terça-feira, 5 de novembro de 2013

Salvato Trigo

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CIDADANIA FEMININA E CIDADANIA NO FEMININO


1. O Ocidente, como escreveu Jacques Le Goff, resulta de duas tomadas de consciência históricas: a bíblica e a greco-romana antiga.
2. O mito original do Velho Testamento, quanto à ontocosmogonia do mundo, é o de uma criação à qual o homem está associado, pois Yahvé deixa a Adão o cuidado de dar nome aos animais, sendo esta imposição do nome uma segunda criação.

3. O Génesis define as relações entre Adão e Eva, entre o homem e a mulher.

4. O Génesis permite, em definitivo, fundar o estatuto da mulher à altura do do homem.

5. S. Tomás de Aquino (séc. XIII) explica por alegoria os desígnios de Yahvé na criação da mulher. Diz esse doutor da Igreja que se Deus tivesse querido que a mulher, Eva, fosse inferior ao homem, tê-la-ia feito de um pedaço do pé de Adão; se tivesse querido que ela fosse superior, tê-la-ia feito de um pedaço da cabeça da Adão; mas Deus quis que ela fosse igual e, por isso, fê-la de uma costela de Adão.

6. Desde as mulheres do Novo Testamento, mais humanizadas e respeitadas ("Quem não tenha pecado atire-lhe a primeira pedra"), até Lisastrata de Aristófanes, ao Livro da cidade das mulheres, de Christine de Pisan, ao Tratado da educação das moças, de Fénélon, às Ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, à Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, proclamada em 1798 por Olympie de Gouges, a História vive a conflitualidade de não querer reconhecer à mulher o seu papel charneira na nossa civilização.


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7. E, todavia, já o maior dramaturgo-cómico da Antiguidade, Aristófanes, reconhecia que a reforma da cidade (Atenas) em crise só seria possível com a delegação do poder às mulheres, com o reconhecimento, portanto, da sua cidadania plena.

8. Em A Assembleia das Mulheres e em Lisastrata, considerava Aristófanes as mulheres de Atenas "cheias de carácter, de graça, de audácia, de sageza, em que o patriotismo se une à prudência", assim procurando destruir, por antecipação, as fúteis e trágicas exibições masculinas da razão da força em detrimento do culto feminino da força da razão.

9. Quando a personagem do magistrado pergunta a Lisastrata "como podereis vós, mulheres, acabar com tanta desordem no nosso país?", esta responde-lhe, sabiamente com uma alegoria, que usariam para o efeito a experiência que tinham de tecelãs: as desordens e as guerras desembaraçam-se com palavras tal como nós desembaraçamos um novelo de lã, pegando na ponta certa do fio e usando correctamente o fuso.

10. O magistrado, não alcançando a alegoria, impetrou Lisastrata, refutando que as mulheres pudessem ser capazes de combater as desordens, quando nada entendiam de guerra. Lisastrata contesta-lhe bruscamente: "Eh! Miserável, acaso não sofremos nós mais do dobro com esse fardo, nós que, antes, criamos os filhos para vê-los partir para a guerra?" .

11. O desrespeito pela mulher, como fonte de vida e regaço de cidadania, que afirma pelo seu direito à maternidade consciente, incultamente transformado pelo homem num dever de procriação, tem, desde Aristófanes, pelo menos, marcado a educação ou,


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melhor, a pedagogia, no rigor etimológico dessa palavra que, originalmente, significava tomar conta das crianças e orientá-las para a vida futura no respeito pelos valores do passado.
12. Exigir da mulher que ponha no mundo filhos, para satisfazer o instinto predatório dos que fazem as guerras só para exibir o poder, é arrogar-se marialvamente proprietário da existência alheia, vendo-a como materialidade transacionável e não, como confirmação de que o ideal das criaturas humanas, expulsas do bíblico paraíso, é serem companheiras e não, súbditas.

13. Companheiras, na acepção etimológica e na compreensão semântica daí derivada, isto é, companheiro(a) é aquele(a) com quem partilhamos o pão (cum + pane-) , assim cumprindo o desígnio dos humanos de, biblicamente, o ganhar com o suor do rosto.

14. Cansadas da guerra, apenas demonstrativa da brutalidade macha, muitas mulheres, como primeiras vítimas dessa insensatez, tornaram-se místicas como Ângela de Foligno (séc. XIII), fundadora de casas monásticas e da ordem terceira franciscana, para orar pelo bem como Teresa d’Ávila (séc. XV) o fez sublimando proselitamente a Imitação de Cristo.

15. Guerras e perseguições insensatas e desumanas que varreram esta Europa, confluência de velhas civilizações e berço de outras novas, tentando ultrapassar o seu tribalismo louco que, desde a Ilíada, de Homero, à Guerra do Peloponeso, de Tucídides; à armada romana de Políbio, à Guerra de Tróia, à Guerra da Gália, de César, à Guerra dos Judeus, de Flávio José, às Instituições Militares, de Végèce, às Cruzadas, às Guerras da Itália, às Guerras da Religião, ao Tratado do direito da guerra, de Van Pufendorf, ao Ensaio geral de táctica, de Jacques Guibert, à Campanha da França, de Goethe, tudo são


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retrocessos de humanidade, por esta se pensar e se querer apenas masculina, ignorando o desejo profundo da paz de quem gerava os filhos para a guerra.
16. O Abade de Saint-Pierre terá sido o primeiro europeu a melhor interpretar esse desejo de paz, no seu Projet de paix perpétuelle, compreendendo com Epicuro (na sua Carta a Meneceias) que "ninguém é demasiado jovem nem demasiado velho para almejar a saúde da alma" e para entender que "a sageza é o princípio e o maior de todos os bens da humanidade."

17. Foi por alguns homens sábios terem entendido que a mulher é, em si mesma, fonte de vida, do bem e da sabedoria humana (porque todas as línguas são maternas e não, paternas e, como dizia John Locke, é pela língua que os sentidos constroem o conhecimento do mundo), que, desde muito cedo, pugnaram pela educação, pela cidadania feminina.

18. Homens como Tertuliano ou S. Jerónimo, na Baixa Idade Média, ou mulheres como Christine de Pisan que, no séc. XV, escreveu o já citado Livro da cidade das mulheres, no qual toma a defesa das mulheres e do seu imprescindível papel na sociedade, afirmando: "…se tivéssemos o costume de enviar as moças à escola como o fazemos com os rapazes e se lhes ensinássemos as ciências, elas aprenderiam tão bem como os rapazes e compreenderiam as subtilidades das ciências e das artes."

19. Vozes, todavia, clamando no deserto, inatingindo os duros ouvidos machos do poder, da gula, da luxúria e da glória de mandar e vã cobiça, como cantava Camões, que nem o Século das Luzes pôde tanta treva masculina dissipar, com Fénélon a acusar que "nada é mais negligenciado do que a educação das moças", e com Pierre Choderlos de Laclos, advogando expressamente a educação das mulheres, como um passo em frente da nossa civilização.


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20. A evidência de uma ou outra mulher, a partir desse Século das Luzes, no panorama intelectual e artístico, assumido como plataforma de auctoritas cívica era, não raras vezes, olhada mais como exótica manifestação do que propriamente como profecia dum tempo novo duma sociedade que só ultrapassaria o seu empedernido marialvismo com novos paradigmas de educação familiar e social, tendo aqui a Escola, como instituição republicana, uma função primordial.

21. E a Escola foi-se feminizando, dando à figura da mulher-professora, profissional do ensino, uma responsabilidade de educadora para a cidadania, no sentido em que Crick, pedagogo anglo-saxónico, a considera, isto é, a educação para a cidadania associa duas dimensões essenciais: a responsabilidade sociomoral (formação ética e moral) e a participação activa e crítica na comunidade, na polis (literacia política).

22. É esta cidadania feminina que sustenta, neste nosso tempo, a escola nova, por isso temos de conseguir reflecti-la na vida pública, na res publica, por forma a que ela se torne também em cidadania no feminino, o que parecendo a mesma coisa ou simples calembour, é, no entanto, bem diferente.

23. A cidadania feminina pode aparecer a alguns simplesmente militante, casuística, mas a cidadania no feminino, como aquela que uma adolescente como Malala, a menina paquistanesa vítima da intolerância e da ignorância talibã, nos mostra, é penetrante, por isso, transformadora, pedagógica, fundacional de manhãs sem brumas sebastiânicas, antes, portadoras da luz com que dissiparemos as trevas da discriminação, sem necessidade de quotas impositivas, para aliviar consciências dominadas pelo obscurantismo sexista, inimigo da sociedade democrática e


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solidária, em que precisamos de viver, para crescermos em humanidade e nos dignificarmos como pessoas.
24. Se, cá dentro, no espaço exíguo e montanhoso que habitamos, tal não nos é permitido ver, olhemos, então, para a saga da mulher migrante que, só na diáspora, consegue resgatar-se e viver a plenitude da sua liberdade e dignidade. Consegue, afinal, viver a cidadania no feminino, sabendo, como sabe, que a cidadania é manifesta e etimologicamente feminina.


Salvato Trigo

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