ASAS/TORONTO – MULHERES
IMIGRANTES LUSO-CANADIANAS
Manuela Marujo, Departamento de Espanhol e Português, Universidade de
Toronto[1]
1953/2013 - Sessenta Anos depois
A chegada dos primeiros contingentes de imigrantes
portugueses ao porto de Halifax, na Nova Scotia, Canadá aconteceu em Maio e
Junho de 1953. Quando finalmente o Canadá abriu as portas à emigração
portuguesa, o grupo experimental selecionado em Lisboa por entidades canadianas,
constava somente de cerca de 200 homens. A maioria era constituída por rapazes
solteiros; os homens casados deixavam as mulheres e filhos na expetativa de
mais tarde se lhes virem juntar. As portas para um mundo novo, as oportunidades
de melhoria de vida estavam nessa altura apenas reservadas aos homens “de mãos
calejadas” que, no Canadá, encontraram trabalho nos caminhos de ferro, nos
trabalhos agrícolas ou na construção civil.
Pode imaginar-se facilmente a angústia causada
pela falta de notícias, pelo desconhecimento do tipo de vida que os homens encontraram,
pela distância difícil de transpor, nesses tempos em que os barcos eram o meio
de transporte frequentemente mais usado.
Algumas mulheres ousaram juntar-se aos maridos,
pouco depois, sozinhas ou acompanhadas de seus filhos. Muitas continuaram afastadas
dos maridos pela distância dos postos de trabalho nesse Canadá de espaços infindáveis,
que os levava para lugares onde não era possível alojá-las. Apesar disso, atravessado
o oceano, estavam no mesmo país e a distância tornava-se mais fácil de suportar.
As vicissitudes que as primeiras mulheres portuguesas
sofreram no Canadá, devido à solidão causada pelo afastamento dos maridos, pelo
isolamento e desconhecimento da língua e dos costumes, precisam ser conhecidas.
Sem a companhia de mães, irmãs ou outros familiares, as dificuldades para criarem
os filhos e, ao mesmo tempo, terem um emprego foram muitas e dolorosas.
Muitas mulheres pioneiras não tiveram a
oportunidade de contar as suas histórias de vida.[2] Não
tinham o hábito de escrever diários e as suas histórias perderam-se quando a saúde
se perdeu ou a morte as levou. A escrita é uma arte que inúmeras das nossas
imigrantes não dominavam com facilidade; muitas tinham a escolaridade mínima ou
eram analfabetas.[3]
As senhoras idosas que agora
frequentam os centros de apoio à terceira idade são as que vieram nos anos sessenta,
setenta ou até mais tarde. Os testemunhos destas mulheres são valiosos para que
se possa escrever a história da emigração sob uma outra perspectiva mais
abrangente e completa.
Academia de Seniores de Artes e Saberes (ASAS/Toronto)
O projeto Academias de
Seniores de Artes e Saberes (ASAS) nasceu em Toronto, em outubro de 2012, por proposta
da Drª Manuela Aguiar [4] durante
o II Congresso Internacional Rosa dos
Ventos: o Português nos quatro cantos do mundo[5]. Entre os objetivos desse
projeto consta a recolha de histórias de vida de mulheres de origem portuguesa.
A proposta é ir ao encontro de senhoras idosas em clubes, associações de terceira idade ou em suas casas para/com o
objetivo de recolher narrativas de suas vidas que ilustrem os anos da presença
de portuguesas no Canadá. A maioria destas mulheres revela grande sensibilidade
e um desejo genuíno de partilhar as suas experiências com os outros, apesar de
não se sentir capaz de as escrever.
A minha vida
numa moldura
Num
primeiro encontro, com um grupo de dez senhoras, na Casa dos Açores do Ontário,
dinamizou-se uma oficina de trabalho em que as presentes foram convidadas a
escolher factos significativos da sua vida, que
as tivessem marcado de alguma forma e que viessem naquele momento à sua
memória. Depois de um breve diálogo de motivação, foi-lhes pedido que
escrevessem o que lhes vinha à lembrança. Mais tarde, foi sugerido que, se se
sentissem à vontade, lessem os seus textos e os partilhassem com o grupo. Todas
manifestaram desejo de ler as suas narrativas. Houve risos e lágrimas com a
partilha das histórias cómicas ou comoventes. A conclusão a que todas chegaram
foi que aquele texto representava apenas uma parte muito breve de suas vidas.
Esses textos foram recolhidos pela moderadora do
grupo, impressos, emoldurados e
entregues às participantes em data posterior. Elas foram convidadas a colocar a
sua moldura em lugar de destaque, de modo a lembrá-las a dar continuidade à sua
narrativa. Transcrevo dois desses retratos [6].
Sempre gostei de costurar
Desde menina muito cedo, sempre gostei de costurar,
fazia os vestidos das bonecas das minhas amigas depois da escola, fui aprender
a costurar e era sempre a minha alegria. Com dezoito anos comecei a trabalhar
por minha conta. Muito trabalhei na minha ilha de São Miguel, cidade de Ponta
Delgada.
A 11 de Junho de 1952, casei-me e fui para a ilha
Terceira com o meu marido. Lá estive por cinco anos, o meu marido trabalhava no
aeroporto quando estavam a aumentar a pista. Ele trabalhava a pôr o cimento nas
pistas, no fim voltámos para São Miguel e lá estive até vir para o Canadá, vim
para o Canadá no ano de 1967, foi com muito custo com quatro filhos, a mais pequena
fez dois anos depois de cá chegar, mas sempre gostei muito do Canadá. Sempre
trabalhei muito e estou velha mas graças a Deus sempre pensando o que fazer, e
gosto de ajudar quem precise e de ensinar o pouco que sei e no fim dos dias
sempre digo obrigado Deus por mais um dia que me deu.
Maria Valdomira Mendonça
Muitas lágrimas chorei
O dia mais feliz da minha vida foi o dia em que
conheci o meu marido, a seguir o dia em que me casei com 20 anos, em 1968.
Casei num dia lindo e o mais feliz da minha vida toda até hoje, foi o dia que
fui mãe, em que ganhei a minha filha, só tenho uma. E a seguir quando ganhei a
minha segunda filha. Emigrei para o Canadá há 45 anos. Foi o melhor que
fizemos, esta terra é maravilhosa.
Dias de tristeza, o dia mais triste da minha vida até
hoje foi o dia que faleceu o meu bebé de
um mês e meio, foi de cortar o meu coração. A seguir, o dia que perdi a minha
mãe, o meu pai e meu irmão. Passei dias da muita alegria até hoje, e dias de
muita tristeza. Muitas lágrimas chorei.
Ana de Brito
O principal objetivo deste tipo de oficina de trabalho
é dar-lhe seguimento e entrevistar as senhoras que participaram. Elas ficaram
entusiasmadas pela oportunidade de ver a sua história partilhada no grupo e
sensibilizadas de a sentir apreciada. Querem continuar porque muito mais há
para contar.
Páginas soltas
da minha vida
Outro
projeto ligado ao ASAS foi a criação de um espaço de diálogo e ajuda na escrita
de uma “Página solta da minha vida”. Um grupo de quinze mulheres do grupo Mulheres
Portuguesas 55+ participou com muito entusiasmo na primeira sessão. Foram
convidadas a escrever um pequeno texto sobre a sua vida antes ou depois de
emigrar e, as que não sabiam escrever, contaram os factos e foram ajudadas na elaboração
escrita dos mesmos.
Os
textos foram recolhidos e impressos. Criaram-se livrinhos em que cada história deu
lugar a uma página. Para todas as participantes foi criado um livro com cores, desenhos e ilustrações individualizadas.
O produto final foi entregue a cada uma das participantes numa cerimónia
festiva, acompanhada de música, palavras de encorajamento e reconhecimento pela
coragem que tiveram ao emigrar. Todas
concordaram que outras páginas de vida seriam acrescentadas às suas histórias
em encontros futuros. Duas dessas histórias ilustram esta iniciativa:
Rancho das Rosas
Por volta de 1946, sofri um acidente muito triste, o
meu pai abriu um poço em minha casa, e quando estavam os homens a trabalhar,
mandaram água para cima da minha burra que me deu um coice. E eu fiquei
estendida no fundo do poço.
Perder o meu querido filho foi a coisa mais triste da
minha vida.
Uma coisa boa que tive
na minha vida foi dos meus quatorze aos dezanove anos, foram uns anos muito
divertidos porque pertencia ao rancho da minha terra, o Rancho das Rosas, em Alenquer.
Cheguei a dançar dois rapazes em uma hora, a dançar uma valsa e o vira da
Nazaré.
Angelina dos Santos
Mulher de verdade
Vou começar pelas lembranças de infância. Apesar de
ser pobre era muito feliz, brincando no meu quintal, trepando a minha figueira
e a latada, era uma cabra, como dizia a minha mãe.
Depois o meu namoro, o meu casamento, data muito
importante da minha vida, dia 6 de Abril de 1958, tinha eu vinte e um anos.
Vieram os meus filhos, dias de grande alegria, fui uma mulher de verdade,
esposa e mãe, sinto-me contente de ter criado e educado o meu filho e a minha
filha, tive um marido maravilhoso e uma vida feliz.
Já no Canadá, muitas coisas tristes se passaram, mas
como na vida há altos e baixos tudo faz parte da vida e eu faço o possível de
esquecer os tristes e lembrar as coisas boas e assim vou passando os dias da
minha vida com recordações de setenta e seis anos.
Margarida Medeiros
Plantar raízes em terra alheia: artesãs luso-canadianas
Ao
falar com mulheres imigrantes luso-canadianas, ao observá-las nos centros de
terceira idade, em associações recreativas, descobre-se que trouxeram de Portugal
habilidade para bordar, fazer tricô e outros ofícios de natureza manual. Se a
escrita não é a forma mais comum de expressão (excecionalmente algumas há que o
fazem em quadras populares[7]) elas manifestam-se através do artesanato: pintura,
cerâmica, renda, tricô, croché, bordados, joalharia.
O
conhecimento de trabalhos manuais trazido do país de origem revela-se na beleza
dos bordados das toalhas de mesa, paninhos e blusas da Madeira, na delicadeza
das rendas de bilros de Peniche, na utilitária e colorida arte de trabalhos de
tricô para enxovais de bebés e de croché, na joalharia com materiais mistos,
nas pinturas em que elementos da paisagem portuguesa e canadiana se unem e
valorizam.
ASAS/
Toronto está a recolher e analisar estas formas de expressão e conhecimentos numa
tentativa de não se perder artesanato de grande valor,
que filhas e netas das imigrantes luso-canadianas não sentem disponibilidade para
aprender. Em junho de 2013 foi apresentado um primeiro resultado deste trabalho
de pesquisa no VI Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher em Portugal e
na Diáspora: Tempos e Percursos, na Universidade dos Açores.[8]
O projeto ASAS/Toronto está a ser divulgado em inglês
através do Canadian Centre for Azorean Research
and Study (CCARS), uma parceria entre a Universidade de Toronto e a
Universidade de York, e tem recebido apoio financeiro da Presidência do Governo
dos Açores/Direção Regional das Comunidades.
Conclusão
ASAS/Toronto desenvolveu as iniciativas acima
descritas durante o ano transato. O nosso objetivo é dar continuidade ao
projeto envolvendo mais associaçōes e mais participantes que possam aprender a
valorizar as suas histórias de vida, património imaterial que se reconhece
inestimável. O artesanato, sob as várias formas, continuará a ser estudado,
registado e arquivado para que esses saberes tradicionais possam, no futuro,
ser transmitidos às geraçōes mais jovens de luso-canadianos como parte de sua
herança cultural. Em muitos países, as Academias Seniores de Artes e Saberes
ocupam, cada vez mais, um grande número de pessoas idosas, sabedoras e experientes
que continuam interessadas em adquirir novos conhecimentos. O envelhecimento da
população luso-canadiana não constitui exceção.
Por isso, reconhecemos a necessidade de dinamizar pessoas dessa faixa
etária e com elas partilhar aprendizagens. Acreditamos que a publicação dos resultados possa vir a
contribuir para a disseminação do projeto em outras comunidades de imigrantes.
[1] Contacto:manuela.marujo@utoronto.ca
[2] Dois livros com narrativas de vidas devem ser
mencionados: Imigrantes Portugueses -25 anos no Canadá, de Domingos
Marques e João Medeiros (1978) e Pequenas Histórias de Gente Grande de
José Mário Coelho (2004).
[3] Através das cartas escritas à família seria possível
reconstituir muitas das primeiras impressões, aventuras e desventuras.
Infelizmente, esse trabalho de pesquisa continua por fazer.
[4] A
doutora Maria Manuela Aguiar conhece bem as comunidades de imigrantes. A sua
dedicação, empenho e esforço são muito apreciados nas comunidades junto das
quais trabalhou como Secretária de Estado das Comunidades, Deputada pelo
Círculo Fora da Europa e outras.
[5] O congresso referido teve lugar na Universidade
de Toronto, por iniciativa do Departamento de Espanhol e Português para
festejar os 65 anos do Programa de Estudos Portugueses.
[6] Todos os textos escritos sofreram ligeiras
correçōes para maior clareza e compreensão.
[8] VI Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher em Portugal e na
Diáspora: Tempos e Percursos, na Universidade dos Açores, de 27-29 Junho, 2013.
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