Encontro
Mundial - Mulheres da Diáspora
“Expressões Femininas da Cidadania”
Lisboa,
24 e 25 de Outubro
Rimas de cidadania – uma viagem pelas
quadras de Ana Fontes
Aida Baptista
a
gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;
quando somos nós
que temos as dores;
Natália Correia
Introdução
Permitam-me
que comece por felicitar a Associação Mulher Migrante por mais uma atividade,
entre tantas outras que a sua história testemunha, cujo enfoque são as Mulheres
na Diáspora. Um país que desde sempre fez da migração um modo de vida, não
podia deixar de ter tido mulheres, desde os tempos mais remotos, a engrossar os
seus diversos fluxos migratórios. Tradicionalmente, eram os homens quem
primeiro partia, seguindo-se depois as mulheres - no âmbito dos casamentos por
procuração ou de movimentos de reunificação familiar.
Ao
longo da última década, e como é do domínio público, o desemprego tem aumentado
de forma exponencial e os dados que nos vão chegando dos organismos nacionais e
internacionais indicam que esta situação não sofrerá alterações nos anos que se
avizinham. Como consequência, o emprego, enquanto atividade remunerada e factor
de inserção social, começa por, em primeiro lugar, ser vedado às mulheres. Por
sua vez, os cortes salariais acabam por afectar também os sectores em que a classe
trabalhadora é maioritariamente constituída por mulheres. Segundo Odete Filipe[1],
«Quando estamos perante políticas que geram situações de recessão económica e
social, todos andam para trás, mas as mulheres são sempre mais atingidas».
Assim
sendo, não admira que estudos recentes demonstrem que, nos últimos anos,
tenhamos sido confrontados com a feminização da emigração, que o mesmo quererá
dizer que a iniciativa cabe às mulheres, passando esta a ser não só o sujeito
ativo da partida, mas também a mobilizadora de vontades para a decisão de
partir.
De
acordo com o estudo do professor da Universidade do Porto, o sociólogo João
Teixeira Lopes[2]
- realizado para a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, sobre a
recente vaga de emigração para a França -, «Esta nova vaga é feminizada,
qualificada, planeia (a viagem) e vai para França porque quer deixar de ser
jovem. Estão fartos. Em Portugal só podem ser jovens, isto é, precários,
intermitentes, constantemente adiando o futuro, permanecendo em casa dos pais,
sem qualquer capacidade de constituírem família».
Esta
amostra que o autor considera bastante feminizada, é, na sua perspectiva,
reveladora de um «grau de autonomia que mulheres e raparigas têm para sair do
país que não existia antes».
Faz,
por isso, cada vez mais sentido que se organizem iniciativas como esta, porque
é em sede própria que se devem debater as transformações que, em termos
evolutivos e de psicologia feminina, ocorrem com as mudanças que a emigração
provoca, tendo em conta a diversidade das diásporas em que as mesmas ocorrem.
Sejam
quais forem as geografias, o importante é avaliar e valorizar o papel que às
mulheres cabe como agentes de mudança no tecido familiar, social, empresarial,
artístico, académico e tantos outros, nem sempre contemplados numa primeira
leitura. Contudo, tenhamos em conta que, para além de um universo de mulheres
cujo nome teve direito a uma entrada em enciclopédias, compêndios de história
ou estudos da especialidade, muitas outras viveram no esquecimento a que o
berço ou as circunstâncias as condenaram.
Foi
com o propósito de entrar nesta cadeia de anonimato em que muitas têm vivido
aprisionadas que, perante o convite e desafio que me foram formulados para
participar neste painel dedicado às artes, me decidi por vos dar a conhecer Ana
Fontes.
Bilhete de Identidade
de Ana Fontes
Ana
Fontes nasceu em 1931, na freguesia de Santa Bárbara, Ilha de Santa Maria,
Açores. Como todos sabemos, a história dos Açores, por força da sua geografia,
não existe dissociada dos fenómenos migratórios, pelo que se não conhece
nenhuma família açoriana que, quer pela via oficial ou a da clandestinidade,
não tenha sido tocada pela emigração. Ana Fontes não fugiu à regra e, já órfã de pai e de mãe, viveu uma curta
experiência de dois anos em Cambrige, no Canadá, para onde partiu em 1972
casada por procuração. Apesar de os seus oito irmãos estarem a viver nos
Estados Unidos, Ana Fontes não hesitou em regressar ao aconchego da ilha-mãe,
onde hoje vive com os seus 82 anos, viúva de marido e ambições, que não seja a
de que alguém «olhe pela sua obra».
Esta
é composta de mais de 20 cadernos[3] de
prosa e quadras manuscritas e cerca de 600 peças de artesanato espalhadas pelas
diferentes divisões da sua modesta casa, como se de uma exposição permanente se
tratasse. O seu maior desejo era ser reconhecida como poeta popular e que, após
a sua morte, as peças de artesanato figurassem num museu da ilha. Como nos diz
o jornalista Nuno Ferreira[4],
que em 2012 fez uma viagem pelas nove ilhas dos Açores: « Hoje, Ana vive
inconformada com o desinteresse público e oficial pelo espólio. Já tem
oferecido peças e pergunta se queremos alguma. "Já cá vieram antropólogos,
veio um artesão brasileiro mas ninguém pega nisto. Eu tenho amor a isto, é a minha
família, gostava que alguém ficasse com ela"».
Até
hoje, viu apenas publicado um dos seus cadernos «a voz do linho»[5]
que a Secretaria Regional da Economia teve a feliz ideia de dar a conhecer,
numa edição de 500 exemplares, com uma belíssima encadernação e ilustração.
Estes
cadernos - apresentados maioritariamente no formato de quadras populares - que
respeitam de forma bastante perfeita o esquema da rima e da métrica a que se
submete este género literário - tratam dos mais variados assuntos. A viver na
solidão e isolamento da ilha, é através da escrita que expressa os mais
variados sentimentos e emoções, transformando-a no mais acabado exemplo do
exercício de uma cidadania interventiva. Longe do povoado - mas próxima da
informação que a rádio e, mais tarde, a televisão lhe facultam - tem sempre um
olhar muito atento ao tempo em que vive, não se coibindo de se interrogar sobre
as mais variadas questões, que vão da discriminição do género à crítica social
(mormente no que à igreja e aos costumes diz respeito), sem esquecer nunca a
desatenção com que as autoridades governativas tratam os mais desfavorecidos. O
conceito de justiça social é transversal a toda a sua obra, mas o que mais a
marcou e vem bem expresso em muitas das suas quadras e prefácios, sob a forma
de protesto e de revolta, foi o facto de se ter ficado apenas pelos dois anos
de escolaridade. Era uma das melhores alunas da sua sala, mas à família
faltaram os 62$50 que lhe teriam facultado o exame da 4ª classe, o passaporte
que lhe permitiria outros voos.
Ana Fontes entre o real
e o imaginário
Ao
olharmos para a forma como Ana Fontes organiza os seus cadernos, fica-nos a
certeza de que muito diferente teria sido o seu futuro, tivessem sido outras as
condições do berço em que nasceu. Para além de escrever numa letra legível e
bem desenhada (de quem tem a pretensão de vir a ser lida), preocupa-se com a
elaboração de um prefácio que, em jeito de introdução, explica o objetivo dos
conteúdos sobre os quais se propõe escrever. Define-se como analfabeta, sem que
isso represente uma diminuição das suas capacidades, já que tem perfeita
consciência do que faz e de como o faz: «Eu não tenho estudo de qualquer
espécie, tenho apenas a terceira classe do ensino primário, nasci em bom
terreno e cresci normalmente, mas esse terreno nunca foi adubado, nem cuidado
no tempo primitivo, e tudo à minha volta eram espinhos e abrólhos, a terra era
barrenta e selada»[6].
Os
cadernos encontram-se datados, divididos por capítulos, as páginas e as quadras
numeradas, pese embora uma ou outra falha na contagem (repetição de números),
próprio de quem escreve de forma repentista e nas condições em que o fazia -
noite dentro, à luz de uma candeia ou de candeeiro a petróleo.
Considerando a temática
deste Congresso, ganham particular destaque os seguintes cadernos: A Voz do Emigrante, 1986 (189 quadras),
uma reflexão sobre os conflitos interiores dos açorianos que habitam a
fronteira entre a conjugação de dois verbos: partir e ficar; A vida no século XX, 1988, cerca de mil
e quinhentas quadras em que faz a narrativa completa da sua vida pessoal e
familiar, inserida no contexto social de uma época a que não faltam todos os
pormenores; a segunda parte do caderno Histórias
Reais de Mortes, 1988 (321
quadras) em que conta a saga de um casal de emigrantes - José e Adelina Chaves - que partiu para a
América em 1968; Casas Branquinhas,
1988 (204 quadras), que mais não são do que casas de memória, abandonadas pelos
que emigram e, por último, Diário[7],
(Diário pessoal de Ana Fontes de 68 anos, natural de Sta Maria, Açores, no qual
descreve pormenorizadamente a viagem que realizou nos anos 90 aos E.U.A., país
onde tem 3 gerações de família emigrada, 84 membros). Col. particular de Ana
Fontes, Açores, 14 de Janeiro de1999.
A
verdade é que toda a literatura popular que Ana Fontes produziu poderia ser
explorada em vários dos painéis aqui representados. Contudo, como estou
incluída no das Artes, debruçar-me-ei sobre um outro, intitulado Artesanato, por, em minha opinião,
revelar a seguinte originalidade: Ana Fontes, poeta popular, dialoga com Ana
Fontes, artesã. Ou seja, serve-se das 578 quadras que compõem o manuscrito para
nos dar a conhecer as peças por si confeccionadas nos mais diversos materiais,
muitos deles enviados por familiares a residir na América.
O
registo que utiliza tanto pode ser o da simples descrição na 3ª pessoa, como
passa por personificar as personagens idealizadas, dando-lhes voz na primeira
pessoa, ou ainda o do diálogo com as peças, numa teatralização perfeita do
papel que lhes confere e do que delas espera. Elas ganham vida quando,
reveladoras de uma genuína espontaneidade, entram na narrativa e se situam no
tempo, no espaço e na função que lhes é atribuída.
Testemunha
o Padre Jacinto Monteiro[8]
que tudo o que lhe vem à mão é reciclado. «Assim, garrafas e garrafões
revestidos de fazenda, transformam-se em patas, perus e galinhas achixadas,
poedeiras, e seus respectivos comparsas, em trajes de gala, de crista vermelha
e papo empertigado e farto. De latas de coca-cola, e de plásticos faz imagens
de santos, metidos em oratórios, por ela fabricados. Com folhas secas
entrelaçadas fabrica frágeis vasos e com ramos de giesta rija e grossa faz
toscas mesas e cadeiras, com coxins de retalhos de variegadas cores, mais
apropriadas para salas de casas solarengas». Esta colecção de figuras é
designada por Tio Camacho e Angelina Mariante[9]
como «arte ingénua e primária» concebida por «uma mente aberta, fantasiosa, um
imaginário de apreço e receio, de exprimir o visto e o nunca visto, de criar
sem ataduras ao interesse da moda ou do que fica bem nas feiras de artesanato».
Posta
perante o dilema de ter de vos dar alguns exemplos do que foi dito, vou
mostrar-vos algumas peças de artesanato, acompanhadas das respectivas quadras,
cuja seleção (peças e quadras) são de minha inteira responsabilidade. A escolha
prendeu-se com:
a) o pormenor e importância das figuras
representadas, como foi o caso do seu casamento:
[1] Odete
Filipe, Comissão para a igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP-IN, As Mulheres contribuem para o
desenvolvimento do país, Revista MDM movimento democrático de mulheres,
2013.
[2] Jornal Mundo
Português, p. 12.
[3]Renascer, maio de 1985 (546 quadras); Vóz dum Emigrante,1986 (189 quadras); A morte é divórcio, fevereiro de 1987
(212 quadras); Vida do Séc. XX,
fevereiro de 1988 (cerca de 1500 quadras); Artesanato, fevereiro de 1988 (578
quadras); História do Linho,
março de 1988 (28 quadras); Poemas
Românticos Decorados, março de 1988; Orações
decoradas, março de 1988; Histórias
Reais de Mortes, Abril de 1988 (321 quadras); A fé é um dom de Deus, maio de 1988, prosa; Ilha de
Santa Maria, outubro de 1988 (216 quadras); Ecos aos astros, novembro de 1988 (643 quadras); Casas branquinhas , Dezembro de
1988 (204 quadras); O acidente do Boeing 707, Agosto de 1989 (373 quadras); A vindima de S. Lourenço, Outubro de
1989 (315 quadras); Amor Falso é Traição, Outubro de 1989 (184 quadras); Viagem
Atribulada, 1993, prosa; Diário, 1999 (prosa e quadras); A morte de meu marido, 2004 (200
quadras); Pranto Secreto sem Voz,
julho de 2005 (423 quadras e 18 sextilhas); Realidades
em Contos Pontos (prosa, sem data);
[4] Autor de
Portugal a Pé, Edição Vertimag,
Revista Epicur e Café Portugal (revista on line).
[5] a voz do linho, 2001, Edição da Secretaria Regional da Economia, Centro Regional de Apoio ao
Artesanato
[6] Caderno
manuscrito A vida no séc. XX.
[7] Exposto
em Traços da
Diáspora Portuguesa, exposição
organizada pelo Museu da Presidência da República e Secretaria de Estado das
Comunidades Portuguesas, 2007, na Gare Marítima de Alcântara - Salão Almada
Negreiros.
[8] In a voz do linho
[9]A cabana
do Tio Tio, Companhia de Marionetas, in a voz do linho,
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