ENCONTRO
INTERNACIONAL
MULHERES
DA DIÁSPORA – LISBOA
Palácio
das Necessidades 24 e 25 de Outubro de 2013.
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Painel 4: MIGRAÇÕES E MIGRANTES –
CONHECER E SENSIBILIZAR
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Título: “Forever immigrant *”
Sofia Afonso
Centro
de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (CEHUM)
Observatório
dos Lusodescendentes (OLD)
Palavras-chave: lusodescendentes;
artistas; posicionamento crítico
Abstract:
Temos
vindo a assistir desde os anos noventa a uma crescente visibilidade da “arte em
diáspora” (fundamentalmente protagonizada por artistas africanos e de origem
africana e magrebina) como objecto de transculturalidade e de
transnacionalidade, como objecto que recusa a dicotomia, o binário entre dois
opostos - o Um e o Outro - e que contribui para o questionamento do hibridismo,
da dupla/tripla pertença, da (con)fusão identitária, linguística, pela
afirmação da necessidade de criar uma outra
constelação de recursos onde a [arte] “bien mieux que la “fragmentation
qu’impose souvent l’approche disciplinaire en sciences sociales, rend
infinimement mieux la “totalité” du mouvement (…)[1]. Trata-se portanto, de uma
mise en dialogue entre diversos
campos e métodos disciplinares.
Exposições
como “Lá Fora”[2],
“Sem Saudade[3]”
e “Cinco Autores Luso-descendentes”[4], só para citar três
exemplos, que reúnem um conjunto de artistas portugueses e/ou de origem
portuguesa, são mostras que possibilitam uma outra visibilidade da emigração
portuguesa. De facto, artistas franceses, belgas, luxemburgueses, canadianos,
americanos, ingleses, australianos, isto é, fotógrafos, realizadores, pintores,
músicos, escritores, contadores … de origem portuguesa têm, graças a estas
exposições tanto internacionais como nacionais, em diferentes espaços e
escalas, protagonizado um discurso de reinterpretação política e cultural das
sociedades em diálogo. Por outras
palavras, “les oeuvres sont présentées non pas comme témoins de l’ethnique,
mais plutôt comme les expressions d’une expérience sociale où le spécifique et
l’universel sont mis en évidence, l’un et l’autre et non pas l’un sans l’autre”[5].
Assim, esta comunicação pretende publicitar alguns
exemplos de uma produção estética que recusa uma
inscrição singular no topos da
emigração (portuguesa), isto é, que se recusa como (re)produção étnica da
experiência migratória, materializando e/ou reivindicando a construção de um
posicionamento crítico.
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A possibilidade de interseccionar o
discurso “científico” - de áreas como a economia, a história, a sociologia -
com outros discursos que se situam à margem dessa tutelaridade “académica”
permite-nos considerar uma perspectiva mais polifónica, complexa mas integradora
das questões que as migrações fazem emergir. Não se trata aqui de criar um
enunciado sobre um outro enunciado mas de recorrer a outros enunciados, a
outras matrizes para melhor apreender, ler, ver, sentir, conhecer e compreender
essa experiência universal e intemporal que é a da deslocação, da migração e o que
estes movimentos impactam tanto nas sociedade de partida como nas
sociedades de trânsito e finalmente nas sociedades de chegada, de acolhimento,
de instalação.
De facto, é no mínimo surpreendente
para não dizer desconcertante, chocante até, que em Portugal nos seja dado constatar
aforma como os media reproduzem sobre a emigração portuguesa um discurso
redutor, simplista, extemporâneo, erróneo, demonstrando desconhecimento sobre a
questão, quando a emigração é um eixo estruturante e constante na sociedade
portuguesa. Basta para isso ouvir, ler e assistir aos vários conteúdos para
perceber que a(s) representação(ões) sobre a emigração portuguesa se fixaram,
se cristalizaram, sem ter em conta o que se transforma(ou) no que permanece. De
igual modo, assistimos de forma demagógica, populista, à veiculação de uma
imagem jubilatória como é o caso actual com o tratamento que é dado a esta
“nova vaga” da emigração portuguesa, opondo estes novos emigrantes “aos
outros”. Esta negligência significa igual e simetricamente um desconhecimento
de quem somos, de onde estamos e do nosso futuro.
Continua a existir de facto uma
secundarização do campo de estudo da emigração portuguesa o que “autoriza”,
legitima a (re)produção de uma representação cristalizada
Participar neste painel representa a
oportunidade de poder responder a um desafio que sempre procurei que estivesse
presente nas minhas deambulações sobre a questão das migrações e mais
especificamente sobre a emigração portuguesa.
Aliás, parte do actual trabalho de
investigação que estou a desenvolver no âmbito do meu doutoramento pretende dar
lugar, voz, visibilidade a um outro discurso protagonizado por artistas
luso-descendentes que compõem uma constelação formada por geografias, percursos
e áreas artísticas diferentes. A “recepção” das criações destes artistas permite
tanto compreender o seu posicionamento enquanto produtores de um discurso
crítico, no espaço público à escala global, como permite reposicionarmo-nos
criticamente sobre o tema da emigração portuguesa.
Temos consciência de que hoje a
criação artística é cada vez mais estruturada pela mobilidade dos actores. Mas
se a criação artística é “produto” de pessoas ou de meios artísticos em
circulação - migrantes, exilados, refugiados, minorias… -, podemos assistir ou
à manutenção intencional de uma memória e de uma construção identitária ao
serviço de uma reinscrição de uma narrativa nacional ou, ao invés, a produções
artísticas e práticas relocalizadas, multi-localizadas, ou seja, que procuram
abordar algumas das questões centrais, desafiadoras das sociedades contemporâneas
como a identidade, a pertença, a tradição, a modernidade, a coesão social, as
questões de género, de diferença, de equidade[i],
numa ética e estética do globalismo[ii]
e numa abordagem trans-artes (cinema, literatura, vídeo, fotografia, instalação,
…).
Para muitos académicos, esta estética
que integra desde o início o múltiplo – multi-lugar, multi-pertença,
multi-identidade, multi-língua - porque faz referência pelo menos a dois
universos culturais, a uma transformação em dois sentidos, pode ser denominada
por arte migrante, arte diaspórica,
estética migrante, estética diaspórica.
No entanto, esta “etiqueta”/categoria não reúne unanimidade dada a ambiguidade
que parece produzir[iii]. De
facto, se foi graças a esta denominação que alguns artistas das diásporas (por
exemplo, africana, asiática) tiveram visibilidade, ganharam mercado (para
recorrer a nomenclatura neoliberal), também é verdade que esta denominação é
maioritariamente recusada pelos próprios artistas porque os inscreve numa
etnicidade, num mercado segmentado que nem eles próprios reivindicam. Recusam
assim um enclausuramento comunitarista. De facto, se esta inscrição, num
primeiro momento, pode significar corpo, matéria, visibilidade, num segundo
momento, reenvia para um fechamento. Estes criadores não se posicionam assim
como testemunhas de uma etnicidade mas sim de uma experiência social que
interpela toda a sociedade e que a desafia.
Foi precisamente esta atitude, este
posicionamento que tivemos a oportunidade de constatar aquando do primeiro Fórum
dos Luso-Talentos organizado pelo Observatório dos Luso-Descendentes, no Porto,
no ano passado: sim à rede luso-descendente
que permite divulgar, facilitar a mobilidade, a circulação das produções e dos
seus actores, mas não a uma inscrição
étnica, comunitária, de representação, de porta-voz de fechamento identitário.
Seria assumir uma posição num patamar de inferioridade quando estes actores
pretendem alcançar escala no mercado internacional, no mundo global.
Gostaria agora de apresentar alguns artistas
luso-descendentes que constituem o meu “portfolio” para a hipótese de trabalho
apresentada mais acima. Começo com Marco Godinho[iv],
artista luso-luxemburguês, a quem recorri para dar o título da minha intervenção
Forever
immigrant (2012-2013)[v]
De entre outros trabalhos, refiro
ainda algumas obras. Tenho em mim todos
os sonhos do mundo (2007) relembra a
miragem, a ilusão comumente construída na associação da emigração ao sucesso.
Associação actualmente apresentada, comercializada, propagandeada como o
leitmotiv da saída da crise colectiva e individual: só se consegue alcançar o sucesso
là fora. Home dislocation (2012) pode ser um jogo linguístico e multilingue
que reenvia para a própria competência comunicativa do autor que fala cinco
línguas. Multi-territorialidade que implica igualmente um multi-território
linguístico, isto é, um estar e ser em várias línguas o que acaba por criar uma
espécie de heteronímia linguística. Esta vivência em registo multilingue também
pode construir uma outra língua através de intersecções, de recomposições
linguísticas. Em última análise, ouso enunciar que o que muitas vezes é tratado
em estudos, artigos científicos como “bricolage linguístico” demonstrativo de
deficit é aqui reposicionado, valorizado como potenciador de uma nova
construção semântica. Departure (Destiny
of rupture) (2012) recupera os símbolos, os arquétipos que reenviam para a
emigração portuguesa masculina dos anos 50-60, interpelando-nos com a questão
do desenraizamento e de uma déchirure imaterial mas que marca o
corpo, a mente, os afectos.
Marco Godinho, como todos os artistas
que convoco para este exercício, não trabalha unicamente sobre estes temas que,
no entanto, integram o seu trabalho. Aborda-os, trabalha-os, numa dinâmica de
desdobramento, de multiplicidade de multi-lugares.
Passemos agora a referenciar três
artistas. Joe Lima[vi], que
nos seus trabalhos de pintura inscreve as sensações, de intranquilidade, de
solidão, de incomunicabilidade, de desencantamento. Teresa Ascensão[vii]
que nos seus trabalhos kitsch e num tom humorístico desconstrói, subverte os
dogmas da religião católica, dos papéis de género no seio da comunidade
portuguesa em Toronto. E Miriam Sampaio que centra o seu trabalho sobre o
resgate da memória, a construção da memória associada às relações entre a
ficção e a realidade.
De entre os trabalhos de pintura,
vídeo e instalação de Isabel Faria seleccionei Lost Castle (2006), instalação de um castelo de 26000 cartas que
integra uma série de longo fôlego intitulada Pecados Capitais e que faz alusão à fragilidade de um dos elementos
fundadores do projecto migratório e do regresso que é a casa – a construção da
casa. Finalmente, porque não se trata aqui de apresentar ou elencar de forma
exaustiva artistas portugueses ou de origem portuguesa que tenham vivenciado a
experiência migratória, mas sim de apresentar alguns criadores, é importante
aqui realçar que estes protagonistas movem-se igualmente nas diferentes
disciplinas/áreas como se o elemento do plural fosse inevitável, ou tivesse de
se declinar.
No que diz respeito à literatura,
escolhi dois autores que não se inscrevem na “literatura da saudade”, da “terra
natal imaginada”. São eles Isabel Mateus e Carlos Baptista. Isabel Mateus com
os seus dois romances Terra de Chiculate e Terra
da Raínha[viii]
reenvia-nos a dois períodos “marcantes” na história da emigração portuguesa, a duas
vagas migratórias intra-europeias, a primeira nos anos 50-60 para França e a
segunda dos anos 2000-2013, demonstrando um continuum
histórico do fluxo migratório - mesmo se os media, a opinião pública, a
universidade estiveram desatentos. Aliás, no primeiro livro, a autora pretende
dar visibilidade ao que permaneceu invisível como é o caso das crianças que
ficaram, que não partiram com os pais. No segundo, voltamos a deparar-nos com
esta consciência no sentido de enunciar o que mediaticamente é esquecido no que
diz respeito à “nova emigração”: os factores que “produzem” a emigração, as
dificuldades de inserção, de integração na sociedade de acolhimento, demonstra
a diversidade de trajectórias existentes na comunidade portuguesa na terra da
rainha. Carlos Batista, escritor que através do seu livro Poulailler[ix]
disseca brilhantemente a sua construção identitária dilacerada entre uma
pertença familiar e comunitarista subalternizada e uma socialização com um
exterior agressivo, discriminador, difícil.
Ruben Alves com o filme a Gaiola Dourada (2013), apesar de se
apresentar comercialmente como uma comédia, põe a nu de forma muito inteligente
e subtil as várias tensões individuais e colectivas nas relações dos indivíduos
com os indivíduos e destes com os lugares na tentativa de construir uma
pertença. Trata-se também de histórias de emancipação inscritas numa história
emancipatória.
Para finalizar, dois exemplos fora do
contexto português. O primeiro, refere-se a Shaun Tan com o seu livro Arrival[x],
título original em inglês, Là où vont nos pères[xi],
em edição francesa e Emigrantes[xii]
em edição portuguesa. Esta novela gráfica muda é uma “verdadeira homenagem”,
como o afirma o próprio autor, àqueles que têm de deixar um país, uma família,
uma língua, uma pertença. Não gostaria de deixar de realçar que as diferentes
traduções do título original, não obstante falarem sobre o mesmo objecto,
convocam o olhar a incidir sobre pontos de referência diversos.
O segundo exemplo é o de Irina Crisis[xiii],
com Migration Now, trabalho que integra um conjunto de trinta e oito artistas que
se manifestam pro-imigração no contexto do debate sobre a reforma da lei da
imigração nos Estados Unidos.
Após este exercício de sobrevoo sobre
o conjunto de obras apresentadas, parece-me então fundamental perceber e
assumir que a criação estética por quem vivenciou uma experiência migratória é
uma entrada privilegiada para melhor apreender as questões ligadas às migrações
porque a sua formulação é plural, multi-localizada e política[xiv].
É uma formulação-enunciação de dentro para fora em que o lugar de partida já é
de fora, de margem.
[1] in HAMMOUCHE, Abdelhafid, «Le migrant et l’artiste comme
figures de la modernité », Ecarts
d’identité, nº86, septembre 1998, pp.1-5.
[2]
Exposição
organizada pelo Museu da Presidência da República, em parceria com a Fundação
EDP . Esteve patente em Viana do Castelo entre Junho e Setembro de 2008 para
assinalar o dia 10 de Junho - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Portuguesas e posteriormente, no Museu da Electricidade em Lisboa até dia 15 de
Março de 2009.
[3] Exposição que reuniu
vários artistas canadianos de origem portuguesa, patente em Toronto (Canadá) na
Gallery 1313 em 2003.
[4] Exposição patente em
Braga entre Dezembro de 2006 e Janeiro de 2007 que reuniu cinco artistas de
origem portuguesa que desenvolvem a sua actividade artística em França e no
Canadá.
[5] Aïda Kaouk,
conservadora do Museu Canadiano das Civilizações, e curadora da Exposição “ces
pays qui m’habitent”( Québec-2001)
[i]
Marco
Martiniello, Nicolas Puig et Gilles Suzanne, « Éditorial Créations en
migrations Parcours, déplacements, racinements », Revue européenne des
migrations internationales [En ligne], vol. 25 - n °2 °2 | 2009, mis en ligne
le . URL : http://remi.revues.org/index4942.html DOI
[ii] Ética e Estética do Globalismo - Uma Perspectiva
Pós-colonial” no âmbito do Fórum Cultural
"O Estado do Mundo" um projecto multidisciplinar coordenado por
António Pinto Ribeiro, comemorações do cinquentenário da Fundação Calouste
Gulbenkian, Outubro 2007.
[iii] Sharmistha Ray, WAY IN THE
WORLD Does the term
'Diaspora Art' mean different things to different people? Should we bother
using it in today's globalized times?,
Art India Magazine, disponível em http://www.artindiamag.com/quarter01_01_09/lead_essay01_01_09.html
[v] “Un cachet marqué des mots ‘‘Forever Immigrant’’ est imprimé en
traversant et enveloppement à l’infini, ou presque, la totalité des murs. Cette
empreinte répétée rappelle ainsi des nuages mouvants qui se font et se défont
dans le ciel dans une atmosphère brumeuse. Ce travail pose la question de
l’immigration et de sa permanence incertaine. Ces deux mots soulignent la non-appartenance à
un territoire” in Endless Time Searching Marco
Godinho, 2013 Coédité par ‘‘Analogues’’ maison d’édition pour l’art
contemporain, Arles & Galerie Hervé Bize, Nancy, France
[viii] Ambos editados pela Gráfica de Coimbra em 2011 e 2013 respectivamente.
[ix] ed Albin Michel, Paris, 2005.
[x] ed Arthur A. Levine Book, 2007
[xi] ed Dargaud, 2007
[xii] ed kalandraka,
[xiv] In Marco Martiniello, Nicolas
Puig et Gilles Suzanne, « Éditorial Créations en migrations Parcours,
déplacements, racinements », Revue européenne des migrations internationales
[En ligne], vol. 25 - n °2 °2 | 2009, mis en ligne le . URL :
http://remi.revues.org/index4942.html DOI
Referência
Bibliográficas:
GODINHO, Marco Endless Time Searching, Coédité par
‘‘Analogues’’ maison d’édition pour l’art contemporain, Arles & Galerie
Hervé Bize, 2013, Nancy, France
HAMMOUCHE, Abdelhafid, «Le migrant et l’artiste comme
figures de la modernité », Ecarts
d’identité, nº86, septembre 1998, pp.1-5
MARTINIELLO, Marco,
PUIG, Nicolas et GILLES Suzanne, « Éditorial Créations en migrations Parcours,
déplacements, racinements », Revue
européenne des migrations internationales [En ligne], vol. 25 - n °2 °2 |
2009, disponível em : http://remi.revues.org/index4942.html DOI
RAY
Sharmistha WAY IN THE WORLD Does the term 'Diaspora Art'
mean different things to different people? Should we bother using it in today's
globalized times?, , Art
India Magazine, disponível em http://www.artindiamag.com/quarter01_01_09/lead_essay01_01_09.html
SOMERVILLE, K. (2008)
―Transnational Belonging among Second Generation Youth: Identity in a
Globalized World.‖ Journal of Social Sciences Special Volume, 10:23-33.
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