segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Joana Miranda

Congressismo e políticas de igualdade de género

Dar voz às mulheres após séculos de silenciamento

Joana Miranda

Universidade Aberta/CEMRI

Lê-se no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa: Princípio da

Igualdade: "Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de

qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça,

língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução,

situação económica, condição social ou orientação sexual."

A realidade está, porém, frequentemente distanciada dos princípios da

constituição e deste princípio, em particular. Apesar de muitas terem sido as

conquistas das mulheres ao longo das últimas décadas e de ter sido longo o caminho

percorrido desde o tempo em que as mulheres não tinham, sequer, o direito ao voto,

estamos ainda longe de uma realidade em que homens e mulheres tenham direitos

iguais.

Todas as estatísticas confirmam as desigualdades que as mulheres portuguesas
sentem na pele no dia-a-dia. Continuam a ser as mulheres as principais responsáveis
pelas tarefas domésticas, pelo cuidar dos filhos e dos idosos. O espaço doméstico
continua a ser um espaço marcadamente feminino e o acesso ao espaço público e à
visibilidade que dele decorre continua a ser mais difícil para as mulheres do que para
os homens.

A violência doméstica tem por objeto sobretudo as mulheres e por atores
sobretudo homens. A grande maioria das mulheres vítimas de violência doméstica tem
vergonha e não apresenta queixa das situações de que é vítima. Tem havido evolução
a este nível mas, apesar de tudo, são poucas as que têm coragem de o fazer. O tráfico
humano vitimiza mais mulheres que homens.

Apesar de o número de mulheres licenciadas ser superior ao número de
homens licenciados, são os homens que, em muito maior número, continuam a
exercer as funções de topo nas empresas e nas universidades.

Por outro lado, as mulheres que atingem lugares de topo e destaque na vida
pública são frequentemente alvo de preconceitos (não só de homens mas também
de mulheres), sendo por vezes perspetivadas como menos bem sucedidas nos papéis
tradicionalmente associados às mulheres ou menos femininas.

Em média, para um mesmo trabalho, as mulheres continuam a receber
remunerações inferiores aos homens, face a qualificações idênticas as empresas
contratam mais facilmente homens do que mulheres, facto para o qual não é decerto
alheio serem as mulheres a engravidarem e a cuidarem dos seus filhos nos primeiros
meses de vida.

As vulnerabilidades das mulheres agravam-se quando, por motivos económicos
ou outros, saem dos seus países de origem e se confrontam com outras realidades.
Tais vulnerabilidades são frequentemente estudadas tendo por objeto as mulheres
imigrantes em Portugal mas a realidade é que também afetam as mulheres
portuguesas que saíram do país em busca de outras alternativas de vida. É verdade
que muitas vezes as fragilidades se convertem em forças e que as migrações podem
constituir fonte de empoderamento das mulheres. Mas o esforço individual para
que tal se verifique é enorme e só é possível em determinados contextos culturais e
familiares.

Em situações de migração, há que possuir a capacidade de gestão do stress
que decorre das situações de mudança, redefinir identidades e pertenças, gerir a
identidade e a alteridade, renegociar posições e equilíbrios familiares, preservar o
equilíbrio psicológico muitas vezes difícil, gerir a frequente separação dos filhos, dos
pais ou de outros familiares próximos, o afastamento dos amigos, gerir a décalage
entre o que se sonhou e a realidade que se encontra, lidar com outros hábitos,
culturas, aprender outras línguas, adquirir competências profissionais novas,
responder a novas exigências laborais, manter uma ligação saudável com o passado e
com as raízes, saber projetar o futuro, repensar o retorno ou a permanência.

Os percursos migratórios, se bem sucedidos, podem proporcionar novas
conquistas: conquista de estatutos mais elevados, a possibilidade de enriquecimento
e de troca cultural, o envio de remessas para a família que ficou no país de origem,
gestão de redes familiares transnacionais, criação de novas redes e o estabelecimento
de novos afetos. Podem estas mulheres, e aqui tivemos exemplos, virem a destacar-se
na vida política no país para onde migraram e através do seu exemplo e envolvimento
político, fundar associações, criar movimentos, aceder ao poder local, tornar públicas
as dificuldades das mulheres migrantes, pensar políticas e medidas, atuar no terreno,
contribuir para a construção de uma outra realidade social, proporcionando a outras
mulheres migrantes as oportunidades por que um dia elas tiveram que lutar.

Os decisores políticos têm que estar conscientes de que a realidade das
mulheres, e das mulheres migrantes em particular, é diferente da realidade dos
homens e desenvolver um conjunto articulado de políticas e de medidas que
promovam a igualdade. As mulheres têm que ter uma voz ativa na política aos mais
diversos níveis de intervenção: comunitário, local, regional, nacional e internacional.

As comunicações do painél que moderei abordaram a evolução das políticas
de igualdade de género e o papel da intervenção política com algum detalhe. Mas
para além da esfera de intervenção política, subsiste a questão mais profunda da
mentalidade da sociedade portuguesa, patriarcal, tradicionalista, fechada. Uma
mentalidade que continua a perpetuar papéis de género, estereótipos de género
e ideologias de papel de género, que cria expetativas de carreira, de sucesso e de
comportamento, diferentes para homens e para mulheres, que celebra e imortaliza os
feitos dos homens e invisibiliza as conquistas das mulheres.

Apesar de todos os condicionantes sociais e das mentalidades discriminatórias,
é inegável que muitas mulheres se destacam no espaço público em setores tão
diversos como a vida política, académica e científica, empresarial e das artes ou
mesmo em setores tradicionalmente reservados aos homens como é o caso das Forças
Armadas.

Congressos como este contribuem para despertar consciências, homenagear as
mulheres que, no passado, ousaram quebrar o silêncio, lutar pela igualdade quando
a igualdade mais não era do que uma utopia longínqua, dar voz a mulheres que,
no presente, pela sua capacidade e empenho, têm contribuído para a igualdade de
género e para uma maior consciencialização da discriminação de que as mulheres
continuam a ser alvo. Congressos como este contribuem para perspetivar as mulheres
como protagonistas dos processos migratórios e não como acompanhantes de
projetos migratórios masculinos, como mulheres que triunfaram apesar de todas as
dificuldades, como interlocutoras do poder político e agentes do poder político, como
decisoras e inspiradoras de caminhos e de lutas. É também nestes congressos que se
dá voz às mulheres. Dar voz às mulheres após séculos de silenciamento.

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