Casa e Diáspora nos
filmes do Doc Lisboa 2012
Joana Miranda -
Universidade Aberta/CEMRI
Como
Stock (2010) refere no âmago do conceito de diáspora reside a imagem de uma
casa recordada que se recorta a uma dada distância espacial e temporal. Este
lugar de origem pode constituir o foco de uma ideologia de regresso (“ideology
of return”) sustentada (Brah, 1996: 180).
Este
lugar pode figurar, ainda, como a casa no presente ou pertencer exclusivamente
ao passado. Pode ter sido deixado recentemente ou há gerações atrás, pode não
mais existir ou ser ainda o destino de viagens regulares, pode ser o local de
nostalgia e pesadelos ou, simplesmente, um lugar de aconchego e de proteção,
intrinsecamente associado aos sentimentos de afeto pelos familiares mais
próximos.
As
memórias da casa não são, como sucede em relação a todas as memórias, fatuais
mas antes reconstruções fluidas, simbolizações metafóricas da pertença. Os
imigrantes de primeira geração podem relacionar as memórias com as suas
vivências prévias à emigração mas os de segunda geração, na maioria dos casos,
mais não têm do que memórias fragmentadas e decorrentes das narrativas contadas
pelos seus pais e avós. O passado encontra-se em permanente reconstrução, em
relação com um presente que se vai vivendo e com um futuro que se vai
antecipando e imaginando, futuro de regresso às origens ou de permanência no
lugar de destino. O que se recorda e como se recorda a casa está em contínuo
diálogo com memórias mais recentes de outros lugares, com memórias do próprio
processo migratório e do viver em diáspora (Salih, 2003: 125). Através de
processos complexos de construção de sentido as memórias integram e são
integradas na posição que os grupos ocupam no aqui e no agora.
No
estudo dos grupos diaspóricos a noção de casa é utilizada e empregue de duas
formas contraditórias, as duas evidentes no conjunto de oito filmes a que neste
texto me refiro.
A
primeira área focaliza-se nas ligações transnacionais (materiais ou
simbólicas), mitos das migrações e desejo de regresso.
A
segunda área focaliza-se no desejo e na impossibilidade de se sentir em casa
nos diferentes espaços diaspóricos que os indivíduos habitam e, em particular,
no atual local de residência.
Os
autores tendem a distinguir entre uma localidade concreta e experiências
concretas e uma ideação mais simbólica, estando ambas as dimensões interligadas
com a casa.
A
movimentação entre uma multiplicidade de espaços-casa, a experiência da
ambivalência de viver em simultâneo aqui e ali, a construção de identidades híbridas,
sincréticas e fluidas constituem processos que tanto se podem revelar altamente
criativos e estimulantes para quem os vivencia, como se podem revelar fonte de dificuldades
identitárias, de sentimento permanente de deslocamento e de sofrimento mais ou
menos intenso. Clifford (1994: 332) refere-se ao “empowering paradox of
diaspora”.
Muitas
vezes os filhos dos migrantes são perseguidos pela questão: “Aonde pertenço?” e
os sentidos que atribuem a casa são mais complexos e mais ambivalentes do que
os dos seus progenitores.
A
casa revela-se um subtexto da diáspora (Brah, 1996: 190) podendo a casa emergir
como um conceito contextual e ambivalente, relativo a múltiplos lugares e
espaços no passado, presente e futuro. A casa pode ser recordada, mas também vivida
e sonhada, projetada num futuro mais ou menos próximo como o local em que todos
os sonhos e desejos poderão finalmente ser concretizados. Em cada momento do
tempo várias casas podem competir pela atenção, colidir ou mesmo
complementarem-se.
Mallet
(2004: 65) traduz esta conceção alargada de casa:
Is home (a) place(s), (a) space(s),
feeling(s), practices, and/or an active state of being in the word? Home is
variously described as conflated with or related to house, family, haven, self,
gender, and journeying”.
Dada
a sua polissemia, a casa, mais do que um instrumento analítico, constitui um
termo émico saliente e relevante para os sujeitos diaspóricos. Um conceito/tema
que estimula realizadores nacionais e internacionais, muitos deles com
experiências migratórias que os marcaram, a construir os seus discursos que nos
permitirão conhecer e desconstruir a realidade de uma forma mais informada e
mais crítica. Cada novo olhar enriquece o nosso próprio olhar, questiona
posicionamentos, entra em diálogo enriquecedor com as nossas próprias ideias
sobre os que se deslocam, sobre os que partam e os que chegam. Quais são as motivações,
como são vividos os afetos, o que se procura, onde se chega, o que se encontra,
como se confronta a realidade e o sonho, porque se procuram espaços de infância
e de juventude? Ou porque se evitam esses mesmos espaços?
O
cinema, como linguagem rica e discurso privilegiado, ajudar-nos-á a compreender
e a intervir e o artístico poderá, talvez, intercruzar-se com o político, com o
olhar e com a praxis dos que o detêm, mas também com o poder (e o dever) que
nós, enquanto cidadãos, temos de intervir, de questionar, de agir sobre o
social.
Filmes
1. O Regresso
Júlio Alves, 2012, 71m
Os
pais do narrador emigraram, tal como grande parte da população da aldeia de
Mega Fundeira fez nas décadas de sessenta e de setenta. Tinham o sonho de regressar
à aldeia e de morrer na terra que os viu nascer. Nunca o chegaram a
concretizar. Mas o narrador, em busca pessoal, regressa às suas origens e
procura no dia-a-dia dos seus habitantes e na trama das suas memórias
reconstituir a vida simples dos seus pais. Entretanto, também o primo jovem
emigra para a Alemanha. Sente pena por ter que deixar os pais na aldeia mas
sabe que o seu destino não é ali na aldeia desertificada.
2.
Sobre Viver
Cláudia Alves, 2012, 51 min
Na aldeia de
Regoufe os afazeres da vida do campo ocupam o dia-a-dia dos habitantes. O cuidar
dos animais, a agricultura, o regar a terra, o colher os produtos da terra, os
rituais da vida comunitária dão-nos um retrato de um país rural, de uma
sociedade com economia de subsistência, de uma vida tranquila em contacto com a
natureza, uma realidade aparentemente esquecida pelos habitantes das cidades. Ao
longo do filme, um velho habitante cego vai traçando o futuro da aldeia: “A
esperança de Regoufe, de uma maneira ou de outra, está para sempre perdida. Já
não há ninguém que venha a tempo de lhe poder acudir”.
3. O Homem
do Trator
Gonçalo Branco, 2012,
Portugal, 19 min
Numa aldeia da
Beira Baixa vive um homem que conduz o seu trator, que é um companheiro. Sai
todos os dias para o trabalho na terra ou para ir ver o pomar. Mas a decadência
do seu corpo ameaça. Ele faz ginástica e procura fotografias de quando era novo
para renovar a carta de condução. E, perante a inevitabilidade, resiste,
cuidando do seu trator.
Texto do filme
4. A Nossa Casa
A Nossa Casa parte de um
álbum de fotografias e de registos de memórias de uma família americana que
viveu no início do século XIX na ilha do Faial para retratar um período de
tempo, um lugar e uma atmosfera sempre enigmática.
Uma voz feminina descreve as suas memórias da casa com o seu jardim
tropical.
“O pai nunca aprendeu
a falar português. Foi sempre um estrangeiro. Odiava a comida. Dizia: Põem vinagre e limão nos guisados e até nas
sopas. O pão a coisa mais execrável que alguma vez foi provada”.
Leitura de diário
e anotações sobre comemorações locais da época e várias outras memórias e
fotografias contribuem para a reconstituição de um determinado espaço-tempo.
5. Aux bains de la reine
Sérgio da Costa, Maya Cosa,
2012, Suiça, 37 min
Elsa regressa à terra
de origem, Caldas da Rainha, em Portugal, para se encontrar com a mãe. Através
desta pequena aventura, descobrimos a cidade e as misteriosas atividades dos
seus habitantes, bem como elementos da história familiar de Elsa. Tece-se um
retrato impressionista cruzado, confundem-se os tempos, misturam-se os sonhos
com a realidade.
Texto do filme.
6. A Raia
Iván Castiñeiras Gallego, 2012, Portugal,
Espanha, 30 min
A linha é a fronteira que divide o sudeste da Galiza do noroeste de
Portugal. Área montanhosa de clima extremo, terra interior, de camponeses. Os
povos desta área foram e são a periferia de ambas as nações, historicamente
esquecidos. Estas e outras circunstâncias tornam-nos pessoas muito especiais.
Com uma história tão valiosa quanto desconhecida.
Texto do filme
7. Cativeiro
André Gil Mata, 2012, Portugal, 63 min
Cativeiro é uma condição
de confinamento, no espaço e no tempo. O ser cativo não é só e necessariamente
um prisioneiro, também se torna próprio daquele lugar, a sua identidade
projeta-se continuamente nesse espaço. Por sua vez, o próprio espaço do
cativeiro não é inerte, caracteriza-se através de quem está ali contido; é
moldado por essa experiência.
Texto do filme
8. Amanhecer a andar
Sílvia Firmino, 2012,
Portugal, 97 min
Um velho homem guarda
uma escola ao amanhecer. Vozes de crianças ao longe cantam o hino de
Moçambique. Pela mão deste homem, Augusto, chegamos a um espaço amplo e
misterioso, que os protagonistas do filme revelarão aos poucos: Elvita, Carlos
e Salim. Três vidas em movimento que olham para o futuro sem perder a tranquila
condição do presente.
Texto
do filme
Referências
Brah, A. (1996). Cartographies of diaspora. Contesting Identities. Londres:
Routledge.
Clifford, J. (1994).
Diasporas. Cultural Antrophology. 9(3): pp. 302-338.
Salih, R. (2003). Gender
in transnationalism: Home, longing and belonging among Moroccan migrant women.
Londres e Nova Iorque: Routledge.
Stock, F. (2010). Home and memory. In K. Knott & S. McLoughlin (eds.). Diasporas. Concepts, intersections, identities (pp.24-28).
Londres/Nova Iorque: Zed Books.
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