Deolinda M Adão
Universidade da Califórnia,
Berkeley
California State University,
San Jose
Escritas Dispersas – Convergência de Afectos
O Impasse do Eu: A Saudade como Veículo de Transculturação
e Construção de Identidade na Literatura de Mulheres na Diáspora Portuguesa na
Califórnia.
Este trabalho visa
efectuar uma leitura de textos produzidos por mulheres Portuguesas ou
Luso-Americanas residentes nos Estados Unidos da América dentro de uma
perspectiva vinculada ao processo de construção de identidade das personagens e
da voz poética ou narrativa, assim como o inerente processo de
“transculturação” das mesmas. Assim, e tendo em consideração que muitos dos
textos produzidos por mulheres portuguesas nos Estados Unidos são de índole
auto-biográfico, o processo de construção de identidade desenvolvido nesses
textos é até certo ponto paralela àquele desenvolvido pelas próprias autoras ou
por outras mulheres da sua comunidade.
No texto Contrapunteo
Cubano del Tabaco y del Azucar, o antropólogo Cubano Fernando Ortiz,
desenvolve a noção de trasculturação, que segundo este teórico surge sempre que
um indivíduo ou grupo de uma cultura entra em comunicação com indivíduos ou
grupos de outra cultura, seja voluntariamente ou não. Para Ortiz, esse encontro
transcultural provoca alterações em ambos grupos, particularmente no não
dominante, fazendo com que o indivíduo ou grupo em questão ajuste os marcos
culturais e identitários trazidos da sua cultura de origem e paralelamente
adopte marcos culturais e identitários da cultura com a qual entrou em
contacto. No caso de comunidades imigrantes, esta última seria a cultura do
país de acolhimento. Assim, a comunidade em questão constrói parâmetros
identitários próprios com referências culturais extraídas tanto da sua cultura
de origem como da cultura de acolhimento. Uma das questões levantadas neste
trabalho é como dentro desta conjuntura, se constrói uma noção de identidade
individual e colectiva, e como se herdam e propagam os marcos identitários
utilizados para essa construção. Também se pretende ponderar até que ponto a
selecção de parâmetros de identidade depende inteiramente do livre arbítrio de
cada indivíduo, ou se a mesma está influenciada e condicionada por parâmetros
de identidade previamente estabelecidos e transmitidos pela estrutura
sociocultural na qual o indivíduo está inserido. Para os fins deste trabalho, a
nossa proposta é conceber a construção de identidade cultural como um processo
cumulativo que incorpora diversos marcos identitários que se sobrepõem e
entrelaçam, cada um deles afectando e alterando o outro.[1]
Dentro deste esquema, o processo de construção de identidade é simultaneamente
horizontal e vertical, pois os diversos marcos identitários vão-se sobrepondo,
como se fossem camadas de identidade, mas cada uma destas camadas movimenta-se
verticalmente impactando todas as outras.
Com o fim de
observar como os referidos processos de construção de identidade se desenvolvem
em cada um desses textos, seleccionaram-se sete textos, cinco dos quais
produzidos por Luso-Americanas e dois criados por portuguesas naturais dos
Açores. Nomeadamente, Katherine Vaz, Rose Peters Emery, Pauline Correia
Stonehill, Rose Silva King, Maria Fernanda Simões e Maria das Dores Beirão. Ao
nível da narrativa, dois dos textos sobre os quais nos debruçaremos são
romances, dois são memoriais, um trata-se de uma colecção de contos, e os
últimos dois são colectâneas de poesia intercalada de alguma prosa. Neste
trabalho a análise dos textos está apresentada de una forma aparentemente
anti-cronológica, pois começamos pela autora mais afastada da cultura
portuguesa e terminaremos com as duas autoras nascidas em Portugal. Assim, em
primeira instância abordaremos o romance Saudade e o livro de contos Fado
and Other Stories de Katherine Vaz, em seguida debruçamo-nos sobre Footprints
in the Soil de Rose Emery, A Barrelful of Memories de Pauline
Stonehill e A Cow for the Holy Spirit de Rose King, terminando com As
Lavadeiras, Suas Lidas e Maluqueiras de Maria Fernando Simões e Beijo de
Abelha de Maria das Dores Beirão.
Embora estes textos
sejam bastante heterogéneos tanto a nível estrutural como narrativo e até mesmo
linguístico, existem alguns temas que percorrem todos eles, temas estes que uma
vez identificados nos permitem traçar uma análise transversal dos textos
mencionados. Um desses temas é sem dúvida a “saudade” que é alias o título do
primeiro romance de Katherine Vaz. Aliás, a temática da saudade é uma das mais
recorrentes na produção literária da diáspora lusitana nos Estados Unidos em
geral, e neste caso particular na Califórnia. Em realidade, e embora a palavra
“saudade” seja quase exclusiva à língua portuguesa, a noção de nostalgia pelos
lugares e pelas gentes do local de origem, é um tema presente em muita da
literatura de diáspora em geral, particularmente a de primeira geração. No
entanto, e como abordaremos em maior pormenor, no caso da literatura da
diáspora portuguesa, essa tendência parece alastrar-se para além dessa primeira
geração de imigrantes, que sofrem na pele a angústia de perda de vínculos de
identidade com o seu local de origem e a frustração de uma assimilação
dificultosa no novo local de residência.
No texto A Literatura Emigrante Portuguesa na
Califórnia Eduardo Mayone Dias afirma que:
A
faceta da literatura de emigração mais abertamente arreigada à tradição
literária importada é constituída por um ciclo de poesia saudosista em moldes
singelos, quase monocórdica na sua nostálgica evocação da vida deixada para
trás. (p. 21)
Obviamente, para os emigrantes de primeira geração, como
era o caso de Alfredo Luís[2]
(Alfred Lewis), Artur Vieira Ávila[3],
Ramiro Dutra[4], e Machado
Ribeiro (Décio de Oliveira), entre muitos outros que se tem ocupado a escrever
em verso ou em prosa, muito do que lhes vai na alma, o tema da saudade era, e
continua a ser, um tema que lhes permite exprimir a sua relação com a terra
natal, sem menosprezar o local de acolhimento. Desta forma, consistentemente
encontramos textos nostálgicos que evocam a terra natal dos respectivos
autores, como é evidente nos fragmentos que seguem:
Adeus À Ilha Terceira de autor
desconhecido (1941)[5]
Ó tempo, que tudo levas,
Já o tempo me levaste.
Do Tempo que foi meu tempo
Só a saudade me deixaste.
Despedida À Ilha das Flores por Frank Nunes (1953)[6]
Saudades a toda a gente
Desta Ilha natural,
A todos muitas saudades,
Aqui faço ponto final.
Saudade de Manuel Bráulio
Costa Fontes (1973)[7]
Tinha saudades;
Mas como voltar, se ele não podia
Os filhos deixar?
Sou Imigrante por Margarida
Soares (1979)[8]
O imigrante velhinho
Já só vê a sepultura
E vai desfiando saudades
Num rozário de amargura.
O Emigrante por Arthur V.
Ávila (1962)[9]
Meu deus! Que voz teimosa é a voz da verdade
A martelar sem dó a ferida da saudade
Que sente todo o emigrado como eu.
Saudade da Terra por Alfred Lewis
(1973)[10]
O bordão liso do passado
Numa esquina do meu quarto
Parece acentuar o meu desejo
(se o pudesse fazer) de voltar lá
Para matar saudades e pagar promessas
E sentar-me no Rossio
Sem baleeiros agora.
Balada da Saudade por Machado
Ribeiro (2002)[11]
Tão longe da minha aldeia,
Do Torrão onde nasci,
Trago minha alma cheia
De saudades de ti
Ai que saudade
O tempo ao passar deixou,
Ai que saudade
Da terra que me gerou.
Como afirmamos
anteriormente, o facto de frequentemente encontrarmos a temática da saudade na
produção literária da primeira geração de imigrantes portugueses na Califórnia,
não é surpreendente. O que nos parece mais interessante, é o facto que este
tema continua a ser trabalhado por aqueles que não partiram, ou seja, por
Luso-Americanos. Um dos casos emblemáticos é a escritora Luso-Americana
Katherine Vaz, que até este momento publicou em Inglês e por editoras
americanas ou inglesas, dois romances – Saudade (St. Martin Press, 1994) e Mariana (HarperCollins, 1997),
e dois livros de contos – Fado and other stories (University of
Pittsburgh Press, 1997) e Our Lady of the Artichokes and Other
Portuguese-American Stories (UNP, 2008). Mariana, Fado and other Stories e Saudade foram
traduzidos ao português e publicados em Portugal.
Ao contrário das
autoras de primeira geração, ou seja nascidas em Portugal, que recriam um mundo
através de referências de que elas próprias têm conhecimento devido as suas
experiências de infância e juventude, em Saudade, Katherine Vaz recria o mundo de Clara, a sua protagonista surda,
não utilizando referências culturais próprias, mas aquelas que lhe foram
transmitas pelos seus familiares, particularmente o seu pai e família paterna,
visto que a família materna de Katherine Vaz é de descendência Irlandesa. A
escritora, também faz inúmeras viagens a Portugal, particularmente aos Açores,
onde adquire muitas das referências culturais e geográficas utilizadas nos seus
textos. Assim, a narrativa de Vaz, nos dois textos que consideramos neste
trabalho, Saudade e Fado and Other Stories, apresenta várias
particularidades culturais que são utilizadas pela autora para recriar nas suas
obras um mundo, ou um espaço cultural português ou luso-americano. Em todos os
seus textos Vaz utiliza múltiplas referências à cultura portuguesa, desde os
nomes de quase todas as suas personagens, especialmente as protagonistas, até
as descrições de instrumentos musicais e de trabalho, assim como alimentos
tradicionalmente portugueses. Inevitavelmente, uma das particularidades da
cultura portuguesa amplamente utilizada por Vaz é o saudosismo e fatalismo
português tipicamente associados à saudade e ao fado. Desta forma, uma das
características das personagens de Katherine Vaz é a situação trágica das
mesmas, pois estas vivem entaladas entre duas culturas e como tal, permanentemente
em busca da sua identidade cultural “I’not Portuguese, she thought not any
more. I’m Hawaiian.” [12]
[Eu não sou Portuguesa, pensou, já não, agora sou Havaiana][13]
Assim, praticamente todos as personagens de Vaz, são irremediavelmente trágicas
sem terem qualquer possibilidade de fugir ao seu fado “Xica Adelinha Costa had
tried to escape Portuguese fate by moving halfway across the world, to a dry
inland patch, but there she was for the second time in her life on a shoreline
wailing over the body of a dead man.”[14] [Xica Adelinha Costa tinha tentado fugir à sina
portuguesa mudando-se para o outro lado do mundo, para um árido pedaço de
terra, mas, aqui estava ela, pela segunda vez na sua vida, abraçada a um corpo
inerte, cuja vida tinha sido arrebatada pelas águas.][15]
No entanto, por vezes a narrativa levanta a dúvida se a tragédia das
personagens tem que ver com o simples facto de elas serem portuguesas ou de
descendência portuguesa, e como tal fadadas para a desgraça”But I do have one Lusitanian
quality that has the strength of instinct in me, without my faking it or
pumping it up Portuguese fatalism gravitates to the absolute”[16][Mas
eu tenho uma qualidade Lusitana que tem força de instinto, pois sem necessidade
de fingimento ou esforço, o fatalismo Português atinge em mim magnitude
absoluta][17] ou pelo
facto que as personagens vivem dentro de uma cultura, mas mantêm a estrutura
cultural de outra cultura que entra em conflito e muitas vezes é incompatível
com a cultura da sociedade onde vivem, neste caso, as personagens são, ou
emigrantes portugueses ou Luso-Americanos que vivem nos Estados Unidos,
nomeadamente na Califórnia e no Hawaii, mas que mantêm fortes vínculos
culturais com o seu lugar de origem ou o lugar de origem de seus antecedentes.
Em suma, todas as personagens de Katherine Vaz, são personagens saudosas, que
se mantêm amarradas à sua cultura tradicional pois esta é a única forma de
manterem ligação com o seu local de origem e talvez a única forma de atenuar a
dor da saudade.
Um dos
contos emblemáticos de Fado and Other Stories é o conto Original Sin que propõe que a tragédia
de Miranda reside no facto de que ela é oriunda de uma cultura onde o silencio,
a solidão e as crenças religiosas são fundamentais, ou seja, o facto de que ela
é portuguesa “My father once explained to me the solitude of the Portuguese: We
would rather go out to sea alone in a small boat that fish together on a big
one…We bought land for power but mostly for isolation.”[18]
[Uma vez, o meu pai falou-me sobre a solidão dos Portugueses: nós preferíamos
deitarmo-nos ao mar sozinhos numa pequena embarcação do que pescar em grupo
numa embarcação maior… Nós compramos terra para adquirir poder, mas mais que
nada para adquirir isolamento.][19]
Efectivamente, Miranda não tem nada em comum com qualquer jovem residente na
Califórnia fora da comunidade portuguesa, ela é uma personagem que vive isolada
dentro de uma comunidade isolada, com todas as suas referências culturais no
passado e num local distante. Este facto é enfatizado pela estrada que sendo o
ponto de contacto entre os membros da comunidade portuguesa com a comunidade em
geral, aparece como o local que provoca a morte do pai e do irmão da
protagonista, e implicitamente como o obstáculo insuperável que mantém Miranda
e o resto da comunidade portuguesa completamente isolada “my father and brother
died in a car wrech, in the stretch were we converged with outsiders. The
road, like most of the ones in California, always smelled like blood.”[20]
[meu pai e meu irmão morreram num desastre de automóvel,
nesse pedaço de estrada onde nós nos encontrávamos com os que não pertenciam à
nossa comunidade. A estrada, como quase todas as outras na Califórnia, cheirava
a sangue.][21] Assim,
Katherine Vaz constrói narrativas através da utilização de inúmeras referências
culturais, que projectam a dicotomia cultural da comunidade portuguesa
residente nos Estados Unidos, e propõe que a impossibilidade de reconciliar as
duas culturas - a portuguesa e a americana, e de superar o desolador sentimento
de saudade que marca as personagens, provoca nelas uma imensa amargura e resulta
na sua eventual destruição. Assim, parece plausível afirmar que em Vaz, a
saudade perde ternura para ganhar amargura e solidão. As personagens de
Katherine Vaz têm saudades de um tempo e lugar longínquo, mas este sentimento
revela-se como a força catalítica da sua destruição. Alias,
na primeira página do primeiro romance da autora a saudade é apresentada como
uma maldição dos deuses dos mares:
“Good
luck then”, the water-gods concluded, “for here is the mark on your brow: The
feeling of Absence will become your truest Presence. Your longing will wax
until it becomes the giant looming at your side.” (3) [“Então boa sorte” concluíram os deuses dos mares “pois ficais
assinaladas: O sentimento de Ausência será a vossa mais autêntica Presença. A
vossa saudade consolidar-se-á até se transformar na gigante sombra que vos
acompanhará permanentemente”][22]
Os
textos de Emery, Stonehill e King publicados na Califórnia pela editora comunitária
Portuguese Heritage Publications of California, Inc. tem vários aspectos em
comum: todas as autoras são mulheres Luso-Americanas, ou seja nascidas nos
Estados Unidos, mas cujos pais (ou pelo menos um deles) nasceram em Portugal,
nomeadamente em uma das ilhas do Arquipélago dos Açores; todos foram
originalmente produzidos em língua Inglesa; e a temática de todos é a
experiência de imigração de cada uma das autoras e das respectivas famílias. No
entanto dois dos textos são identificados como “memórias” enquanto um deles é
considerado uma “ficção”. Esta classificação propõe uma tentativa de
universalização desse texto, nomeadamente A
Cow For the Holy Spirit, inserindo-o na esfera do ficcional.
Adicionalmente, os três textos têm um espaço geográfico comum, e neste caso
todos relatam uma experiência de imigração rural, visto que o espaço em que se
desenvolvem todas as narrativas é o espaço rural, nos casos concretos o vale de
São Ramon localizado ao sudeste de São Francisco, onde se desenvolve a saga da
família Peters; e o vale de São Joaquim que ocupa grande parte do centro do
Estado da Califórnia estendendo-se desde Sacramento até Bakersfield, e que
serve de palco para as atribulações das famílias Correia e Sousa. Já no que
concerne o espaço cultural dos textos, o esquema parece diversificar-se um
pouco, pois não só encontramos referências culturais comuns à cultura
portuguesa, como também referências particulares ao Arquipélagos dos Açores e
ainda mais especificamente a cada uma das ilhas das quais originam os diversos
membros das famílias em questão. Alias, e tal como tínhamos visto nos textos de
Katherine Vaz, é nesse espaço hibrido que surgem grande parte dos conflitos
sentidos pelas autoras das respectivas narrativas, visto que este é o campo de
batalha entre a cultura do local de origem trazida pelos imigrantes portugueses
e a cultura do local de acolhimento com a qual a segunda geração, ou seja os
filhos destes já se identificam. Em efeito, em todos estes textos a segunda
geração tem uma função mediadora entre estas duas culturas frequentemente
antagónicas. Tendo em conta a influência exercida pelo Catolicismo sobre a
população portuguesa em geral e açoriana em particular, não devemos esquecer o
importantíssimo papel da religião como um dos agentes de demarcação cultural
nas diversas comunidades portuguesas, incluindo a residente na Califórnia. Segundo
afirma Eduardo Mayone Dias no livro A Presença Portuguesa na Califórnia há
muito que se pode falar de uma produção literária Luso-Californiana “A poesia
popular tem constituído historicamente a primeira e mais vigorosa faceta da
literatura luso-californiana, já velha de mais de cem anos.” (88) Nesse mesmo
texto, Mayone Dias aponta para algumas prosas, na sua maioria de carácter
autobiográfico que começam a surgir já em meados do século XX e das quais a
primeira e única a ser publicada por uma casa editorial americana é o romance
“Home is an Island” de Alfred Lewis. Tal como a narrativa de Lewis estes textos
foram elaborados em Inglês, apesar de num determinado momento pelo menos duas
das autoras comandassem a língua portuguesa. Embora tenham sido produzidos em
Inglês, todos os textos, são até certo ponto linguisticamente híbridos, pois
todos eles incluem vocábulos portugueses para os quais as respectivas autoras
elaboram um glossário. Assim, podemos dizer que cada um dos textos, e cada uma
das respectivas autoras são entidades transculturadas. Pois a forma como
concebem a sua cultura original está afectada pela outra ou outras culturas com
as quais entraram em contacto.
Em 2003 com 97 anos de idade Rose Peters Emery publica o
texto Footprints in the Soil no qual relata a vida dos seus pais e irmãos:
Esta é a história da minha família luso-americana, do meu
pai nascido nos Açores, da minha mãe uma luso-americana, dos meus onze irmãos e
irmãs, - dos cereais e dos animais que criamos na nossa quinta localizada no
Vale de São Ramon na Califórnia e que era o centro de todas as nossas vidas.
(prefácio, XI) [tradução minha]
Rose Peters Emery nasceu em Outubro de 1905 na
propriedade do seu Pai José Pires Azevedo, no Vale de São Ramon, localizado a
aproximadamente 50 Km ao sudeste de São Francisco. Rose era a decima primeira
filha de Jose Pires (Joe Peters) mas apenas a quarta da sua esposa Rose
Lawrence Peters. O seu pai, José Pires Azevedo nascido em Fevereiro de 1854,
era natural da freguesia da Beira na Ilha de São Jorge, Açores e imigrou para
os Estados Unidos na primavera de 1872, embarcado no navio Galena que
transportava para alem de José mais 97 açorianos que abandonavam as suas ilhas com esperança de uma vida melhor na América. A
viagem que deveria ter levado 18 dias acabou por levar 56, durante os quais os
passageiros sofreram os terrores de tempestades e o pavor da fome. Após uma
pequena estadia em New Bedford, Massachusetts decidiu tentar a sua sorte nas
terras da Califórnia levado pelo sonho de conseguir adquirir terra. Joe Peters
chega a São Francisco com 50 centavos no bolso nesse mesmo ano de 1872. Doze
anos depois da sua chegada, Joe Peters converte-se cidadão Americano e regista
como seu um terreno de 160 alqueires de acordo com os regulamentos da lei
“Homestead Act” de 1862. Após o falecimento da sua primeira esposa em 1893 e
com sete filhos, entre os 14 e os 2 anos de idade, Joe imediatamente começa a procurar
algum com quem casar. A noiva seleccionada foi a jovem Rose Lawrence de apenas
23 anos de idade, nascida em 1875 na área de Danville, Califórnia, filha de
pais Jorgenses.
O texto que Rose nos apresenta é claramente identificado
pela sua autora como um memorial: “Eu sou uma mulher muito velha, mas
felizmente a minha memória está tão boa como sempre o foi.” (prefacio, XI)
Assim, Rose utiliza o texto para relatar a “história” da vida dos seus pais,
avós, irmãos, irmãs, e ela própria durante os anos em que cresceu e viveu na
agro-pecuária da qual o seu pai era proprietário. Como é normal para este tipo
de texto, a narrativa tende a ser circular e por vezes repetitiva, no entanto o
texto é extremamente rico em referências históricas, sociais e culturais. Rose
Peters descreve em detalhe a vida de uma família de imigrantes dedicados à
criação de gado bovino e à produção de leite. A sua narrativa que é
simultaneamente aliciante e minuciosa descreve pormenores importantes,
particularmente no que diz respeito às divisões de tarefas e de espaços entre o
homem e a mulher. Ambos tinham funções claramente delineadas dentro da
sociedade Luso-Californiana do princípio do século XX. Por vezes alguns dos
detalhes de certa forma justificam ou põem em questão algumas noções
previamente dadas como facto. Um desses exemplos tem a ver com o número de
pessoas identificadas como portugueses e residentes na Califórnia no censo de
1850, mais precisamente com o número de mulheres portuguesas residentes nesse
estado, que segundo o dito inquérito seria apenas uma. Ora segundo o texto de
Rose Peters a sua avó materna Maria Souza Faustinho Amaral teria imigrado para
os Estados Unidos em 1865 tendo posteriormente chegado à Califórnia em 1867, o
que implica que apenas 17 anos após o mencionado inquérito oficial, mulheres
portuguesas já se arriscavam a cruzar o continente sozinhas, certamente
incorporadas em caravanas. De certa forma isto contradiz a suposição
frequentemente formulada que as mulheres portuguesas que inicialmente vieram para
a Califórnia o teriam feito com os respectivos maridos, ou posteriormente a
estes, em consequência de casamentos por procuração.
Pauline C.
Stonehill, autora de A Barrelful of Memories nasceu e viveu a sua
infância e juventude em Los Banos, Califórnia. Os seus pais, Francisco (Frank)
Correia e Maria Rosa (Mary Rose) Cotta Correia, ambos nasceram nos Açores, ele
em São Jorge e ela na Terceira. Embora com distintos processos de imigração
ambos chegaram a Los Banos em 1914, casaram e formaram família nessa mesma área
central do vale de São Joaquim. O título do texto surge em consequência do seu
avô materno ter feito a travessia do Atlântico clandestinamente escondido
dentro de um barril.
Embora o texto de Stonehill e de Peters até certo ponto
se sobreponham cronologicamente, a parte mais significante da narrativa de
Stonehill pode ser considerada como uma continuação da de Peters. Assim, a
primeira leva-nos desde o início da segunda metade do século XIX até meados dos
anos 20, e a segunda percorre um período de mais ou menos 50 anos entre os anos
80 do século XIX e os 40 do século passado. Tal como tinha sido o caso do texto
de Peters, a narrativa de Stonehill é claramente de índole memorial e tem por
objectivo “cumprir uma promessa que ela (a autora) tinha feito a seu pai, que
morreu quando a mesma tinha apenas 24 anos” (3) Através deste texto minucioso e
altamente detalhado acompanhamos o percurso da vida da autora e seus
familiares, especialmente antepassados. A primeira parte do relato conduz-nos
às pequenas aldeias Açorianas das quais são oriundos os seus pais, e acompanha
o desenrolar da vida de ambas até ao momento em que a autora começa a poder
relatar as suas próprias memórias:
Esta colecção de pequenas histórias, episódios e relatos
começou há mais ou menos quinze anos. Não as escrevi em nenhuma ordem
particular, mas tentei ordena-las em sequência cronologicamente para melhor
representarem a história da minha família, embora não seja precisamente uma
história de família, mas sim uma colecção das melhores histórias que eu conheço
sobre a minha família. (…) A primeira parte, emana primordialmente das
conversas que tive com a minha mãe, que fruto de uma memória excepcional, me
contou quase tudo do que sei sobre os meus avós, a sua infância e a infância do
meu pai. (…) A segunda parte do texto baseia-se nas minhas próprias observações
e memórias. (10)
Assim surge uma das grandes diferenças entre o texto de
Stonehill e Peters, pois esta última resume-se a relatar os eventos que por uma
razão ou outra fazem parte das suas recordações, enquanto Stonehill utiliza a
memória colectiva familiar para compilar as “histórias da minha família
Açoriana” Obviamente, ambos textos estão sujeitos aos condicionamentos
inerentes a textos deste tipo, ou seja, ambos estão condicionados pela relação
entre os eventos que realmente acontecem e os eventos que por uma razão ou
outra acabamos por recordar e subsequentemente relatar. Assim, ambos estão
sujeitos a uma dupla subjectividade pois se o processo de recordar é selectivo,
o processo de contar o que se recorda também o é. A tensão resultante destes
processos essenciais para a construção de qualquer tipo de memorial acaba por
até certo ponto pôr em questão a validade empírica de textos memoriais.
Particularmente Stonehill tenta incutir legitimidade ao seu texto, tecendo um
paralelismo contínuo entre a história da sua família e eventos Históricos
reconhecidos. Este processo provoca uma relativa inclusão da história
individual na História colectiva, e propõe uma alternativa à noção de História
e à construção da mesma.
A autora do terceiro texto A Cow for the Holy Spirit
também nasceu na Califórnia, mais precisamente em Modesto em Outubro de 1944.
Tanto o pai como a mãe são oriundos da ilha de São Jorge e também eles se
dedicavam a actividade agro-pecuária, e segundo Heraldo da Silva este texto é
emblemático pois: “Este romance representa uma contribuição significante para
uma incipiente representação ficcional da presença Portuguesa e Açoriana na
Califórnia.” (7) Mais uma vez a construção do texto surge do desejo de prestar
homenagem a um familiar, neste caso o texto é dedicado ao Espírito Santo e à
memória do pai da autora. Assim, através de uma série de flashbacks que iniciam
no momento em que o protagonista João Sousa sofre um ataque cardíaco, o leitor
acompanha o percurso da vida desta personagem desde a sua infância até ao
momento da crise médica. Paralelamente, o leitor toma também conhecimento da
história de vida do seu grande amor e companheira de vida Maria de Lurdes, assim
como a dos respectivos, pais, irmãos, familiares e amigos. Embora o texto seja
composto por uma sequência de flashbacks alternados com um suposto presente da
acção ficcional, isto não implica que não hesita uma sequência cronológica. Em
realidade, existem duas linhas cronológicas paralelas que avançam da infância
do protagonista até ao momento de resolução da crise cardíaca sofrida pelo mesmo.
Isto dito, o fio condutor do enredo é a história de vida de uma família
imigrante que tenta reconstruir a sua vida na Califórnia.
O facto que cada
uma das autoras citadas utilizam a escrita para recuperar o passado e construir
a história da sua família, representa uma tentativa na parte de cada uma delas
de se auto-construir através do processo de construção da narrativa. Todas
estas mulheres ocuparam múltiplos e por vezes antagónicos espaços culturais e
como tal todas elas surgem como entidades híbridas que incluem marcos
identitários de ambas culturas no seu processo de auto-construção. Como podemos
claramente evidenciar nos textos destas mulheres Luso-Americanas, cada uma
delas escolhe uma forma ligeiramente diferente de desenvolver esse processo de
auto-construção. Vaz desenvolve-a dentro de um espaço mágico apesar de trágico,
obscuro e dificilmente penetrável. Rose Peters fá-lo através de uma narrativa
que acompanha o processo Histórico. Para Stonehill, este processo insere-se e
funde-se com o próprio processo de construção de História colectiva. Enquanto
King, escolhe afastar-se da narrativa Histórica, construindo-se dento de um
espaço alternativo (a ficção) que suspende qualquer noção de tempo e espaço,
suspensão esta que é enfatizada no texto pelo estilo narrativo de flashback que
constantemente transporta o leitor entre o presente e o passado, o consciente e
o inconsciente.
Decorria o ano de
1971 quando Maria Fernanda de Melo Soares Simões emigrou para os Estados Unidos
e se radicou na Califórnia. Nascida na Ilha do Pico exerceu o cargo de
professora tanto na sua ilha natal como na Ilha do Corvo. Desde a sua chegada à
Califórnia tem participado activamente na vida da comunidade Portuguesa desse
Estado Norte Americano, destacando-se a sua presença na Rádio durante 23 anos e
a sua associação à sociedade fraternal SPRSI (Sociedade Portuguesa Rainha Santa
Isabel) da qual foi Presidente em 1994-95. Para além de outras actividades
artísticas, como a pintura, publicou livros de poesia e pequenos textos em
prosa, nomeadamente Os Meses das Nossas Raizes (Peregrinação
Publications, Inc, 2005) e As Lavadeiras, Suas Lidas, e Maluqueiras
(edição de autor, 2008).
No Prefácio a Os
Meses das Nossas Raizes José Brites declara que a intenção da autora é
“trazer ao papel as memórias de ontem do seu Pico, e particularmente do lugar
das Terras onde nasceu.” (VII) No entanto, na Nota explicativa a própria autora
afirma que a força que a impele à escrita é precisamente a “saudade”:
Porque a Saudade, essa palavra misteriosa que faz doer, começa a destruir
todos esses sonhos (do emigrante) Saudades dos amigos, da família, ou até das
próprias pedras do caminho. Assim sentindo toda essa emoção e recordando essas
pedras negras e as topadas que nos faziam nos dedos dos pés, tudo isso me
inspirou a escrever este pequeno livro.” (12)
Assim, este texto de memórias é consideravelmente
diferente dos textos que consideramos previamente, pois ao contrário de relatar
as memórias de vida de uma pessoa ou família, apresenta-nos um retrato do
quotidiano num pequeno povoado da ilha do Pico “Assim Os Meses das Nossas Raízes levará a todos vós um pouco do que eram
os costumes e tradições desse pequeno lugarejo.” (14) O livro é divido em 12
secções ou pequenos capítulos cada um dedicado a um mês e incluindo pequenos
textos narrativos, poemas, reproduções de desenhos ou pinturas e fotografias. A
índole saudosista do texto e enfatizada pelo último poema do livro:
Sentimento
Amor
União
Doçura
Amizade
Despedida
Emoção
Saudade.
O texto As Lavadeiras, Suas Lidas e Maluqueiras
também segue a linha memorialista da publicação anterior, embora neste caso a
intenção explícita é a de preservar a memória de gentes e modos de vida,
nomeadamente as lavadeiras do mato e a sua função na sociedade da povoação e da
ilha: “quero preservar a memória de histórias de muitas mulheres do Pico, que
como eu, também foram lavadeiras.” (8) Assim, este texto que tal como o
anterior consiste de pequenas prosas, poemas, fotos e desenhos, apresenta ao
leitor um retrato social da povoação das Terras, da Ilha do Pico e por extensão
do arquipélago dos Açores. No entanto, neste texto a autora também inclui
textos que celebram a modernização, os direitos da mulher, o processo de
emigração e a adaptação ao novo local de residência. Particularmente
interessante é o pequeno texto que leva por título “Os Americanos” em que a
autora descreve as visitas à terra das lavadeiras emigradas nas Américas, ou
seja Estados Unidos, Canada e Brasil. Neste caso a faina da lavagem da roupa
perde todo o seu aspecto laborioso, pois todo o processo de ir à ribeira lavar
converte-se num ritual de celebração, inserindo-se quase no plano do mítico:
As “americanas” ficavam contentes porque recordavam a sua vida de
lavadeiras como no tempos passados. Riam e diziam: “há muito tempo que não
riamos assim!” Alegres, felizes de estarem de novo na ribeira a lavar e a matar
saudades. Os seus filhos brincavam com as rãs nas pequenas poças da ribeira e
também estavam felicíssimos. (54)
O efeito da “transculturação” é ainda mais evidente no
pequeno texto “O Progresso” que é praticamente um manifesto, ou melhor dito uma
apologia à modernidade e ao impacto da mesma sobre o quotidiano da mulher:
O desenvolvimento e a evolução tecnológica trouxeram grandes modificações
aos modos tradicionais de vida, simplificando as tarefas domésticas (…) Com
todas estas inovações da técnica, a mulher deixou de ser máquina. (…) A mulher
já não e a “gata borralheira”! Viva o progresso! (12)
No entanto, a recuperação de uma memoria que autora teme
venha a ser irrecuperavelmente perdida, e o saudosismo crónico do emigrante são
os dois grandes temas do texto, tanto que o último texto do livro é o poema
“Imigrante Português”
Partem do seu Portugal
Aquele cantinho sem rival
Da fortuna à procura
Lá vão esses emigrantes,
Para terras distantes,
Na sua louca aventura
(…)
Assim os nossos imigrantes,
Nessas Terras tão distantes,
Plantaram seus padrões.
E, com fé e esperança
Com a saudade e lembrança
Formaram suas organizações (69-70)
Originária da Ilha
Terceira, Açores, foi lá que Maria das Dores Beirão completou os seus estudos e
trabalhou como professora até 1967, ano em que emigrou para a Califórnia, onde
também se dedicou ao ensino por vários anos. Durante a década de 80 começa a
dedicar-se a tempo inteiro à empresa familiar que dirige com o seu marido e
filhos. Desde o momento da sua chegada à Califórnia, Maria das Dores Beirão,
conjuntamente com o seu marido, tem mantido uma intensa actividade cultural,
contando com participações em jornais dos Açores e da Califórnia, conferências,
colóquios e simpósios. Assídua investigadora do folclore Açoriano, faz parte de
um grupo coral que se ocupa de interpretar temas tradicionais. Presentemente,
vive em Napa, Califórnia. É casada com Hélio Beirão e tem três filhos e três
netos. Beijo de Abelha,
publicado em 2003 reúne poesia e prosas que Maria da Dores vinha produzindo por
vários anos.
No prefácio a Beijo de Abelha José Luis da Silva
descreve o texto da seguinte forma:
A
presente obra de Maria das Dores Beirão representa uma nova visão na
literatura luso-americana pelo seu equilíbrio e clarividência. Numa pequena
colectânea de poemas e prosa poética, a autora consegue retratar magistralmente
o seu processo de adaptação à experiência da emigração, ao mesmo tempo que vai
dando uma imagem autêntica de si própria. (7)
De uma forma ou outra todos os textos inseridos em Beijo
de Abelha, (2003)[23]
abordam o tema da saudade. Assim, podemos encontrar diversas facetas deste
sentimento mesmo nos textos que parecem ter uma temática que se distancia dos
temas referentes à terra natal e familiares deixados atrás, como é o caso do
poema Mulheres Minhas Irmãs que
apresenta características de saudades dentro dos parâmetros do Saudosismo de
Teixeira de Pascoais,[24]
ou seja saudade de um futuro em que a igualdade de género é já uma realidade consumada
a todos os níveis e em todos os lugares:
Mulheres
Mestras de suas filhas
E das filhas de outras mulheres
Que já perderam a voz
Ah minhas irmãs
Fabricantes de vergonha e de humilhação
Mulheres do mundo inteiro
Operárias da criação
Levantai os braços em sinal de vitória
De força de beleza
Mulheres do todo o mundo
Mulheres de todas as cores
Mulheres de todas as classes
Mulheres de todas as crenças
É urgente!
Vamos recomeçar a luta!
Já lá vão séculos de tanto uso
De tanto abuso
Nada há para vender
Nada há para comprar
Vamos vencer as injustiças
Vamos proclamar a paz
Estender as mesas p’ra penúria
Das crianças de todos os lugares
Vamos enfim ser mulheres
corpo de terra que germina
corpo de mar que embala
chuva de mel
que adoça a sementeira.
No entanto, como podemos facilmente evidenciar pelos
títulos da maioria dos textos inseridos nesta colectânea, muitos destes estão
directamente vinculados com a ausência dos lugares e pessoas amados pela autora
e deixados atrás no local de origem. Assim, poemas como Canto da Décima Ilha, que trata da reconstrução da insularidade no
local de acolhimento: “Sou desta Ilha, Décima de rimas, / De poetas loucos,
língua inventada. / Navega serena em marés de espuma, / Minha Ilha Mátria
reencontrada.” (17); Minha Gente É Minha
Ilha: “Minha Gente é minha ilha / que trago bem escondida / no meu lenço de
cambraia/ que acenei na despedida”(19); A
Casa que já não é: “A casa que já não é / Todavia permanece / No sonho de
cada um” (27-29); Ilha em que autora
diz: “Ilha fêmea, escrava da tua solidão / sapateia em terra de Bravos / cercada
p’lo mar amante / e já de mim tão distante / que p’ra me calar, então / me
envia a saudade / em vão!” (31-32); e Retrato
do José da Lata: Saudades da vida / que apressada passou. / Prelúdios da
morte / que pouco demorou. (37) Para além dos poemas, Beijo de Abelha
inclui ainda pequenas prosas líricas, nomeadamente O Velho Álbum e Vocês Não
Sabem na qual a autora claramente define o que é para ela a saudade:
Vocês não sabem que o ilhéu leva consigo a Ilha, não às costas como
pesadelo, mas como pérola formada pela saudade na concha do coração. Vocês não
sabem que o emigrante, onde quer que viva, cria espaços que lh falam doutros
espaços abandonados no nevoeiro da sua memória. (…) Vocês não sabem que os
filhos e os netos do emigrante, embora com fraco domínio da língua portuguesa,
são criados escutando a nossa música, os nossos contos, absorvendo a cultura e
os valores dos pais (…) Vocês não sabem que a maior diferença entre quem parte
e quem fica é que quem parte ama a dobrar. Vocês não sabem… (60)
Portanto, o que Maria das Dores Beirão parece dizer-nos,
é que a totalidade cultural de saudade só é verdadeiramente conhecida por
aqueles que partem. Pelos imigrantes de primeira geração, os que conhecem no
corpo a dor da ausência e do desterro. Talvez a razão pela qual este vocábulo
tenha um peso cultural tão significante na cultura portuguesa, seja
precisamente, porque os portugueses, mais que qualquer outro povo, tem sido
sujeito a partidas e longas ausências desde os primórdios do século XV. Em
suma, em Maria das Dores o termo saudade paradoxalmente engloba ternura e dor e
está directamente vinculada com a memória.
Resta-nos concluir que todas as autoras sobre as quais
nos debruçamos, exercem através destes textos, uma tentativa de se
auto-construírem através da aglutinação cultural do seu passado, presente e
futuro. Todas elas, tenham nascido em Portugal ou nos Estados Unidos, se
concebem dentro de um espaço social e culturalmente híbrido, ou seja nenhuma
delas é desde uma perspectiva sociocultural nenhuma destas mulheres se
identifica como sendo exclusivamente Portuguesa ou Americana, pelo contrário,
todas elas se apropriam e valorizam diversos marcos culturais de ambas
sociedades. Assim, estas mulheres não podem deixar de construir textos
híbridos, pois esse é precisamente o único espaço dentro do qual elas se
concebem e como tal podem construir a sua própria identidade cultura.
[1] Dentro deste paradigma, é imprescindível ter em consideração o impacto da
intencionalidade das forças dominantes da sociedade no que concerne a
construção de identidade é extremamente importante, porque é a este nível que
se manifestam as pressões oriundas de diversas estruturas de poder,
particularmente sociopolíticas, económicas, culturais e religiosas, pois os
marcos de identidade impostos por estas estruturas afectam a construção de cada
uma dessas camadas identitárias, cada uma das quais subsequentemente impacta
cada uma das outras que constitui o conjunto de referências e parâmetros que
determinam a noção de identidade de cada indivíduo.
[2] Mayone
Dias, Eduardo. Cem anos de Poesia
Portuguesa na Califórnia. Porto. Secretaria do Estado das Comunidades
Portuguesas, 1986.
[3] Idem
[4] Idem
[5] Idem
[6] Idem
[7] Idem
[8] Idem
[9] Idem
[10] Idem
[11] Ribeiro,
Machado. Pó. San José, CA:
Portuguese Heritage Society of California, 2002.
[12] Vaz, Katherine, Fado
and other stories. Pittsburgh ,
PA : University of Pittsburgh
Press, 1997. (114)
[13] Minha
tradução
[14] Idem
(105-106)
[15] Minha
tradução
[16] Idem (20)
[17] Minha
tradução
[18] Idem (3)
[19] Minha
tradução
[20] Idem (2)
[21] Minha tradução
[22] Minha tradução
[23] Beirão,
Maria das Dores. Beijo de Abelha. . San
José ,
CA : Portuguese Heritage Society of California , 2003.
[24] Pascoais,
Teixeira. Arte de Ser Português. Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim,
1998. 74-76.
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