Contribuições
culturais de expressão feminina
As
artes
Isabel Ponce de Leão
CLEPUL / UFP
Consciência
e usufruto da cidadania plena é, naturalmente, preocupação primeira de quem demanda
a integração num país que não é o seu. Se, num contexto desenvolvido, a
cidadania persegue os direitos políticos, num outro menos desenvolvido ou mesmo
terceiro-mundista abarca problemáticas como a autonomia, a democracia e o
desenvolvimento.
Quanto
ao problema da autonomia, há que superar as tendências periféricas e traçar
políticas próprias; a democracia exige a participação activa, em termos
políticos, a salvaguarda dos direitos do homem em termos
sócio-político-económicos e, em termos sócio-culturais, uma formação que
permita estabelecer valores idiossincráticos. Já o desenvolvimento dar-se-á com
a utilização de modelos apropriados que não se restrinjam ao crescimento mas
lutem pelo desenvolvimento numa dimensão social. Logo, a cidadania terá que ter
em conta todo o tipo de relações: institucionais, económicas, políticas,
culturais, tecnológicas… aos níveis interno e externo.
No
caso da Mulher migrante, acresce o problema do género e a sua luta contra
preconceitos e tabus. Há contudo que humanizar o conceito e seguir Cornelius
Castoriadis quando afirma que a cidadania exige que se modifiquem as estruturas
sociais, as atitudes, a mentalidade, as significações, os valores, a e a
organização psíquica, exige ainda que se siga um processo educacional por forma
a que as instituições não sejam nem necessárias, nem contingentes, ou seja, a
aceitação do facto de que não há nem sentido recebido como dádiva nem garantia
do sentido, de que não há sentido a não ser o que é criado na e pela história
(1982: 88).
A
Mulher tem escrito a sua história de luta contra a exclusão nas sociedades
contemporâneas que, sendo complexas e diferenciadas, transformam-se,
assazmente, em sujeitos passivos reduzindo-se a meros receptáculos de direitos
garantidos por via externa.
Hoje
ela é cidadã do mundo, migra em busca
de um lugar onde estejam mais favorecidos os projectos económicos a nível
individual, sabendo que vai encontrar leis, instituições e direitos, que
tanto condicionam como legalizam. A Mulher Migrante tem contribuído para que a
sua implantação no novo território seja formatada do modo que mais lhes
convenha. Tal não é normalmente conseguido num curto lapso de tempo, mas a
instalação, mais ou menos prolongada, outorga-lhe uma gama de vivências que lhe
permitirá caldear a bagagem, geralmente tradicional da origem, com a
experiência recente, actualizada, e portanto geradora de possibilidades
acrescidas de se incorporar e de fazer reivindicações, sem prejuízo das
normas anfitriãs. Sendo uma trajectória comum nos processos migratórios, depende
de múltiplos factores, tanto exógenos, como endógenos.
Interessa-me,
por agora, ver em que medida a arte se institui factor integrador da Mulher
marcada pela quebra de identidade, a orfandade cultural e o desenraizamento
afectivo tão comuns nas movimentações dos povos. A actividade artística das
mulheres migrantes é hoje uma realidade e levanta questões para que se devem
procurar respostas coadjuvadoras de uma melhor integração / inclusão.
Qualquer
país ganha com a actividade artística de migrantes quer pelo conhecimento de
novas sensibilidades e diferentes emoções, quer pela repercussão do novo e do
diferente que, interagindo com o que existe, formatará novos modelos. O
cruzamento de sensibilidades e saberes geram a obra de arte aglutinadora de
culturas e divulgadora de idiossincrasias. Por outro lado, e crendo-se no
binómio arte / sociedade, as mutações quer artísticas quer sociais são
sistemáticas contribuindo também para a inserção do país na aldeia global.
A
arte contribui para a inserção no mercado de trabalho não só pelos postos que
pode gerar, como também pela sociabilização que propicia. Porque só existe se
consumida – entendendo-se por consumo muito mais que a aquisição, a simples
percepção – ela é também elemento aglutinador de saberes e sentires e de
reforço das relações humanas. Através da sua produção artística, a mulher
migrante marca o seu lugar na sociedade abanando o mercado da arte também
através do exotismo de novos produtos. Tratando-se de artes sustentáveis – e
todas o deviam ser – contribuem para a integração da migrante no mercado de
trabalho. Naturalmente que a facilidade de integração é maior no caso da
trabalhadora independente que acaba por criar novos postos de trabalho ganhando
um estatuto privilegiado no país de acolhimento.
Olhando
para o lado menos material da questão a arte apresenta-se como um domínio
propício a construções interculturais sendo, como é, expressão de criatividades
idiossincráticas. É justamente neste encontro de diferenças que se gera a
comunhão de saberes e de afectos e se demanda o cosmopolitismo de que o século XXI não abdica. A arte
assume, por si só, a superação de particularismos e difunde linguagens
universais propiciadoras de um ecumenismo prático.
Tendo
como certo que as políticas públicas e os seus agentes podem e devem tornar-se
mais amigos da criação artística de matriz intercultural, não será despiciendo
observar que ela se tem vindo a autonomizar e a tornar sustentável muito por
virtude da força da Mulher, mas também pelo gosto do diferente, a que atrás
aludi, vendo, o país de acolhimento, no novo produto, uma mais-valia para o
desenvolvimento do produto existente.
Embora as causas das migrações sejam,
sobretudo, não artísticas, pelo menos no caso de Portugal, a presença de
artistas migrantes altera completamente o mercado da arte. Sendo a mulher
minoritária, a sua obra mostra que a dimensão artística é cada vez mais
tributária da mobilidade e da diversidade cultural e marca de forma mais
decisiva o painel social. Ao valorizar o território das artes em relação a
outras categorias socio-profissionais, ela demonstra que os princípios
estéticos estão em constante reconstrução e torna-se, por vezes, ela própria protagonista
da obra de arte como acontece, e.g.
na ficção documental de Olga Gonçalves ou nas obras João de Melo, José Rodrigues
Miguéis ou Tiago Rebelo preocupadas em contribuir para o aclaramento destes
fenómenos migratórios, de contornos pouco nítidos e assaz confusos, onde as
relações inter-étnicas e a problemática das minorias parecem constituir uma das
maiores dificuldades. Lembre-se, a este propósito o recente filme La Cage Dorée (A Gaiola Dourada) de Ruben Alves, onde Rita Blanco assume o
estereótipo da porteira, grande êxito de bilheteiras em França e Portugal.
Uma corrente interessante em qua a Mulher
assume protagonismo é a chamada pós-colonialismo, movimento estimulado pela
obra Ocidentalismo de Edward Said que
defende a teoria que as sociedades coloniais ocidentais erigiram uma ideia de
oriente conotada com exotismo, perigosidade e subalternidade. Identidade,
etnia, classe e género convertem-se em temas primordiais da expressão artística
e os artistas, tanto ocidentais como não ocidentais, procuram inspiração em
formas artísticas que ultrapassam as fronteiras culturais. Trata-se de uma
tentativa de leitura do mundo contemporâneo com vista à estruturação de uma
cidadania multicultural, igualitária e emancipatória de formação humanística
cosmopolita. A arte caracteriza-se agora pela multiplicidade e pela
transversalidade tentando, sistematicamente, superar o paradigma moderno
precedente bem como o momento cronológico. Identidade e diferença são conceitos
que apontam para um espaço contínuo, sem fronteiras, onde o eu e o outro
partilham crenças e estéticas fazendo desmoronar posições dominantes e
subalternas como tão bem o demonstram obras da angolana Balbina Mendes -
angolana
Chamei
esta corrente estética porque é através dela que a mulher ganha um papel
preponderante pela multiplicidade de artes que desenvolve ao nível da pintura,
da tapeçaria, da cerâmica, da bijuteria... Não há razão, neste particular, para
se olhar para o papel da mulher migrante como subalterna, outrossim como a
grande impulsionadora da realidade artística que já tem o seu lugar marcado no
mundo das artes.
Paula
Rego, Maluda, Helena Almeida, Vieira da Silva e, embora noutro registo, Menez,
são cultoras das belas artes mulheres que, por motivos vários, abandonaram
Portugal para fazerem o seu percurso no estrangeiro onde, apesar de
dificuldades iniciais e tendo sempre em vista o país de origem, deram boas
provas de cidadania.
Milly
Possoz, Maria Pepa Estrada, Constância Nery, Balbina Mendes vieram até nós e
por aqui ficaram entre idas e vindas trazendo aqueles traços idiossincráticos
que marcam a interculturalidade emergente.
Umas
e outras, a sua história de vida, a obra feita fazem-me sustentar a crença que,
cada vez mais, a estética está ao serviço da globalização instituindo-se
elemento imprescindível da inserção nesta aldeia global onde todos queremos ser
felizes.
Sem comentários:
Enviar um comentário