sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Manuela Marujo ASAS/Toronto


ASAS/TORONTO – MULHERES IMIGRANTES LUSO-CANADIANAS

Manuela Marujo, Departamento de Espanhol e Português, Universidade de Toronto[1]

 

1953/2013 - Sessenta Anos depois

A chegada dos primeiros contingentes de imigrantes portugueses ao porto de Halifax, na Nova Scotia, Canadá aconteceu em Maio e Junho de 1953. Quando finalmente o Canadá abriu as portas à emigração portuguesa, o grupo experimental selecionado em Lisboa por entidades canadianas, constava somente de cerca de 200 homens. A maioria era constituída por rapazes solteiros; os homens casados deixavam as mulheres e filhos na expetativa de mais tarde se lhes virem juntar. As portas para um mundo novo, as oportunidades de melhoria de vida estavam nessa altura apenas reservadas aos homens “de mãos calejadas” que, no Canadá, encontraram trabalho nos caminhos de ferro, nos trabalhos agrícolas ou na construção civil.

Pode imaginar-se facilmente a angústia causada pela falta de notícias, pelo desconhecimento do tipo de vida que os homens encontraram, pela distância difícil de transpor, nesses tempos em que os barcos eram o meio de transporte frequentemente mais usado.

Algumas mulheres ousaram juntar-se aos maridos, pouco depois, sozinhas ou acompanhadas de seus filhos. Muitas continuaram afastadas dos maridos pela distância dos postos de trabalho nesse Canadá de espaços infindáveis, que os levava para lugares onde não era possível alojá-las. Apesar disso, atravessado o oceano, estavam no mesmo país e a distância tornava-se mais fácil de suportar.

As vicissitudes que as primeiras mulheres portuguesas sofreram no Canadá, devido à solidão causada pelo afastamento dos maridos, pelo isolamento e desconhecimento da língua e dos costumes, precisam ser conhecidas. Sem a companhia de mães, irmãs ou outros familiares, as dificuldades para criarem os filhos e, ao mesmo tempo, terem um emprego foram muitas e dolorosas.

Muitas mulheres pioneiras não tiveram a oportunidade de contar as suas histórias de vida.[2] Não tinham o hábito de escrever diários e as suas histórias perderam-se quando a saúde se perdeu ou a morte as levou. A escrita é uma arte que inúmeras das nossas imigrantes não dominavam com facilidade; muitas tinham a escolaridade mínima ou eram analfabetas.[3]

As senhoras idosas que agora frequentam os centros de apoio à terceira idade são as que vieram nos anos sessenta, setenta ou até mais tarde. Os testemunhos destas mulheres são valiosos para que se possa escrever a história da emigração sob uma outra perspectiva mais abrangente e completa.

Academia de Seniores de Artes e Saberes (ASAS/Toronto)

O projeto Academias de Seniores de Artes e Saberes (ASAS) nasceu em Toronto, em outubro de 2012, por proposta da Drª Manuela Aguiar [4] durante o II Congresso Internacional Rosa dos Ventos: o Português nos quatro cantos do mundo[5]. Entre os objetivos desse projeto consta a recolha de histórias de vida de mulheres de origem portuguesa. A proposta é ir ao encontro de senhoras idosas em clubes, associações de terceira idade ou em suas casas para/com o objetivo de recolher narrativas de suas vidas que ilustrem os anos da presença de portuguesas no Canadá. A maioria destas mulheres revela grande sensibilidade e um desejo genuíno de partilhar as suas experiências com os outros, apesar de não se sentir capaz de as escrever.

A minha vida numa moldura

Num primeiro encontro, com um grupo de dez senhoras, na Casa dos Açores do Ontário, dinamizou-se uma oficina de trabalho em que as presentes foram convidadas a escolher factos significativos da sua vida, que as tivessem marcado de alguma forma e que viessem naquele momento à sua memória. Depois de um breve diálogo de motivação, foi-lhes pedido que escrevessem o que lhes vinha à lembrança. Mais tarde, foi sugerido que, se se sentissem à vontade, lessem os seus textos e os partilhassem com o grupo. Todas manifestaram desejo de ler as suas narrativas. Houve risos e lágrimas com a partilha das histórias cómicas ou comoventes. A conclusão a que todas chegaram foi que aquele texto representava apenas uma parte muito breve de suas vidas.

Esses textos foram recolhidos pela moderadora do grupo, impressos,  emoldurados e entregues às participantes em data posterior. Elas foram convidadas a colocar a sua moldura em lugar de destaque, de modo a lembrá-las a dar continuidade à sua narrativa. Transcrevo dois desses retratos [6].

Sempre gostei de costurar

Desde menina muito cedo, sempre gostei de costurar, fazia os vestidos das bonecas das minhas amigas depois da escola, fui aprender a costurar e era sempre a minha alegria. Com dezoito anos comecei a trabalhar por minha conta. Muito trabalhei na minha ilha de São Miguel, cidade de Ponta Delgada.

A 11 de Junho de 1952, casei-me e fui para a ilha Terceira com o meu marido. Lá estive por cinco anos, o meu marido trabalhava no aeroporto quando estavam a aumentar a pista. Ele trabalhava a pôr o cimento nas pistas, no fim voltámos para São Miguel e lá estive até vir para o Canadá, vim para o Canadá no ano de 1967, foi com muito custo com quatro filhos, a mais pequena fez dois anos depois de cá chegar, mas sempre gostei muito do Canadá. Sempre trabalhei muito e estou velha mas graças a Deus sempre pensando o que fazer, e gosto de ajudar quem precise e de ensinar o pouco que sei e no fim dos dias sempre digo obrigado Deus por mais um dia que me deu.

Maria Valdomira Mendonça

Muitas lágrimas chorei

O dia mais feliz da minha vida foi o dia em que conheci o meu marido, a seguir o dia em que me casei com 20 anos, em 1968. Casei num dia lindo e o mais feliz da minha vida toda até hoje, foi o dia que fui mãe, em que ganhei a minha filha, só tenho uma. E a seguir quando ganhei a minha segunda filha. Emigrei para o Canadá há 45 anos. Foi o melhor que fizemos, esta terra é maravilhosa.

Dias de tristeza, o dia mais triste da minha vida até hoje foi o dia que faleceu o meu bebé de um mês e meio, foi de cortar o meu coração. A seguir, o dia que perdi a minha mãe, o meu pai e meu irmão. Passei dias da muita alegria até hoje, e dias de muita tristeza. Muitas lágrimas chorei.

    Ana de Brito 

 

O principal objetivo deste tipo de oficina de trabalho é dar-lhe seguimento e entrevistar as senhoras que participaram. Elas ficaram entusiasmadas pela oportunidade de ver a sua história partilhada no grupo e sensibilizadas de a sentir apreciada. Querem continuar porque muito mais há para contar.

Páginas soltas da minha vida

Outro projeto ligado ao ASAS foi a criação de um espaço de diálogo e ajuda na escrita de uma “Página solta da minha vida”. Um grupo de quinze mulheres do grupo Mulheres Portuguesas 55+ participou com muito entusiasmo na primeira sessão. Foram convidadas a escrever um pequeno texto sobre a sua vida antes ou depois de emigrar e, as que não sabiam escrever, contaram os factos e foram ajudadas na elaboração escrita dos mesmos.

Os textos foram recolhidos e impressos. Criaram-se livrinhos em que cada história deu lugar a uma página. Para todas as participantes foi criado  um livro com cores, desenhos e ilustrações individualizadas. O produto final foi entregue a cada uma das participantes numa cerimónia festiva, acompanhada de música, palavras de encorajamento e reconhecimento pela coragem que tiveram ao emigrar.  Todas concordaram que outras páginas de vida seriam acrescentadas às suas histórias em encontros futuros. Duas dessas histórias ilustram esta iniciativa:

 

Rancho das Rosas

Por volta de 1946, sofri um acidente muito triste, o meu pai abriu um poço em minha casa, e quando estavam os homens a trabalhar, mandaram água para cima da minha burra que me deu um coice. E eu fiquei estendida no fundo do poço.

Perder o meu querido filho foi a coisa mais triste da minha vida.

Uma coisa boa que tive na minha vida foi dos meus quatorze aos dezanove anos, foram uns anos muito divertidos porque pertencia ao rancho da minha terra, o Rancho das Rosas, em Alenquer. Cheguei a dançar dois rapazes em uma hora, a dançar uma valsa e o vira da Nazaré.

Angelina dos Santos

Mulher de verdade

Vou começar pelas lembranças de infância. Apesar de ser pobre era muito feliz, brincando no meu quintal, trepando a minha figueira e a latada, era uma cabra, como dizia a minha mãe.

Depois o meu namoro, o meu casamento, data muito importante da minha vida, dia 6 de Abril de 1958, tinha eu vinte e um anos. Vieram os meus filhos, dias de grande alegria, fui uma mulher de verdade, esposa e mãe, sinto-me contente de ter criado e educado o meu filho e a minha filha, tive um marido maravilhoso e uma vida feliz.

Já no Canadá, muitas coisas tristes se passaram, mas como na vida há altos e baixos tudo faz parte da vida e eu faço o possível de esquecer os tristes e lembrar as coisas boas e assim vou passando os dias da minha vida com recordações de setenta e seis anos.

Margarida Medeiros

 

Plantar raízes em terra alheia: artesãs luso-canadianas

Ao falar com mulheres imigrantes luso-canadianas, ao observá-las nos centros de terceira idade, em associações recreativas, descobre-se que trouxeram de Portugal habilidade para bordar, fazer tricô e outros ofícios de natureza manual. Se a escrita não é a forma mais comum de expressão (excecionalmente algumas há que o fazem em quadras populares[7]) elas manifestam-se através do artesanato: pintura, cerâmica, renda, tricô, croché, bordados, joalharia.

O conhecimento de trabalhos manuais trazido do país de origem revela-se na beleza dos bordados das toalhas de mesa, paninhos e blusas da Madeira, na delicadeza das rendas de bilros de Peniche, na utilitária e colorida arte de trabalhos de tricô para enxovais de bebés e de croché, na joalharia com materiais mistos, nas pinturas em que elementos da paisagem portuguesa e canadiana se unem e valorizam.

ASAS/ Toronto está a recolher e analisar estas formas de expressão e conhecimentos numa tentativa de não se perder artesanato de grande valor, que filhas e netas das imigrantes luso-canadianas não sentem disponibilidade para aprender. Em junho de 2013 foi apresentado um primeiro resultado deste trabalho de pesquisa no VI Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher em Portugal e na Diáspora: Tempos e Percursos, na Universidade dos Açores.[8]

O projeto ASAS/Toronto está a ser divulgado em inglês através do Canadian Centre for Azorean Research and Study (CCARS), uma parceria entre a Universidade de Toronto e a Universidade de York, e tem recebido apoio financeiro da Presidência do Governo dos Açores/Direção Regional das Comunidades.

Conclusão

ASAS/Toronto desenvolveu as iniciativas acima descritas durante o ano transato. O nosso objetivo é dar continuidade ao projeto envolvendo mais associaçōes e mais participantes que possam aprender a valorizar as suas histórias de vida, património imaterial que se reconhece inestimável. O artesanato, sob as várias formas, continuará a ser estudado, registado e arquivado para que esses saberes tradicionais possam, no futuro, ser transmitidos às geraçōes mais jovens de luso-canadianos como parte de sua herança cultural. Em muitos países, as Academias Seniores de Artes e Saberes ocupam, cada vez mais, um grande número de pessoas idosas, sabedoras e experientes que continuam interessadas em adquirir novos conhecimentos. O envelhecimento da população luso-canadiana não constitui exceção.  Por isso, reconhecemos a necessidade de dinamizar pessoas dessa faixa etária e com elas partilhar aprendizagens. Acreditamos que  a publicação dos resultados possa vir a contribuir para a disseminação do projeto em outras comunidades de imigrantes.

 

 



[1] Contacto:manuela.marujo@utoronto.ca
[2] Dois livros com narrativas de vidas devem ser mencionados: Imigrantes Portugueses -25 anos no Canadá, de Domingos Marques e João Medeiros (1978) e Pequenas Histórias de Gente Grande de José Mário Coelho (2004).
[3] Através das cartas escritas à família seria possível reconstituir muitas das primeiras impressões, aventuras e desventuras. Infelizmente, esse trabalho de pesquisa continua por fazer.
[4] A doutora Maria Manuela Aguiar conhece bem as comunidades de imigrantes. A sua dedicação, empenho e esforço são muito apreciados nas comunidades junto das quais trabalhou como Secretária de Estado das Comunidades, Deputada pelo Círculo Fora da Europa e outras.
[5] O congresso referido teve lugar na Universidade de Toronto, por iniciativa do Departamento de Espanhol e Português para festejar os 65 anos do Programa de Estudos Portugueses.
[6]  Todos os textos escritos sofreram ligeiras correçōes para maior clareza e compreensão.
[7] Esther Fernandes  “A Dança da Vida” (2005) em edição de autora.
[8] VI Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher em Portugal e na Diáspora: Tempos e Percursos, na Universidade dos Açores, de 27-29 Junho, 2013.
 

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