sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Silvia Afonso


ENCONTRO INTERNACIONAL

MULHERES DA DIÁSPORA – LISBOA

Palácio das Necessidades 24 e 25 de Outubro de 2013.

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Painel 4: MIGRAÇÕES E MIGRANTES – CONHECER E SENSIBILIZAR

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Título: “Forever immigrant *”

Sofia Afonso

Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (CEHUM)

Observatório dos Lusodescendentes (OLD)

 

Palavras-chave: lusodescendentes; artistas; posicionamento crítico

 

Abstract:

 

Temos vindo a assistir desde os anos noventa a uma crescente visibilidade da “arte em diáspora” (fundamentalmente protagonizada por artistas africanos e de origem africana e magrebina) como objecto de transculturalidade e de transnacionalidade, como objecto que recusa a dicotomia, o binário entre dois opostos - o Um e o Outro - e que contribui para o questionamento do hibridismo, da dupla/tripla pertença, da (con)fusão identitária, linguística, pela afirmação da necessidade de criar uma outra constelação de recursos onde a [arte] “bien mieux que la “fragmentation qu’impose souvent l’approche disciplinaire en sciences sociales, rend infinimement mieux la “totalité” du mouvement (…)[1]. Trata-se portanto, de uma mise en dialogue entre diversos campos e métodos disciplinares.

Exposições como “Lá Fora”[2], “Sem Saudade[3]” e “Cinco Autores Luso-descendentes”[4], só para citar três exemplos, que reúnem um conjunto de artistas portugueses e/ou de origem portuguesa, são mostras que possibilitam uma outra visibilidade da emigração portuguesa. De facto, artistas franceses, belgas, luxemburgueses, canadianos, americanos, ingleses, australianos, isto é, fotógrafos, realizadores, pintores, músicos, escritores, contadores … de origem portuguesa têm, graças a estas exposições tanto internacionais como nacionais, em diferentes espaços e escalas, protagonizado um discurso de reinterpretação política e cultural das sociedades em diálogo. Por outras palavras, “les oeuvres sont présentées non pas comme témoins de l’ethnique, mais plutôt comme les expressions d’une expérience sociale où le spécifique et l’universel sont mis en évidence, l’un et l’autre et non pas l’un sans l’autre”[5].

Assim, esta comunicação pretende publicitar alguns exemplos de uma produção estética que  recusa  uma inscrição singular no topos da emigração (portuguesa), isto é, que se recusa como (re)produção étnica da experiência migratória, materializando e/ou reivindicando a construção de um posicionamento crítico.

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A possibilidade de interseccionar o discurso “científico” - de áreas como a economia, a história, a sociologia - com outros discursos que se situam à margem dessa tutelaridade “académica” permite-nos considerar uma perspectiva mais polifónica, complexa mas integradora das questões que as migrações fazem emergir. Não se trata aqui de criar um enunciado sobre um outro enunciado mas de recorrer a outros enunciados, a outras matrizes para melhor apreender, ler, ver, sentir, conhecer e compreender essa experiência universal e intemporal que é a da deslocação, da migração e o que estes movimentos impactam tanto nas sociedade de partida como nas sociedades de trânsito e finalmente nas sociedades de chegada, de acolhimento, de instalação.

 

De facto, é no mínimo surpreendente para não dizer desconcertante, chocante até, que em Portugal nos seja dado constatar aforma como os media reproduzem sobre a emigração portuguesa um discurso redutor, simplista, extemporâneo, erróneo, demonstrando desconhecimento sobre a questão, quando a emigração é um eixo estruturante e constante na sociedade portuguesa. Basta para isso ouvir, ler e assistir aos vários conteúdos para perceber que a(s) representação(ões) sobre a emigração portuguesa se fixaram, se cristalizaram, sem ter em conta o que se transforma(ou) no que permanece. De igual modo, assistimos de forma demagógica, populista, à veiculação de uma imagem jubilatória como é o caso actual com o tratamento que é dado a esta “nova vaga” da emigração portuguesa, opondo estes novos emigrantes “aos outros”. Esta negligência significa igual e simetricamente um desconhecimento de quem somos, de onde estamos e do nosso futuro.

Continua a existir de facto uma secundarização do campo de estudo da emigração portuguesa o que “autoriza”, legitima a (re)produção de uma representação cristalizada

Participar neste painel representa a oportunidade de poder responder a um desafio que sempre procurei que estivesse presente nas minhas deambulações sobre a questão das migrações e mais especificamente sobre a emigração portuguesa.

Aliás, parte do actual trabalho de investigação que estou a desenvolver no âmbito do meu doutoramento pretende dar lugar, voz, visibilidade a um outro discurso protagonizado por artistas luso-descendentes que compõem uma constelação formada por geografias, percursos e áreas artísticas diferentes. A “recepção” das criações destes artistas permite tanto compreender o seu posicionamento enquanto produtores de um discurso crítico, no espaço público à escala global, como permite reposicionarmo-nos criticamente sobre o tema da emigração portuguesa.

Temos consciência de que hoje a criação artística é cada vez mais estruturada pela mobilidade dos actores. Mas se a criação artística é “produto” de pessoas ou de meios artísticos em circulação - migrantes, exilados, refugiados, minorias… -, podemos assistir ou à manutenção intencional de uma memória e de uma construção identitária ao serviço de uma reinscrição de uma narrativa nacional ou, ao invés, a produções artísticas e práticas relocalizadas, multi-localizadas, ou seja, que procuram abordar algumas das questões centrais, desafiadoras das sociedades contemporâneas como a identidade, a pertença, a tradição, a modernidade, a coesão social, as questões de género, de diferença, de equidade[i], numa ética e estética do globalismo[ii] e numa abordagem trans-artes (cinema, literatura, vídeo, fotografia, instalação, …).

Para muitos académicos, esta estética que integra desde o início o múltiplo – multi-lugar, multi-pertença, multi-identidade, multi-língua - porque faz referência pelo menos a dois universos culturais, a uma transformação em dois sentidos, pode ser denominada por arte migrante, arte diaspórica, estética migrante, estética diaspórica. No entanto, esta “etiqueta”/categoria não reúne unanimidade dada a ambiguidade que parece produzir[iii]. De facto, se foi graças a esta denominação que alguns artistas das diásporas (por exemplo, africana, asiática) tiveram visibilidade, ganharam mercado (para recorrer a nomenclatura neoliberal), também é verdade que esta denominação é maioritariamente recusada pelos próprios artistas porque os inscreve numa etnicidade, num mercado segmentado que nem eles próprios reivindicam. Recusam assim um enclausuramento comunitarista. De facto, se esta inscrição, num primeiro momento, pode significar corpo, matéria, visibilidade, num segundo momento, reenvia para um fechamento. Estes criadores não se posicionam assim como testemunhas de uma etnicidade mas sim de uma experiência social que interpela toda a sociedade e que a desafia.

Foi precisamente esta atitude, este posicionamento que tivemos a oportunidade de constatar aquando do primeiro Fórum dos Luso-Talentos organizado pelo Observatório dos Luso-Descendentes, no Porto, no ano passado: sim à rede luso-descendente que permite divulgar, facilitar a mobilidade, a circulação das produções e dos seus actores, mas não a uma inscrição étnica, comunitária, de representação, de porta-voz de fechamento identitário. Seria assumir uma posição num patamar de inferioridade quando estes actores pretendem alcançar escala no mercado internacional, no mundo global.

Gostaria agora de apresentar alguns artistas luso-descendentes que constituem o meu “portfolio” para a hipótese de trabalho apresentada mais acima. Começo com Marco Godinho[iv], artista luso-luxemburguês, a quem recorri para dar o título da minha intervenção Forever immigrant (2012-2013)[v]


De entre outros trabalhos, refiro ainda algumas obras. Tenho em mim todos os sonhos do mundo (2007)  relembra a miragem, a ilusão comumente construída na associação da emigração ao sucesso. Associação actualmente apresentada, comercializada, propagandeada como o leitmotiv da saída da crise colectiva e individual: só se consegue alcançar o sucesso là fora. Home dislocation (2012) pode ser um jogo linguístico e multilingue que reenvia para a própria competência comunicativa do autor que fala cinco línguas. Multi-territorialidade que implica igualmente um multi-território linguístico, isto é, um estar e ser em várias línguas o que acaba por criar uma espécie de heteronímia linguística. Esta vivência em registo multilingue também pode construir uma outra língua através de intersecções, de recomposições linguísticas. Em última análise, ouso enunciar que o que muitas vezes é tratado em estudos, artigos científicos como “bricolage linguístico” demonstrativo de deficit é aqui reposicionado, valorizado como potenciador de uma nova construção semântica. Departure (Destiny of rupture) (2012) recupera os símbolos, os arquétipos que reenviam para a emigração portuguesa masculina dos anos 50-60, interpelando-nos com a questão do desenraizamento e de uma déchirure imaterial mas que marca o corpo, a mente, os afectos.

Marco Godinho, como todos os artistas que convoco para este exercício, não trabalha unicamente sobre estes temas que, no entanto, integram o seu trabalho. Aborda-os, trabalha-os, numa dinâmica de desdobramento, de multiplicidade de multi-lugares.

Passemos agora a referenciar três artistas. Joe Lima[vi], que nos seus trabalhos de pintura inscreve as sensações, de intranquilidade, de solidão, de incomunicabilidade, de desencantamento. Teresa Ascensão[vii] que nos seus trabalhos kitsch e num tom humorístico desconstrói, subverte os dogmas da religião católica, dos papéis de género no seio da comunidade portuguesa em Toronto. E Miriam Sampaio que centra o seu trabalho sobre o resgate da memória, a construção da memória associada às relações entre a ficção e a realidade.

De entre os trabalhos de pintura, vídeo e instalação de Isabel Faria seleccionei Lost Castle (2006), instalação de um castelo de 26000 cartas que integra uma série de longo fôlego intitulada Pecados Capitais e que faz alusão à fragilidade de um dos elementos fundadores do projecto migratório e do regresso que é a casa – a construção da casa. Finalmente, porque não se trata aqui de apresentar ou elencar de forma exaustiva artistas portugueses ou de origem portuguesa que tenham vivenciado a experiência migratória, mas sim de apresentar alguns criadores, é importante aqui realçar que estes protagonistas movem-se igualmente nas diferentes disciplinas/áreas como se o elemento do plural fosse inevitável, ou tivesse de se declinar.

No que diz respeito à literatura, escolhi dois autores que não se inscrevem na “literatura da saudade”, da “terra natal imaginada”. São eles Isabel Mateus e Carlos Baptista. Isabel Mateus com os seus dois romances Terra de Chiculate e Terra da Raínha[viii] reenvia-nos a dois períodos “marcantes” na história da emigração portuguesa, a duas vagas migratórias intra-europeias, a primeira nos anos 50-60 para França e a segunda dos anos 2000-2013, demonstrando um continuum histórico do fluxo migratório - mesmo se os media, a opinião pública, a universidade estiveram desatentos. Aliás, no primeiro livro, a autora pretende dar visibilidade ao que permaneceu invisível como é o caso das crianças que ficaram, que não partiram com os pais. No segundo, voltamos a deparar-nos com esta consciência no sentido de enunciar o que mediaticamente é esquecido no que diz respeito à “nova emigração”: os factores que “produzem” a emigração, as dificuldades de inserção, de integração na sociedade de acolhimento, demonstra a diversidade de trajectórias existentes na comunidade portuguesa na terra da rainha. Carlos Batista, escritor que através do seu livro Poulailler[ix] disseca brilhantemente a sua construção identitária dilacerada entre uma pertença familiar e comunitarista subalternizada e uma socialização com um exterior agressivo, discriminador, difícil.

Ruben Alves com o filme a Gaiola Dourada (2013), apesar de se apresentar comercialmente como uma comédia, põe a nu de forma muito inteligente e subtil as várias tensões individuais e colectivas nas relações dos indivíduos com os indivíduos e destes com os lugares na tentativa de construir uma pertença. Trata-se também de histórias de emancipação inscritas numa história emancipatória.

Para finalizar, dois exemplos fora do contexto português. O primeiro, refere-se a Shaun Tan com o seu livro Arrival[x], título original em inglês, Là où vont nos pères[xi], em edição francesa e Emigrantes[xii] em edição portuguesa. Esta novela gráfica muda é uma “verdadeira homenagem”, como o afirma o próprio autor, àqueles que têm de deixar um país, uma família, uma língua, uma pertença. Não gostaria de deixar de realçar que as diferentes traduções do título original, não obstante falarem sobre o mesmo objecto, convocam o olhar a incidir sobre pontos de referência diversos.

O segundo exemplo é o de Irina Crisis[xiii], com Migration Now, trabalho que integra um conjunto de trinta e oito artistas que se manifestam pro-imigração no contexto do debate sobre a reforma da lei da imigração nos Estados Unidos.

Após este exercício de sobrevoo sobre o conjunto de obras apresentadas, parece-me então fundamental perceber e assumir que a criação estética por quem vivenciou uma experiência migratória é uma entrada privilegiada para melhor apreender as questões ligadas às migrações porque a sua formulação é plural, multi-localizada e política[xiv]. É uma formulação-enunciação de dentro para fora em que o lugar de partida já é de fora, de margem.




* Título da exposição realizada por Marco Godinho (2012-2013)
[1] in HAMMOUCHE, Abdelhafid, «Le migrant et l’artiste comme figures de la modernité », Ecarts d’identité, nº86, septembre 1998, pp.1-5.
 
[2] Exposição organizada pelo Museu da Presidência da República, em parceria com a Fundação EDP . Esteve patente em Viana do Castelo entre Junho e Setembro de 2008 para assinalar o dia 10 de Junho - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e posteriormente, no Museu da Electricidade em Lisboa até dia 15 de Março de 2009.
[3] Exposição que reuniu vários artistas canadianos de origem portuguesa, patente em Toronto (Canadá) na Gallery 1313 em 2003.
[4] Exposição patente em Braga entre Dezembro de 2006 e Janeiro de 2007 que reuniu cinco artistas de origem portuguesa que desenvolvem a sua actividade artística em França e no Canadá.
[5] Aïda Kaouk, conservadora do Museu Canadiano das Civilizações, e curadora da Exposição “ces pays qui m’habitent”( Québec-2001)




[i] Marco Martiniello, Nicolas Puig et Gilles Suzanne, « Éditorial Créations en migrations Parcours, déplacements, racinements », Revue européenne des migrations internationales [En ligne], vol. 25 - n °2 °2 | 2009, mis en ligne le . URL : http://remi.revues.org/index4942.html DOI
[ii] Ética e Estética do Globalismo - Uma Perspectiva Pós-colonial” no âmbito do Fórum Cultural "O Estado do Mundo" um projecto multidisciplinar coordenado por António Pinto Ribeiro, comemorações do cinquentenário da Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro 2007.
[iii] Sharmistha Ray, WAY IN THE WORLD Does the term 'Diaspora Art' mean different things to different people? Should we bother using it in today's globalized times?, Art India Magazine, disponível em http://www.artindiamag.com/quarter01_01_09/lead_essay01_01_09.html
[v] “Un cachet marqué des mots ‘‘Forever Immigrant’’ est imprimé en traversant et enveloppement à l’infini, ou presque, la totalité des murs. Cette empreinte répétée rappelle ainsi des nuages mouvants qui se font et se défont dans le ciel dans une atmosphère brumeuse. Ce travail pose la question de l’immigration et de sa permanence incertaine. Ces deux mots soulignent la non-appartenance à un territoire” in Endless Time Searching Marco Godinho, 2013 Coédité par ‘‘Analogues’’ maison d’édition pour l’art contemporain, Arles & Galerie Hervé Bize, Nancy, France
[viii] Ambos editados pela Gráfica de Coimbra em 2011 e 2013 respectivamente.
[ix] ed Albin Michel, Paris, 2005.
[x] ed Arthur A. Levine Book, 2007
[xi] ed Dargaud, 2007
[xii] ed kalandraka,
[xiv] In Marco Martiniello, Nicolas Puig et Gilles Suzanne, « Éditorial Créations en migrations Parcours, déplacements, racinements », Revue européenne des migrations internationales [En ligne], vol. 25 - n °2 °2 | 2009, mis en ligne le . URL : http://remi.revues.org/index4942.html DOI
 
 
 
 
 
 
Referência Bibliográficas:
 
GODINHO, Marco Endless Time Searching, Coédité par ‘‘Analogues’’ maison d’édition pour l’art contemporain, Arles & Galerie Hervé Bize, 2013,  Nancy, France
 
HAMMOUCHE, Abdelhafid, «Le migrant et l’artiste comme figures de la modernité », Ecarts d’identité, nº86, septembre 1998, pp.1-5
 
MARTINIELLO, Marco, PUIG, Nicolas et GILLES Suzanne, « Éditorial Créations en migrations Parcours, déplacements, racinements », Revue européenne des migrations internationales [En ligne], vol. 25 - n °2 °2 | 2009, disponível em : http://remi.revues.org/index4942.html DOI
 
RAY Sharmistha WAY IN THE WORLD Does the term 'Diaspora Art' mean different things to different people? Should we bother using it in today's globalized times?, , Art India Magazine, disponível em http://www.artindiamag.com/quarter01_01_09/lead_essay01_01_09.html
 
SOMERVILLE, K. (2008) ―Transnational Belonging among Second Generation Youth: Identity in a Globalized World.‖ Journal of Social Sciences Special Volume, 10:23-33.
 

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