terça-feira, 1 de maio de 2012

VIDA E OBRA DE MARIA ARCHER UMA MULHER DA DIÁSPORA

29 de Março de 2012 Teatro Nacional da Trindade – Salão Nobre Senhor Professor Fernando Pádua, Senhora Dra. Rita Gomes, Minhas Senhoras e Meus Senhores, Boa tarde Apresento, por uma questão de justiça, alguns agradecimentos. Registo os agradecimentos institucionais ao Museu Ferreira de Castro e à Fundação António Quadros e, pessoais, ao Professor Doutor Carlos Mendes Sousa, à Professora Doutora Clara Rocha, filha do escritor Miguel Torga, ao Dr. Pacheco Pereira e à Dra. Teresa Martins por me iluminarem os mil rostos de Maria Archer. E, por fim, apresento os agradecimentos à «Associação Mulher Migrante» na pessoa da Sra. Dra. Manuela Aguiar, pelas homenagens a Maria Archer já realizadas na Maia e em Espinho e, claro está, por esta, que hoje, está a ser prestada. Foi com muito prazer que aceitei vir falar sobre a minha tia-avó. Não podia vir falar-vos da saudade que a minha idade e a diáspora não deixaram nascer. Mas a honra, sim, sinto-a e está presente. Nas matizadas pesquisas que fiz sobre a minha tia-avó, encontrei, com mágoa, a referência a que tinha morrido no esquecimento. Ainda hoje, vários estudiosos me mencionam esse facto indelével. As suas obras de inegável valor foram olvidadas e, pairou sobre a sua pessoa e os seus testemunhos, o silêncio. Morreu no esquecimento, mas não foi nem será esquecida. Mas é verdade. Uma mulher da dimensão de Maria Archer não podia ter morrido, oito anos depois do 25 de Abril. Merecia que um país já em plena democracia lhe manifestasse um maior reconhecimento. Apraz-me relembrar uma frase que Maria Archer proferiu em relação à polémica que o seu livro “Ela é apenas Mulher” suscitou: “Confio na justiça do Tempo”. Abrem-se os portões e encontramos uma mulher da diáspora que ousou afrontar os “costumes” organizados de então. Mulher de acção pela palavra, pela escrita. Escritora, jornalista, conferencista, tradutora. Mulher autodidacta terminou apenas, oficialmente, a 4.ª classe, mas é senhora de uma cultura exuberante. Mulher viajada. Rasgou horizontes. Gilberto Freyre lavrou na Introdução do livro Herança Lusíada: “pouco falta às páginas da talentosa escritora portuguesa para serem ensaio de luso-tropicalismo de todo consciente da unidade na diversidade que parece dar à simbiose luso-trópico definido carácter de área susceptível de ser considerada e estudada sociologicamente…. Para tais estudos o livro da Sra. Maria Archer representa decerto valiosa contribuição.” Os seus livros são fruto da ousadia e da coragem que a caracterizam. Estão frequentemente ligados a problemas sociais e às questões da condição feminina. E, como recompensa, sofreu o isolamento e a discriminação da sociedade da época. Relembremos o que escreveu Maria Archer, em Parques Infantis, nos idos anos de 1943 “…Não é demais pôr em relevo a figura da criadora dos Parques Infantis, a grande poetisa Fernanda de Castro, que concebeu uma obra social limada de asperezas, que soube amparar as crianças com a mesma alma em flôr com que escreveu os seus versos.” Em 1944 é lançado o seu romance Ela é Apenas Mulher que, segundo Maria Teresa Horta afirma no prefácio à reedição de 2001, “Na altura em que surgiu, foi uma autêntica pedrada no charco. Escrevendo, afinal, aquele que hoje é um dos melhores retratos da situação das mulheres portuguesas da primeira metade do século XX. Sinto-me tentada a dizer: o único retrato autêntico, de corpo inteiro.” Como afirmou Maria Archer em Revisão e Conceitos Antiquados de 1952:“A minha obra literária tem sido norteada pelo princípio vital de rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da mulher.” A leitura das suas obras convida ao fascínio da descoberta. Os seus livros sobre África são pontes para a reflexão mágica, para a beleza. A densidade da escrita enleia-nos tal floresta tropical. A sua escrita é o lugar dos contrários, é a conjugação da água e do fogo, a simbiose da terra e do mar. Hoje, aqui, em Lisboa, homenageamo-la pelas suas manifestações de cidadania, pela obra que nos deixou. Trinta anos após a sua morte. Mas nunca é tarde. Como diz o Prof. Eduardo Lourenço “um tempo é todos os tempos. Não antecipa só o futuro. Recicla todos os passados”. Maria Archer, de seu nome Maria Emília Archer Eyrolles Baltazar Moreira, nasce em Janeiro de 1899. Nos anos seguintes nascem os cinco irmãos, João, meu avô, Natália, Irene, Isabel e Eugénia. Em 1910, com 11 anos, parte com os pais e com 4 irmãos para a ilha de Moçambique, onde vive, até 1913. Maravilha-se com a paisagem que diariamente lhe inunda o imaginário e apelida-a de “ilha de coral branco”. Assim tiveram início as suas Idas e Voltas até ao continente africano. Em 1914, regressa a Portugal. A nova incursão por terras de África ocorre em 1916 acompanhando os pais, o irmão João, um ano mais novo, e a irmã Isabel. Desta vez ruma até à Guiné, “a verdadeira África maravilhosa”. Aqui vive durante dois anos. Em 1921, encontra-se em Faro e em 29 de Agosto desse ano casa civilmente com Alberto Teixeira Passos que tinha conhecido na ilha de Moçambique alguns anos antes e, religiosamente, em 31 do mesmo mês, em Almodôvar. Os primeiros cinco anos de vida do jovem casal são vividos em Ibo-Moçambique. Em 1926 regressam a Faro, indo depois para Vila Real de Trás-os-Montes, donde era procedente a família de Alberto Passos. O seu matrimónio dura 10 anos. Em 1932, já oficialmente separada, navega até Angola para viver com os pais. É em Angola, em 1935, que é editado o seu primeiro livro. Um livro de novelas e de contos intitulado, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim. Ainda no curso do ano de 1935, já em Portugal, publica o romance África Selvagem – a sua estreia na literatura colonial portuguesa. Aqui vive, empenhada e militantemente, do seu trabalho de escrita para jornais e revistas, dos direitos de autor dos livros que publica e que, amiúde, tanta polémica provocam pela incomodidade ao pensamento dominante. Após regressar de Luanda, Maria Archer participa em várias conferências e palestras sobre o ultramar, na Sociedade de Geografia de Lisboa, aos microfones da Emissora Nacional, em liceus da capital, nomeadamente no Liceu Pedro Nunes, e em estabelecimentos militares. Aventura-se também na literatura para crianças com o livro Viagem à Roda de África, tendo ganho o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, em 1938. Os muitos anos vividos em África influenciam a sua escrita. A sua sensibilidade foi tocada pela paisagem primitiva dos trópicos e pela cor das terras do sol. Olhou para a natureza que a rodeava e pintou-a, feericamente, através da escrita. A árvore da escrita perpetuou-se na pujante criação enquanto o tronco se contorceu tentando alcançar o sol, a luz. A convivência de Maria Archer com os irmãos foi intermitente. A vida familiar decorria ora em Portugal, ora em África. Ainda assim, os laços de sangue são mais fortes. Esta união afectiva é retratada, por exemplo, no conto Eu vi o pelicano abrir o peito, de 1944 ou, no texto que escreveu para o catálogo da exposição da pintora Isabel Areosa, sua irmã, em 1945, ou ainda, na carta que endereçou à sua advogada em 1972 onde indicava ter enviado fotografias antigas para o sobrinho Luís Filipe o qual nunca recebeu a mencionada correspondência. Viveu a revolta de ver alguns dos seus livros apreendidos. Como afirmou Maria Teresa Horta: “Tudo o que Maria Archer dizia, era proibido.” Tendo Miguel Torga conhecido a mesma situação – o coarctar da liberdade de pensamento através da apreensão das obras - relembremos uma carta de Fevereiro de 1940 endereçada ao escritor aquando a apreensão do seu livro “Quarto Dia”: “V. decerto ignora que eu tive, faz agora um ano, um dos meus livros apreendido. Calculo que o ignore, como deve ignorar a minha existência e de livros meus. Digo-lho para que compreenda o motivo por que muito desejo ler o seu livro apreendido, motivo que agrava o interesse que a sua arte me desperta, sempre e sempre.” Seis dias após o envio desta carta outra será remetida a Torga, após a leitura do livro solicitado “Gostei muito do “Quarto Dia”, onde encontro o mesmo vigor que V. derramou nos anteriores, nesse ciclo fulgurante da “Criação do Mundo”. Confesso, porém, que “Os dois primeiros dias” me deram um deslumbramento maior. Deslumbramento é assim mesmo. Graças por me ter confiado o seu livro e pelo prazer que me deu ao lê-lo. Maria Archer” Em 1952 foi credenciada como jornalista por Jaime Carvalhão Duarte, durante o julgamento de Henrique Galvão. E em 1955 exila-se no Brasil como consequência última do seu trabalho como repórter do jornal República. Relembre-se a frase de Miguel Torga:”A Liberdade é uma penosa conquista da Solidão.” Apesar de ter sido repentina a saída do país, dois ilustres escritores, Ferreira de Castro e Aquilino, acompanham-na no momento da despedida, demonstrando a sua solidariedade e companheirismo naquele momento difícil. Laços estes que tinham sido firmados muitos anos antes e que se revisitam na carta de Ferreira de Castro, de 9 de Agosto de 1936, ao reafirmar: “Não é possível que depois de tantos anos de luta, a ideia duma Humanidade redimida num mundo justo possa ser sufocada!” No Brasil colabora nos Jornais O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal Democrático e dá à estampa quatro livros: Terras onde se fala Português (1957), Os últimos Dias do Fascismo Português (1959), África sem Luz (1962) e Brasil, Fronteira da África (1963). Em 23 de Junho de 1973, cinco dias após ter recebido o pedido que Maria Archer expressou ao seu sobrinho Fernando Pádua, o então Primeiro - Ministro de Portugal, Professor Doutor Marcello Caetano, autoriza o seu regresso com estas palavras “… Sra. D. Maria Archer pode vir para Portugal quando quizer. Não será incomodada.” Em 26 de Abril de 1979 regressa, finalmente, a Portugal, doente e já com 80 anos, seis anos após ter obtido a anelada permissão e com um novo regime político. No regresso, vinte e quatro anos volvidos desde o dia em que deixou Portugal, e ao contactar com a família, dificilmente reconhece as irmãs e os sobrinhos. No entanto, uma das suas características mantém-se inalterada até ao fim: a vaidade feminina. Deixa-nos em 23 de Janeiro de 1982. Raul Rego, no artigo “Maria Archer”, para o Diário Popular, escrito dias após sua morte, curva-se sobre a actuação sócio-política da escritora em Portugal. O jornalista elucida como a sua postura anti-conformista a “afastou logo de muitos meios oficiais e de muitos salões de tertúlias, arrastando-a para os contactos com a oposição.” E prossegue: “Ela era uma mulher livre, escritora de garra, senhora de si e impondo-se pelo talento”, o que na altura, não agradava a muitos. Passados mais de 100 anos sobre o seu nascimento o que ficou, então? Ficaram os valores e os princípios. Ficaram os fins e os propósitos. Ficou o espírito de pioneirismo. É uma honra muito grande, para mim, como mulher e portuguesa, ser familiar de Maria Archer. Muito Obrigada. Olga Archer Moreira

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