segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Daniela Amaral Moreira entrevista a Cristina Maia Caetano


Entrevista a CRISTINA MAYA CAETANO

 

1- A construção das caravelas, para serem apresentadas no serão cultural realizado na Escola Básica e Secundária Domingos Capela , sobre o tema "Camões" e a sua obra emblemática «Os Lusíadas», obedeceu a um projeto com base numa memória descritiva. Poderemos saber se algumas das suas obras aqui apresentadas obedeceram a esta dinâmica ou nasceram de forma espontânea?

As minhas obras expostas nesta II Bienal de Mulheres em Espinho, tiveram o seu nascimento em poemas. Primeiro escrevi-os e depois a pintura a óleo foi crescendo, acompanhando os versos. Por vezes senti a necessidade de adaptar as tonalidades das cores à escrita, como se o pincel tivessse vida própria e criasse à sua maneira.

O quadro “Florais Outonais” pretende ser uma homenagem ao outono, demonstrando que esta estação onde as folhas caiem e perdem cor, tem uma dinâmica, voz, beleza e cor própria. “Coloridas Folhas”, é um quadro que representa diversas folhas de tamanhos e feitios distintos, símbolo das variadas fases da vida de cada ser humano.

 

2- O que a inspira ou inspirou nos países onde esteve como emigrante (pessoas, locais)?

Nascida em Luanda, Angola, com os meus tenros seis meses, os meus olhos não chegaram a contemplar a minha terra natal. Apenas me recordo de Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique, país onde foi batizada e vivi feliz. Ainda hoje, inspiram-me as corridas e as aventuras de triciclo em que insistia em chocar contra as árvores e esmurrar os joelhos. As bonecas, que adorava vestir e despir, ao mesmo tempo em que da varanda espreitava quem passava. O kukuana o homem velho do saco, onde colocava as crianças que não se portavam bem e as levava com ele. A luz do dia, as cores da terra, os cheiros, a alegria das pessoas, o sol grande e vermelho. A praia com areias finas e brancas e a água do mar quente, onde caminhava com a água a bater-me nos tornozelos. As comidas, como o frango à cafrial, o chocol (especie de moussse de chocolate em lata), as gomas e os chocolates sul-africanos. O ringue de patinagem artistica, onde sonhava aprender a patinar e a dançar com tutus vestidos. O drive in onde com a minha família assistia ao ar livre, dentro do carro aos filmes do Trinitá, bebendo coca-cola e trincando pipocas. As matinés, a leveza das roupas e o pé descalço. “O casamento dos macacos”, apelidado ao tempo de sol, interrompido por uma repentina queda de chuva, onde imaginava uma idílica e pormenorizada cerimónia. A fruta sumarenta, como a manga, papaia, mamão e diversos outros tropicais sabores. O Natal, com uma grande e enfeitada árvore de Natal coberta de grandes presentes. As passagens de ano com pessoas nas varandas e carros a apitarem a saudarem o ano novo.

Tudo isto, eu transporto na minha arte e nos meus escritos (como na Fadinha Lótus, simbolo de magia da minha infância e das bonecas que tinha. O seu lago de nascimento com águas quentes e mansas – O mar de Moçambique e os seus amigos, animais, como tantos que lá havia). Bem como as cores que uso e materiais que me transportam a Moçambique com todo o seu exotismo, e tantas vezes espelhado nos saris de indianas que encontrava na rua, recriando-me para outra cultura, sentir, cheiro e comida picante.

 

3 - Até que ponto poderíamos dizer que há, no país onde esteve, uma arte no feminino em oposição a uma arte no masculino? Ou há uma relação entre género e expressão artística?

Considero que em Moçambique, a predominância do masculino é marcante. O tribalismo, a tradição, o colonialismo e guerra colonial, independência, contacto com conceitos e arte ocidentais, reconstruçao de um país, a procura das raízes, são todos eles fatores importantes numa maior compreensão da cultura moçambicana e transparência de todos os seus componentes. Na arte plástica destacam-se vários nomes como: Pancho Guedes; Azymir Chiluteque com as suas criações que contribuíam para a narrativa da história de Moçambique; Naguibe com destaque para o Mural em homenagem a Samora Machel junto com a sua equipe. Jorge Dias, criador de novas formas de relações culturais e o inesquecivel Mestre Malangatana Valente Ngwenya que levou o nome de Moçambique ao mundo, tendo sido embaixador das artes plásticas, educador, impulsionador, divulgador e criador de oportunidades para a arte e artistas moçambicanos. No feminino, as artistas Fátima Fernandes e a falecida Bertina Lopes com vários prémios internacionais de pintura, são exemplos de sucesso e de integração vivenciais em outros países, respetivamente Portugal e Itália, expressando e alargando a moçambicanidade feminista no mundo.

 

4- Para uma artista plástica portuguesa em comunidade estrangeira, como absorveu a nova cultura do país onde estudou ou viveu e como é que se interligou com a sua cultura de origem? E para uma artista plástica estrangeira em comunidade portuguesa?

A cultura daquele país africano, na altura solo Português, pulsava dentro de mim, quer no meu respirar, batimento cardiaco, ou na génese das minhas células. Eu estava em África e África estava em mim. Fugida da guerra colonial, deixei para trás família e a terra que acreditava ser minha. Em Cerejo, aldeia do meu pai, para onde fui residir, deparei-me com valores e costumes culturais distintos aos que estava acostumada e por isso não os reconhecia.  Para mim, a comunidade estrangeira a que me tive de adaptar foi a portuguesa. Com o tempo fui tentando habituar-me com a frequência da escola, ingresso nos escuteiros, faculdade, trabalho e situações próprias da vida, que me levaram a aprender novos costumes, criar defesas e uma compreensão própria ao que me rodeava. Muitos anos mais tarde, regressada a Moçambique, fiz a minha própria catarse: o encontro comigo e com o meu passado. E aí sim, por fim, com raivas desaparecidas, aceitei em plenitude a portuguesa que havia em mim.

Tal como tudo, penso que para uma artista plástica estrangeira em comunidade portuguesa, há que ponderar alguns aspetos. A personalidade da pessoa em causa, o país donde é originária e a comunidade onde se inseria. Também é importante se entrou em Portugal, sozinha ou acompanhada de amigos ou familiares, acentuando o fator solidão ou de comunicação. Se constituiu família já em Portugal, permitindo-lhe um contacto e convívio mais próximo com a cultura portuguesa, a integração poderá tornar-se mais acessível. Seja qual for o caso, as vivências, técnicas e gostos pessoais adquiridos noutras fronteiras, sem dúvida poderão e devem enriquecer as artes. Conjugadas com vivências e interações em Portugal, a evolução resultante é salutar e propício para o desenvolvimento das artes.

 

5- Quais as barreiras que encontrou enquanto mulher- preconceito e enquanto criativa - liberdade?

Uma visão diferente da vida e um sonho idealista de a viver: Fazer o que gostava. Deixando para trás emprego e padrões convencionais de vida, experimentei a sensação de muros erguidos, perconceitos e de medos originadados pela incompreensão de uma profissão diferente e de um futuro incerto. Questionando qual o melhor caminho a traçar, a arte gritava dentro de mim. Primeiro em forma de crónicas, escrita científica, depois nos contos infantis, na pintura a óleo, na poesia, nos romances, na ilustração, no teatro, cinema e no contar de histórias. E foi aí que percebi: a arte é sem limites! Senti-me livre e o meu espirito sossegou.

 

6- Pensando no nosso percurso, será que teríamos maior êxito ou maiores oportunidades se estivéssemos nos respetivos países de origem

Não. Acredito que tudo acontece como tem de ser. Nós não somos o passado, mas somos o que somos graças ao passado que tivemos. O passado não é importante, apenas o que fazemos com ele. As dificuldades que travamos, as batalhas que perdemos ou ganhamos, ensinam-nos algo importante para o nosso crescimento evolutivo, e para fortelecidos, encararmos novos desafios.  Acredito que as vivências que tive não seriam as mesmas se tudo tivesse sido de outra forma. Hoje, certamente não seria a mesma pessoa. Provavelmente até nem seria artista...

 

7- O que ganharam, neste particular domínio, as mulheres migrantes na sua itinerância por vários universos culturais?

Aprendizagens culturais e formas diferentes de sensibilidade, ver, ouvir e sentir a vida. Contagiarem-se a si mesmas e contagiarem outros povos sendo veículos portadores de transmissão de novos conhecimentos. Crescerem como seres humanos, olhar de dentro para fora e seguir em frente. Retirar pedras do caminho e construir pontes para comunicar com todos os povos da terra.

 

8- Que importância acha que devemos atribuir às Artes como formas de intervenção e afirmação cívica e humana?

A importância de uma vida. A importância de todas as vidas. Nasce no ser humano. É criado no âmago de cada um. É puro, autêntico, natural. É a voz do sentimento no seu expoente máximo. Não o calem, nem o mutilem! Antes ouçam-no e deêm voz às populações para na arte se expressarem e intervirem na sociedade, observando valores humanos e comportamentos cívicos. Poderão perceber melhor o pulsar de culturas e melhor transmitir a história da civilização. Reinventarem-se a si mesmos, e contribuirem para um tão precisado colorir do mundo.

 

 

  Daniela Amaral Moreira, aluna da escola Domingos Capela, AEMGA , Espinho, setembro de 2013

 

 

 

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