Quem parte? Os rostos da emigração portuguesa – A Terra do Chiculate e A
Terra da Rainha de Isabel Mateus
Isabel Maria Fidalgo Mateus (Escritora – Reino Unido)
Je m’aperçois que
je cherche toujours les signes de la littérature dans la réalité.
Annie Ernaux
Introdução
O fenómeno coletivo da emigração portuguesa iniciou-se
com a Empresa dos Descobrimentos e originou uma Literatura de Viagens em que
abundam Cartas, Diários de Bordo e Relatos
ou Relações de viagem redigidos por
missionários, soldados, aventureiros, capitães ou por homens que vão na
companhia de grandes navegadores, quando não são estes que os escrevem, cujo
objetivo principal consistia em descobrir, conquistar, inventariar e evangelizar
novas terras, com o fito de engrandecer a metrópole portuguesa à medida que se
aumentava o Império Ultramarino. Na génese do enorme fluxo migratório do século
XVI, que não mais teve fim, e do que (ainda) se verifica na segunda metade do
século XX e no novo milénio, estão a situação geográfica de Portugal (país
bordejado pela costa atlântica e fronteiriço com Espanha, que lhe veda a
Europa), os magros recursos naturais e o seu fraco desenvolvimento económico.
Se a República obrigava os seus filhos mais desfavorecidos a abandonar a
Terra-Mãe, o governo do Estado Novo de António Oliveira de Salazar (1932-1968)
não vem alterar neste campo a situação instalada. Durante mais de quarenta
anos, apesar da estabilidade política assegurada pela Ditadura e do pagamento
da dívida externa, bem como do controlo interno das finanças e da economia, a
leva de emigrantes para o Brasil, África e, nos anos sessenta, para França e a
Alemanha é uma realidade. Na “Novíssima
fase emigratória, abrangendo a viragem entre os dois séculos e o primeiro
decénio (e o segundo) do século XXI” (Rocha-Trindade, 2013: 106) e devido ainda
principalmente às razões económicas da emigração tradicional, situa-se o
momento presente de uma realidade do país que se repete: “E Portugal, “o país das
migrações sem fim”, retoma a sua tradicional característica de país emissor”
(Rocha-Trindade, 2013: 107).
Ao emigrante da época de Quinhentos, à exceção de
missionários e soldados, motivava-o a cobiça pela riqueza fácil e o rápido
regresso à pátria enquanto aquele que partiu “por uma vida melhor” desde os
anos 60 a finais dos anos 70 para França se estabelece se não definitivamente
pelo menos o tempo suficiente a fim de levar uma vida folgada no país de
origem. O que parte para o Reino Unido na década de 80 e, sobretudo, a partir
dos finais da década de 90 e em levas sucessivas de 1990, 2000, 2010, dando
continuidade o ciclo migratório intraeuropeu, incentivam-no as melhores
condições de vida e tende para “uma muito menor duração média das estadias no
estrangeiro, assumindo nele a migração temporária um considerável predomínio”
(Rocha-Trindade, 2013: 106).
São precisamente os
rostos da emigração portuguesa destas duas épocas migratórias mais recentes que
me proponho abordar ao longo do meu texto, incindindo nos meus livros A Terra do Chiculate – Relatos da Emigração
Portuguesa e A Terra da Rainha –
Retratos Portugueses no Reino Unido. Vou fazê-lo tendo em conta o meu
discurso literário – como escrevo e o que escrevo – e a receção das minhas
obras aquém e além-fronteiras, o que também me leva a refletir sobre a minha
motivação para esta forma de registo.
O discurso literário: as obras A Terra do Chiculate – Relatos da Emigração
Portuguesa e A Terra da Rainha –
Retratos Portugueses no Reino Unido
No livro bilingue O
Naufrágio de Sepúlveda/A Tragic Story of the Sea publicado no âmbito do
Congresso Internacional – Lisboa 2008 intitulado “Do Brasil a Macau: Narrativas
de Viagens e Espaços de Diáspora” João Almeida Flor diz: “Impérios e esferas de
influência surgiram e dissiparam-se mas o que subjaz a estes esforços
expansionistas, a um determinado nível, são práticas e discursos de viagem. Os
impérios, tantos formais como informais, são construídos e mantidos através de
actos e textos de viagem e materializam viagens sob inúmeras formas”. Por sua
vez, na entrada do Diário XI, que
serve de epígrafe à minha obra A Terra do
Chiculate – Relatos da Emigração Portuguesa, Miguel Torga afirma que o
discurso literário de viagem deve ficar a cargo daquele que o experienciou no
presente, fazendo referência à Literatura de Naufrágios iniciada na época de
Quinhentos:
“Lião, 25 de Agosto de 1970 – O drama da emigração...
(...) O cônsul descreve, os jornais relatam, os filmes documentam, eu próprio
posso agora testemunhar. Mas uma coisa é ser bombeiro, e outra arder no
incêndio. Da mesma maneira que não houve espetadores impessoais à altura da
História Trágico-Marítima (nem Camões cantou convincentemente o naufrágio de
Sepúlveda), que teve de ser contada pelos reais protagonistas, também agora só
algum destes labregos, que se atropelam como numa jangada, a ver se conseguem
sobreviver, poderá um dia ser o cronista capaz da História Trágico-Telúrica que
viveu, por todas as razões – de tempo e de lugar – mais dilacerante ainda do
que a outra” (Torga, 1999: 1188-1189).
N’A Terra do
Chiculate, publicada em 2011, são de facto esses “reais protagonistas” de
que fala Torga que vão narrar a história deles quase sempre através de uma
narrativa de primeira pessoa. A narração desta “História Trágico-Telúrica” que
deu e que ainda dá azo à “História Trágico-Marítima”, já assinalada por
Bernardo Gomes de Brito com a obra precisamente denominada História Trágico-Marítima (1735-1736), seguiu os mesmos meandros do
subgénero da Literatura de Viagens sob a forma de relato. Não se trata agora da
compilação feita por aquele autor dos naufrágios resultantes da emigração de
Quinhentos em que dos vários relatos se destaca a narrativa do naufrágio dos
Sepúlvedas e cuja intertextualidade é evidente no relato intitulado “Relação da
Mui Notável Perda (da Noiva) ou História Trágica do Emigrante” presente na
segunda parte d’A Terra do Chiculate,
mas das narrativas dos que nos anos sessenta deram “o salto” para França. À
distância de vários séculos entre uma aventura e a outra procuramos os rostos
da emigração portuguesa da segunda metade do século XX e do primeiro decénio do
século XXI através da escrita autobiográfica (o eu plural) e do método de prospeção aliado à viagem física.
As várias vozes dos depoimentos de testemunhos d’A Terra do Chiculate presentes nos
relatos que constituem a narrativa refletem “os sentimentos das personagens” e
“os trabalhos que passaram” resultantes da sua deslocação física ao encontro da
alteridade do Outro. Porém, o conteúdo do relato e as suas três etapas –
viagem, naufrágio, desterro e fim – deram ainda lugar à forma do livro. A obra
está dividida em conformidade com um relato de viagem, mas registando-se
inversão nas fases do percurso. À primeira parte corresponde o naufrágio que
acontece antes da partida como se se tratasse duma narrativa em media res e aqui já pudéssemos ouvir a
voz do Velho do Restelo em relação às consequências (negativas) provenientes da
largada do Reino; na segunda inicia(m)-se a(s) viagem(ns) Portugal-França e na
terceira “(desterro) e fim” faz-se uma reflexão aturada da peregrinação do eu.
A criança é o rosto do “naufrágio”. E como se chegou até
esse rosto? Este livro é até certo ponto autobiográfico, na medida em que o eu da narradora, que ficou (“abandonada”)
aos cuidados da avó materna quando os seus pais deram “o salto”, se identifica
nos aspetos principais aqui mostrados com a autora d’A Terra do Chiculate. Isto não significa que a escritora não
tivesse auscultado ainda um leque bastante amplo de pessoas implicadas direta
ou indiretamente na vaga emigratória da época e cujas experiências individuais
contribuíram para a representatividade de um mesmo destino coletivo. De resto,
o recurso a esta metodologia assiste o processo criativo do livro na sua totalidade
com pequenas nuances e consoante o teor do relato em causa.
Até à data da publicação d’A Terra do Chiculate sabia-se que o número de crianças e os jovens
que tinham ficado em Portugal era avultado, mas esta primeira parte do livro é
inovadora porque mostra de forma pormenorizada os efeitos da viagem física dos
pais, e deles nalguns casos, na viagem psicológica pela qual passaram os filhos
de pais emigrados em França. Em suma, é o “desmembramento” familiar vivido e
partilhado do lado de Cá através de uma voz que vai ganhando força à medida que
os anos de abandono e de ausência aumentam. No livro cruza-se aquela que experienciou,
ou seja o sujeito do enunciado com o sujeito da enunciação que narra, passadas
quase quatro décadas, as memórias da infância dividida entre a aldeia rural e o
país estrangeiro que a separou do núcleo familiar. A perda parece maior do que
o ganho sobretudo no que diz respeito à questão dos afetos. Naquele quadro
amplamente negativo ao nível sentimental, porque marcado pela orfandade materna,
até o bom efeito do impacto materialista saía desvalorizado. Na narrativa o
desencontro entre mãe e filha é por demais evidente e mesmo irreconciliável: “Eu
precisava do pão, mas que não me tirassem o mimo (da avó). Para minha mãe, o
pão destronava por completo o amor e os afagos do dia-a-dia” (Mateus, 2011: 54).
Apenas na terceira parte da obra o narrador autodiegético
voltar a ser a personagem principal do narrativa tal como na primeira parte do
livro e aí percebemos, explicitamente, através da narração que aquela se
deslocou fisicamente a França pela primeira vez, pois na segunda parte da obra
intitulada viagem(ns) há a referência ao encontro da Autora da obra como
“recoletora de estórias” com os emigrantes que passaram a fronteira clandestinamente
nos anos sessenta, através da ilustração de uma fotografia. Aqueles descrevem a
viagem ao mínimo pormenor e lembram-se ainda do dia da partida, do que levavam
no farnel, o que comiam e bebiam, de cores e cheiros e de tantas outras
peripécias do percurso.
Dos depoimentos presenciais que a autora recolheu na “Salle
des Groupes politiques de Metz”, em França, surgiu o relato “Memórias
cinzeladas ou vozes do salto”. Eram homens e mulheres quase todos em idade
avançada. Tinham passado a fronteira há quase meio século e alguns deles já não
eram assim tão novos quando deixaram Portugal para trás. Havia a exceção de
Ermelinda que guardava na retina dos seus olhos a lembrança da paisagem árida e
seca daquele verão tórrido, a mãe a palmilhar caminho na sua dianteira, com um
cesto da comida enfiado no braço e cuja toalha do Benfica resguardava, e que
sentia ainda a pressão dos seus dedos pequeninos nas tesouras que guardava nos
bolsos de chita para autodefesa. Mas a
narrativa passou ainda por outros crivos: a perscrutação e o aproveitamento da
informação que daria rosto a outros “relatos de aventuras reais” e a que a
recoletora de estórias juntaria mais dados vindos de outras fontes. Os livros de
ficção que lera, os artigos científicos que consultara, as fotografias
representativas da emigração portuguesa que vira, os filmes que visionara
tinham-na munido dos demais elementos de que precisava para tornar o discurso
literário mais rico, mais próximo da realidade migratória, mais autêntico e
verosímil. Cada uma das pessoas que se confessava tinha o seu próprio modo de
se exprimir e uma profundidade e conhecimento da matéria que dava voz ao povo.
Porém, é indubitavelmente na terceira parte da obra “(desterro)
e fim” que a escritora se torna viajante ao seguir, acompanhada por cicerones, as
pisadas dos argonautas que chegaram em força entre os anos sessenta e setenta e
ao consultar o seu bloco de notas, no qual a par de tantas outras informações
relativas aos diferentes aspetos da cidade de Nancy figuravam um número e o
nome de uma rua, cuja importância nenhum guia de viagens ou consulta de website
tinha evidenciado. A viagem física
proporcionava-lhe no presente o regresso ao solo francês que guardava na
memória desde a infância: “O número 45, da Grande Rue, esperava por mim há
quase 40 anos, no coração de Nancy, na Lorraine” (Mateus, 2011: 177). Tanto os
referidos detalhes, como os pormenores de determinados lugares da cidade
frequentados pelos portugueses são tão familiares para ela como se lá tivesse
vivido e confraternizado com os demais portugueses ou então podendo comparar-se
às imagens vívidas do percurso dos que passaram a fronteira ilegalmente como no
relato “Vozes memórias cinzeladas ou as vozes do salto” aqui já oportunamente
referido.
Por seu lado, na obra A
Terra da Rainha os retratos dos portugueses no Reino Unido foram tirados em
prosa e poesias. No texto narrativo também encontramos relatos e histórias de
vida e podemos exemplificar com “Uma história exemplar ou Thetford’s most famous son’s”, mas o género lírico captura melhor e
de forma ainda mais concisa a nova vaga de emigração para Inglaterra. Atentemos
então no título do poema que escolhemos do livro para retratar o novo fluxo da
emigração para este país, mas que também pode elucidar o que se destina à
Europa e ao mundo: “Parte, e faz-se à vida”. Será legítimo perguntarmos de novo
quem parte antes de iniciarmos a análise do poema neste âmbito? É sem dúvida o
Português do poema “Pátria” e que dá início ao livro. Mas atentemos acima de
tudo no seu perfil, analisando, ainda que sumariamente, o referido poema. Na segunda estrofe do poema é logo identificado o licenciado
que parte na atualidade:
Leva na sua bagagem
O canudo por estandarte
Faz a sua aterragem
Vai fazer a sua parte
(Para a sua sustentação
Entre desafio e escravidão
O pobre jovem licenciado
Recorre ao voluntariado):
Eu sou jornalista
Eu sou desenhador projetista
Eu sou arquiteto
Eu sou geógrafo
Eu sou historiador e mestre em
relações públicas
Eu sou professor
Eu sou linguista
Eu sou sociólogo
Eu sou relações públicas...
Aliás, em mais de metade dos versos da estância é feita uma
enumeração de cursos dos graduados que lá fora não vão encontrar trabalho nas suas
áreas. De fato, esperam-no os trabalhos mais humildes que são referenciados na última
estância do poema como, por exemplo, “operários da construção civil”,
“empregados de restaurante, de balcão e de café” e “cleaners”. Afinal, sai do país para ocupar os mesmos lugares e
fazer os trabalhos daqueles que partiram nos anos 60/70 para França. Daí a
intertextualidade propositada com o poema “Trova do Emigrante” de Manuel
Alegre.
Como também é referido no poema, há uma minoria que chega
para trabalhar na sua área e fazer carreira. Vejamos:
Formados com mais
vantagem
Outros fazem
baluarte
De (aqui) exercerem
sem prensagem
Estudo, engenho e
arte:
Eu sou engenheiro
(Informático,
programador, eletrónico, eletromecânico,
biomecânico,
bioquímico, agrícola)
Doutorado em
engenharia de telecomunicações
Nutricionista,
Anatomista
Animador e produtor
artístico
Mestre em ciências
farmacêuticas
Fisioterapeuta
Contabilista e
auditor
Gestor comercial
Financeiro
Enfermeiro
Economista
Psicólogo clínico
Licenciado em
Turismo
Professor de
Ciências...
Contudo, é preciso informar e esclarecer que nesta nova
vaga da emigração também estamos perante a chamada migração tradicional, isto
é, a mão-de-obra com poucas qualificações também “abandona” a pátria. Mas
arrisca a saída, porque o seu país nada lhe pode oferecer como vemos pela
primeira estrofe e sobretudo a penúltima, que alarga a lamúria iniciada no
início do poema em forma de refrão:
Não tem sede de
aventura
Nem quis a terra
distante.
A vida o fez
viajante.
Se parte e segue a dança
É que a sorte lhe
foi dura
E um homem também
se cansa.
Há um despovoamento contínuo que atinge (quase) todos os
portugueses que “Aterraram, e se fazem à vida” na Terra da Rainha e por todo o
lado.
A receção das obras
A Terra do Chiculate e A Terra da Rainha: por que motivos escrevo?
Como já tive oportunidade de referir, a obra A Terra do Chiculate tem muitos pontos
em comum com a História Trágico-Marítima
ao nível da sua forma e do seu conteúdo. De facto os livros de viagens e
naufrágios trouxeram um novo modelo literário e novas formas de abordagem das
questões sociais desmitificando os dramas do mar “que já nada têm a ver com os
modelos literários da Antiguidade clássica, e que se afastam paulatinamente dos
padrões humanísticos na sua forma e até no conteúdo: era uma nova literatura
com novas ideias e novos conceitos de verdade e de moral” (Dias e al., 2001;
599).
Sabemos que nos primeiros tempos os relatos de viagens
foram transmitidos por via da tradição oral e que só mais tarde foram impressos,
devido às exigências de um vasto público “ávido de informações sobre as
vicissitudes da expansão e interessado no sensacionalismo de algumas notícias”(Flor,
2008; 18). Foi precisamente o caso da Relação
da mui notável perda do galeão grande S. João que, por 1555-56, terá sido
publicada num folheto volante intitulado História
da mui notável perda do galeão grande S. João. Este teve edições sucessivas
com elevadas tiragens, tendo passado “de um circuito alargado de consumo literário
a um círculo de produção mais restrita” e acabando “por aceder ao âmbito da
literatura legitimada”, quer ao nível de obras nacionais como no caso d’Os Lusíadas (estâncias 46-48, Canto V)
ou em obras internacionais. Não podemos ainda esquecer o caráter didático e
catártico deste subgénero de literatura com “capacidade de assimilar e sublimar
a vivência trágica, incorporando-a no seu património discursivo. Para mais,
nestes casos, explorar a potencialidade estética do sofrimento e da morte, real
ou figurada, também significa a possibilidade de exacerbar o horror e a
compaixão, com objetivos libertadores ou catárticos”(Flor, 2008). Por sua vez, a História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar
Lopes, no capítulo VII dedicado à
Literatura de Viagens Ultramarinas, refere que estes folhetos de cordel eram “dirigidos
a um público numeroso em que tanto entrava o humanista ou cosmógrafo como o
simples curioso de aventuras e de armadilhas”. Ainda no capítulo em que se
explica o “caráter geral da literatura de viagens” adianta que “Os narradores
da História Trágico-Marítima sublinham intencionalmente os episódios patéticos
e dolorosos de maneira a impressionar a sensibilidade do público, mas fazem-no
em linguagem correntia” (Saraiva, 2005; 296).
Falta-me agora explicar por que razões, passados alguns
séculos, dou continuidade à Literatura de Viagens de Quinhentos apropriando-me
de alguns dos seus aspetos. Em primeiro lugar, porque a temática é a mesma e o
público implicado e interessado no assunto também não é muito diverso do
daquela época. É certo que a viagem que o narrador enceta n’A Terra do Chiculate se baseia no
conhecimento e na troca cultural e humana em vez das narrativas descritivas e
lineares dos séculos anteriores, que alguns críticos consideram não terem
passado de um nível de reportagem. Mas também temos de anuir que o que é mais
pertinente nesta situação é a coincidência das duas obras no ponto essencial
que parte do conhecimento e que conduz à sensibilização para dar valor ao humano. Ambas as obras se centram nos
sentimentos das personagens e nos trabalhos que passaram. Se na Relação da mui notável perda do galeão
grande S. João se contam os grandes trabalhos, e lastimosas coisas que
aconteceram ao capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, e o lamentável fim que ele, a
sua mulher, e filhos, e toda a mais gente houveram na Terra do Natal, onde se
perderam a 24 de Junho de 1552”, n’A
Terra do Chiculate, e como veremos em certa medida no livro A Terra da Rainha, também partimos do
individual para o coletivo para avaliar o sofrimento e a morte real ou
figurada.
A leitura dos relatos por pessoas que se identificam nas
suas páginas, que têm a mesma voz, as mesmas ansiedades e que enfrentam ou
enfrentaram as mesmas adversidades é mais gratificante para elas do que outros
registos, onde os números e as teorias acerca da temática das migrações saem
valorizadas em detrimento dos verdadeiros agentes do fluxo migratório da
história do país: os portugueses.
Ora, na obra A
Terra da Rainha também é com muita facilidade que o leitor sente empatia,
despertando nele inclusive um sentimento catártico quando aquele se identifica
com as vicissitudes dos seus compatriotas nos poemas e nas histórias narradas e
no percurso do próprio eu, que se desloca de Portugal para o Reino
Unido e nas suas constantes deambulações na pátria de acolhimento à procura
daqueles que estão a viver a experiência no novo país e ainda nas suas visitas
feitas com regularidade à pátria: “Que visito muita vez” (Mateus, 2013; 18).
Conclusão:
Como ficou demonstrado naquilo que aqui foi exposto a
minha escrita autobiográfica veio dar continuidade à Literatura de Viagens.
Contrariamente à opinião de Cristóvão Fernando que afirma que este subgénero terminou
nos finais do século XIX, Peter Hulme, Paul Fussell e outros críticos literários
da atualidade consideram que a Literatura de Viagens no século XX e inícios do
século XXI é a viagem como preocupação do social. Tal como sucede nas obras A Terra do Chiculate e A Terra da Rainha interessam os rostos e
não os números, o indivíduo e não a massa. Importa, afinal, nesta era renovada
de migrações e de migrantes conhecer para sensibilizar, desmitificando clichês
através da criação de contra clichês ao mesmo tempo que se expandem e completam
informações de outros registos.
Acredito que o meu discurso literário é representativo
dos rostos da emigração intraeuropeia da segunda metade do século XX e no
momento presente e que se revela adequado tanto para atingir um público leitor
pouco instruído, como um público leitor culto, ou melhor, com mais
qualificações.
Bibliografia
BRITO,
Bernardo Gomes de, História Trágico-Marítima
(Volumes I e II). Lisboa: Publicações Europa-América, Coleção Livros de
Bolso n.º 275 e 278.
CRISTÓVÃO, Fernando (coord.), Condicionantes culturais da literatura de viagens. Estudos e
bibliografias. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.
Dias, Aida, e tal., História
da Literatura Portuguesa (vol. 2). Lisboa: Publicações Alfa, 2011.
FLOR, João Almeida (coordenação e introdução) & John
Elliot (tradução e notas), O Naufrágio de
Sepúlveda/A Tragic Story of the Sea. Lisboa: Centro de Estudos Anglísticos
da Universidade de Lisboa, 2008.
LANCIANI, Giulia, Os
Relatos de Naufrágios na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII.
Lisboa: Biblioteca Breve,1997.
MATEUS, Isabel, A Viagem de Miguel Torga. Coimbra: Gráfica de Coimbra 2, 2007.
MATEUS, Isabel, A Terra do Chiculate – Relatos da Emigração Portuguesa. Coimbra:
Gráfica de Coimbra 2, 2011.
MATEUS, Isabel, A Terra da Rainha – Retratos Portugueses no Reino Unido. Coimbra:
Gráfica de Coimbra, 2013.
ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz & Alves, Isabel
Ferreira (coord.), Seminário A Emigração na
Primeira República. Fafe: Câmara Municipal de Fafe, 2013.
SARAIVA, António José & Lopes, Óscar, História da Literatura Portuguesa.
Porto: Porto Editora, 17.ª edição, corrigida e atualizada, 2005, p. 293.
TORGA, Miguel, Diário
XI. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, pp. 1188-1189.
Sem comentários:
Enviar um comentário