrões
tradicionais de divisão de ocupações entre homens e mulheres. Assim continua,
com algumas bolsas de excepção em certos países “ocidentais”, que procuraram
activamente quebrar com esses padrões. As Artes são por natureza um domínio em
que impera a criavidade, a descoberta, a ruptura e até a rebeldia. Assim, será
de esperar que as mulheres possam afirmar-se em todos os domínios artísticos
onde a sua especial sensibilidade as possa levar. Restam, a meu ver, duas questões sobre as
quais será interessante reflectir no âmbito deste painel das “Artes - Contributos
Culturais de Expressão Feminina”, que tenho o privilégio de moderar com várias
mulheres que se destacaram na diáspora na promoção de manifestações culturais
da herança portuguesa, com a sua sensibilidade e preocupação feminina: (1)
terão as mulheres de percorrer um caminho mais árduo do que os homens para a
sua afirmação no domínio artístico? (2) serão as artes um veículo com
particular potencial para a afirmação da agenda da igualdade de género?
Sobre a primeira questão, o talento é um elemento determinante,
conjugado naturalmente com um ingrediente de aceitabilidade intelectual e
social não despiciendo. Quanto ao talento não consta que a natureza o tenha
distribuído por critérios de género. Contamos com várias mulheres como
expoentes da nossa produção cultural recente, algumas delas da diáspora como
Vieira da Silva e Paula Rego. Já a forma como o trabalho artístico é
compreendido e recebido envolve frequentemente um inconfessada dúvida na
generalidade das sociedades “ocidentais” que conheço e que mais não é do que o
reflexo no campo artístico do mesmo cepticismo que prevalece relativamente à
afirmação das mulheres em domínios que foram durante séculos um quase exclusivo
dos homens.
Esse padrão ainda subjacente nas nossas sociedades está a
diluir-se progressivamente com uma nova atitude assumida pelas novas gerações e
com o progresso das novas tecnologias de uso pessoal que não conhecem barreiras
de género. Sobretudo a designada “cultura erudita”, será hoje porventura menos permeável a
preconceitos de género, num mundo onde a concorrência é feroz e o
reconhecimento frequentemente aleatório e contingente.
Mesmo assim, Ana Maria sente que o terreno é ainda movediço
e com a sua pintura e com o texto que nos apresentou lança um grito de
consciência:
“Do passado,
que ainda nos traz a memória da mulher doméstica, passando pelo tempo
do discurso da autonomia feminina, temo que hoje, os antigos sonhos dos
direitos e igualdades tenham sido substituídos por uma desregulação da
feminilidade transformando a mulher imagem/corpo numa espécie de negócio
milionário que tudo vende.
Sem conteúdo, usam-nos “ bonequinhas”, quase sempre seminuas. Se noutros tempos a nossa identidade estava consignada ao “consentimento” masculino, agora, esta obsessão pelo corpo é aquilo que nos assegura o estatuto social sobre o outro, sem o complexo do género.
Sem conteúdo, usam-nos “ bonequinhas”, quase sempre seminuas. Se noutros tempos a nossa identidade estava consignada ao “consentimento” masculino, agora, esta obsessão pelo corpo é aquilo que nos assegura o estatuto social sobre o outro, sem o complexo do género.
(...) Se no quotidiano aceitamos que somos lutadores até ao fim,
também o ato criativo é a convicção permanente de que aquilo que fazemos
é não só a possibilidade de intervenção convicta no mundo como também é
sempre uma nova batalha. Fracasso... Falhanço... Festejo..., é o final com que
nos apresentamos”.
Por seu turno, a escritora argentina Ana Maria Cabrera, partilhou
connosco a história de vida da soprano portuguesa Regina Pacini, que viria a
ser a Primeira Dama da Argentina e que venceu os preconceitos da sociedade de
Buenos Aires de então, construindo uma obra de excepcional alcance cultural
naquele país.
La sociedad argentina no admitía la unión de un aristócrata con una
artista. Pero Marcelo desafió los prejuicios de la época para casarse con
Regina en Lisboa, el 29 de abril de 1907. (...) Cuando Alvear llegó a la
presidencia de la Nación, en 1922, Regina Pacini pasó a ser la Primera Dama del
Siglo XX y la única extranjera. (...) Regina Pacini fue protagonista de un
largo e intenso amor. De la mano de su esposo esta generosa mujer portuguesa
soportó en silencio la indiferencia de la sociedad argentina respondiéndonos
con el regalo de grandes obras culturales: la Casa del Teatro, refugio de la
vejez de los artistas y Radio Municipal para que todo el pueblo pueda escuchar
el bel canto desde su hogar. (...)La
belleza del Arte eleva el espíritu. Hoy la necesitamos más que nunca. Portugal
y Argentina dos países que hoy se dan la mano a través de esta emblemática
mujer: la inolvidable Regina Pacini.
Já num registo de recolha e de memória, Thais Matarazzo, jornalista,
musicóloga e colaboradora do Departamento
Cultural do Clube Português de São Paulo, trouxe-nos a sua mais recente obra “Fado no Brasil”, tão
representativa do “Fado Imigrante” que constitu uma das mais poderosas
manifestações da identidade portuguesa da diáspora. A jornalista Eulália Moreno
que também participa do livro, refere a justiça que esta obra presta às cantoras
do Fado no Brasil nos seguintes termos:
“Essas vozes pioneiras aqui fizeram escola e constituíram
sucessoras não esquecidas neste trabalho de recolha de biografias e memórias. São
as vozes das muitas Marias do Fado no exercício dos seus ofícios e cumprindo o
seu fado no país que as acolheu, cantando “até que a voz lhes doa” e no qual
desenvolveram e aprimoraram as suas qualidades artísticas tornando-se uma
referência obrigatória da cultura luso-brasileira, estrelas maiores nesta obra
de Thaís Matarazzo que faz justiça a alguns nomes do panorama artístico
luso-brasileiro, perpetuando a sua memória para as gerações vindouras já que a
vertente do Fado Imigrante em terras brasileiras era uma lacuna somente agora
preenchida pela autora com o rigor ao qual já nos habituamos pela leitura dos
seus trabalhos anteriormente publicados”.
No mesmo registo, Aida
Baptista apresentou a extraordinária obra de cultura popular açoriana de Ana
Fontes que nasceu em 1931 na ilha de Sta Maria, Açores, numa família numerosa,
casou por procuração e passou por uma breve experiência de emigração no Canadá.
Neste fórum apresentou um projecto que promete resgatá-la do esquecimento:
Como
era hábito na época, as mulheres nasciam destinadas a serem boas esposas,
consortes de vidas nem sempre com sorte. Talhada neste figurino de mulheres -
às quais dois anos de escolaridade bastavam para se saber ler, escrever e
contar - Ana Fontes nunca se conformou com este paradigma. Por isso, a sua
fraca escolaridade não foi impedimento para que tivesse escrito mais de vinte
cadernos com milhares de quadras que, ao abordarem os mais variados temas,
refletem expressões femininas de cidadania de quem nunca se deixou condicionar,
nem pela condição do berço, nem pelo isolamento da ilha. A par da escrita, entregou-se também à
confeção de mais de seiscentas peças de artesanato - feitas dos mais diversos
materiais reciclados -, que se encontram expostas nas diferentes divisões da
sua casa. Mulheres poetas populares e
artesãs não são propriamente uma novidade no país e na diáspora. O que torna
Ana Fontes particularmente diferente é o facto de, ao juntar as duas valências
- a de poeta e de artesã -, descrever as suas peças com quadras reveladoras de
uma genuína espontaneidade, como se os objetos, para além do enorme impato
visual que provocam, ganhassem vida e dialogassem com ela.
Todos
estes contributos reflectem as dificuldades de afirmação de mulheres
invulgarmente dotadas de talento artístico nas sociedades em que vivem ou
viveram e a responsabilidade sentida por outras em retirá-las do esquecimento.
São casos em regra inigualáveis e de uma profunda densidade simbólica. As fronteiras geográficas foram cruzadas por
muitas destas mulheres da diáspora mas em comum persiste um sentimento de
caminho ainda por percorrer, por uma questão de justiça perante o passado e de compromisso
para com o futuro. As novas gerações encontrarão um terreno mais aplanado pelo
esforço e determinação de muitas destas mulheres (e de homens que as
acompanharam nesse desígnio de igualdade) que merecem ser relembradas e
reconhecidas.
A
segunda questão que merece também a nossa reflexão consiste em saber se
as artes poderão ser um veículo com particular potencial para a afirmação da
agenda da igualdade de género.
A cultura em sentido amplo é a realidade que define um país
e uma civilização muito para além da sua sobrevivência ou da sua existência
actual concreta. O património cultural – material ou imaterial – da humanidade
é hoje encarado e protegido como elemento fundacional da nossa existência nas
suas mais variadas manifestações.
Hoje, mais do que nunca, a virtuosidade de um país é medida
não pela sua prosperidade material, muito menos pelo seu poder militar, mas
pela capacidade do seu “soft power”, pela bondade das suas decisões, em suma,
pela cultura que o define e que projecta no mundo.
Todos participamos dessa realidade múltipla, mas é sobretudo
a um grupo mais restrito de artistas, pensadores ou homens de ciências várias
que confiamos a perpetuação do esforço civilizacional, da sua memória e da
ambição de novos avanços e aperfeiçoamentos.
É ainda recente o tempo em que o acesso das mulheres a esse
grupo restrito foi consentido, em certos casos até estimulado. Mas não consta
que as mulheres não estejam preparadas para agarrar esta oportunidade. A
cultura em sentido estrito, enquanto produto das várias expressões artísticas,
não suscita guerras de hegemonia e de poder como as que observamos no mundo
político ou empresarial e que deixam invariavelmente as mulheres desamparadas nesses
contextos. Porém, a cultura enquanto portadora de criatividade artística de um
país é cada vez mais protegida e respeitada pelos poderes instituídos, como
forma de expressão da alma do seu tempo e da marca que querem deixar para a
posteridade. Ficaram registados os tempos em que pela primeira vez a
Administração Kennedy abriu as portas da Casa Branca aos artistas de vários
quadrantes para conjuntamente fomentarem e celebrarem o génio e a prosperidade da
cultura norte-americana. Curiosamente pela mão da Primeira Dama Jacqueline
Kennedy.
Hoje, a cultura é encarada como um poderoso meio de “soft
power” utilizado pelos Estados nos seus esforços de diplomacia pública para
afirmarem as suas identidades e promoverem as suas virtudes perante terceiros. Pelo
nosso lado, temos nomeadamente a língua portuguesa e uma vasta literatura de
expressão portuguesa que partilhamos com países irmãos unidos por fortes afinidades
históricas e culturais e o “Fado” - um
género musical recentemente erigido a património imaterial da humanidade – que
nos distinguem no mundo. Outros sectores têm conhecido um desenvolvimento
extraordinário nas últimas décadas no nosso país e conquistado um assinalável
prestígio internacional, designadamente a Arquitectura, o Design e a Ciência e Tecnologia. Todos juntos são
veículos duma estética colectiva com uma dimensão identitária que nos
singulariza como povo, no país e na sua diáspora.
Numa era em que a Arte, a Ciência e a Técnica nas suas
diversas expressões serão decisivas para navegarmos num novo mundo mais
informado, mais exigente e inevitavelmente mais global, será interessante saber
se esta evolução é acompanhada pelo esbatimento da tradicional divisão de
papéis em função do género. Um reputado economista, presidente da Universidade
de Harvard apresentou dados estatísticos que supostamente evidenciavam uma
menor apetência das mulheres para a Ciência quando comparadas com os homens.
Não sobreviveu ao impacto de tais declarações, acabando por ser substituído por
uma mulher, a primeira na história daquela instituição com quase quatrocentos anos. Os dados dos quais partiu seriam certamente
científicos mas não os soube ler de acordo com os sinais dos tempos. Tempos em
que as mulheres estão cada vez mais equipadas para dar o seu contributo e
exigir a sua participação numa nova era em que apenas o talento, a
criatividade, a competência e a persistência são determinantes. Há ainda
barreiras sobretudo psicológicas a ultrapassar, mas hoje mais do que nunca as
democracias definem-se também pela igualdade que
conseguem assegurar aos seus cidadãos, igualdade de género incluída.
Com este Encontro Mundial das Mulheres portuguesas da
Diáspora esperamos ter proporcionado um espaço de partilha e de reflexão para
estas questões onde quer que haja comunidades e mulheres portuguesas no
mundo. As mulheres das Artes terão de
estar na vanguarda da reivindicação deste espaço comum e indiferenciado para
homens e mulheres para a afirmação do progresso e dos valores e civilizacionais
que defendemos para as nossas sociedades. À Associação da Mulher Migrante que
celebra os seus 20 anos de existência o justo reconhecimento pelo trabalho
feito e votos de muito sucesso para os projectos futuros.
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