quinta-feira, 10 de maio de 2012

MARIA MANUELA AGUIAR NO ENCERRAMENTO DO COLÓQUIO DE MARIA ARCHERSAUDADES DE MARIA ARCHER


Poderão  perguntar porque se envolveu a Assoc MM na evocação de Maria Archer, em
sucessivas iniciativas -  no Encontro Mundial da Mulheres Portuguesas da
Diáspora, em Novembro de 2011, na comemoração do Dia Internacional da
Mulher, 2012, na cidade de Espinho e, agora, em Lisboa, nesta sessão
que nos reune no Teatro Nacional da Trindade.
Responderemos que razões não nos faltam para  justificar o empenhamento cívico com que o fazemos.
Uma primeira razão tem evidentemente a ver com o facto de Maria Archer ter sido uma
Portuguesa expatriada. Uma grande Portuguesa da Diáspora, que,
desde a sua juventude, passou largos anos em cinco países da
lusofonia, e em 3 continentes,  olhando sempre em volta, com uma inteira
compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que  soube
traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e, também, de muito
interesse etnológico, sociológico e político....
Seria motivo bastante para nos lançarmos na aventura de partir à
procura desse legado multifacetado e vasto, que guarda  experiências e segredos de tanta gente
 e de tantas terras. 
Mas há mais...

Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal,
por saber captar as constantes da natureza humana, ou por se
constituir na memória crítica de um tempo português, que foi opressivo e
cinzento, pautado por estreitos conceitos e por regras de jogo social e político,
 que  inteligentemente desvenda e que põe em causa,  sem contemplações.
 Ninguém como ela retrata a vida quotidiana desse Portugal estagnado
e anacrónico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade, 
em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres,
 em particular, são  dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela
censura dos costumes, depois de terem sido deformadas pela educação.
Tendo por pano de fundo os estereótipos impostos para o relacionamento de
sexos, a entronização rígida dos papéis de género dentro da famílias e
as consequentes desigualdades, distâncias e preconceitos sociais, num
doloroso e longo impasse da nossa história colectiva, .Maria Archer
vai dar presença às portuguesas suas contemporâneas, tal como elas foram,
com um realismo, que é, sem dúvida e quer ser, uma busca
e uma evidência da verdade - doa a quem doer e  para que se saiba...
então e no futuro.

 Na melhor tradição nacional, Maria Archer, a mais feminista das
escritoras portuguesas, é uma "feminista muito feminina", que ousou ser
um ícone de beleza e de distinção e  ter  uma carreira  no jornalismo e
 nas Letras , em simultâneo,  fazendo combate pela dignidade  e pela 
afirmação das capacidades intelectuais e profissionais negadas à mulher..
 Ousou fazer um nome no mundo fundamentalmente másculo da cultura portuguesa.
 Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos...

Na verdade, por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais
do nosso tempo do que do seu tempo - aliás, uma afirmação que se deve
generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX, que
dão rosto à exposição da Câmara Municipal de Espinho, há pouco,
inaugurada aqui, nas salas e corredores do Teatro da Trindade.
Maria era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos
revolucionários  em que estiveram a Liga Republicana das
Mulheres Portuguesas ou o Conselho Nacional Das Mulheres Portuguesas,
mas iria ser uma das poucas  que, no período de declínio desses
movimentos e de desaparecimento de uma geração incomparável,
continuou, a seu modo, solitariamente, uma luta incessante contra o
obscurantismo,que condenava a metade feminina de Portugal á
subserviência, à incultura, ao enclausuramento doméstico.

 Maria Archer foi uma inconformista,  consciente das discriminações e das injustiças,
 em geral, e, em particular das  que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade 
retrograda e, como se diria em linguagem actual, "fundamentalista", em que o
regime  impôs a regressão às doutrinas e práticas de um patriarcalismo ancestral.
A escrita, servida pelos dons de inteligência, de observação e de
expressividade  foi  uma arma de combate  político - como dizia Artur Portela "a sua pena 
parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". 
Um combate em que a sua vida e a sua arte  se fundem - norteadas por um ostensivo 
propósito de valorização dos valores femininos, de libertação da mulher e com ela
da sociedade como um todo.
Ela é já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que
lhe custou o preço de um  tão longo exílio ...

 Maria Archer é uma grande escritora (ou um grande escritor, como
alguns preferem dizer, alargando o campo das comparações possíveis).
Pode ser lida como tal.
Mas permite também diversas outras leituras.  Por exemplo, uma leitura sociológica,,,
 Ninguém. como ela , escrutinou e caracterizou o pequeno mundo da
sociedade portuguesa da 1ª metade do século XX, das famílias, pobres
ou ricas, decadentes ou ascendentes, aristocratas, burguesas, "povo" -
todos  imersos na nebulosa de preconceitos de género e de classe, de
vaidades, de ambições, de prepotências e temores...
Aurea mediocritas, brandos costumes implacáveis... o mundo de
contradições   de um estado velho, que se chamava Estado Novo
Ou uma leitura feminista,,,
Ninguém como ela conseguiu corroer essa imagem da "fada do lar",
meticulosamente construída sobre a ideia falsa da harmonia de
desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativa do
regime), da falsa brandura do autoritarismo e da subjugação no
círculo pequeno da família como no mais alargado, o  do País.
É uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O rigor da narrativa,
 a densidade das personagens, a qualidade literária, só podiam agravar, aos olhos
do regime, a força subversiva da  denúncia. Na crueza da palavra. Na
nitidez do traço...

O regime não gostou desses retratos femininos, como não gostava
da Autora. Primeiro, tentou desqualificá-la, desvaloriza-la .
Sintomática a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que em
conta-corrente , num texto com laivos misóginos,  a apresenta como
apenas uma mulher a falar de coisa ligeiras e desinteressantes, como o destino das
mulheres....). Sintomático também que a crítica seja divulgada pela
própria editora da romancista. a par de tantas outras, todas de
sentido contrário.
Não tendo conseguido os seus intentos, o Poder passou à acção: os seus livros foram
 apreendidos,  os jornais onde trabalhava ameaçados de
encerramento...
Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última e infindável aventura
de expatriação, de onde só viria, envelhecida e fragilizada, para
morrer em Lisboa.

 Mas o desterro não era pena bastante!
Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher"
afirma que Maria Archer foi deliberadamente apagada da História. Sim,
o ser emigrante é já factor comum de esquecimento, como que  natural,
na memória da Pátria, mas este caso foi um caso mais grave, mais
doloso...
Uma outra razão  para intervirmos, pois ainda é tempo de vencermos  o  acto
persecutório, implacavelmente executado há décadas, para restituirmos à
vida e obra de Maria Archer o lugar que lhes é devido no mundo vivo da
 cultura portuguesa...
E se é certo que revisitar a mulher de Letras, através dos seus
escritos, tem, da nossa parte,  esse objectivo proclamado de desvendar
o passado, de lançar luz sobre a realidade insuficientemente analisada
e realçada da sociedade portuguesa de 40 e 50,  é também um momento
mágico de reencontrar a própria Maria Archer,  bem viva em
páginas fulgurantes de tantos dos seus livros, artigos, crónicas -
sobretudo quando fala na primeira pessoa do singular!
Pela elegância do seu estilo, torna-se, afinal, sempre um prazer
acompanhá -la nas incursões ao universo bafiento e confinado que
se confrontaram e conviveram as portuguesas e os portugueses durante
meio século - e em que as personagens femininas raras vezes cumprem as
suas  potencialidades e os seus sonhos (mesmo que modestos), e os
enredos quase nunca têm um fim feliz  - ou justo...

Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a
caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e
apresentou em sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São
Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim...

Até ao fim, não!
Estamos aqui justamente reunidos pelo projecto de lhe assegurar uma 2ª
vida, no sentido em que  Pascoaes dizia: "Existir não é pensar, é ser lembrado"
Este não é o primeiro nem será o nosso último encontro sobre a sua
personalidade, o seu exílio, o seu retorno... Talvez um próximo
encontro aconteça em São Paulo...
Sobre a obra ou a pessoa... qual delas a mais interessante?
A pessoa é certamente tão fascinante como as mensagens da sua escrita.
E ainda mais desconhecida.
Mas só assim continuará se não quisermos conhecê-la porque ela está
lá, eternamente jovem, vibrantemente eterna, em muitas das páginas que
poderemos ler e reler.
Dizia a   Mariana desse esplêndido romance que é  o "Bato às portas da vida":
"Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo"

E nós queremos, afinal, andar na saudade de Maria Archer, reencontrada.

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