quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

NAS TRILHAS DA “FILOSOFIA DE UMA MULHER MODERNA”: CONFIGURAÇÕES DA VIDA SOCIAL E AS CRÔNICAS DE MARIA ARCHER.


Elisabeth Battista
Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT/Brasil. Diretora da Faculdade de Educação e Linguagem – FACEL. Docente no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários – PPGEL, da Pós-doutora pela Universidade de Lisboa – UL.



Esta leitura articula-se em torno da instigante produção criativa e intensa atividade intelectual de Maria Archer para os meios de imprensa, em meados do século XX, em Portugal, porque nos estudos que estamos realizando sobre a participação de escritoras na imprensa e a circulação literária entre os países que têm o português como língua de comunicação, temos colhido gestos e presenciado a intensa movimentação com vistas à ampliação das relações de trocas e possibilidades de abertura e aproximação cultural nas relações literárias e culturais ibero-afro-americanas.
A coletânea Filosofia duma mulher moderna, de autoria de Maria Archer foi publicada em Lisboa em 1950, pela editora Porto e compõe-se de 27 narrativas. As crônicas literárias, em sua maioria voltam-se para o tema da condição da mulher na sociedade portuguesa, fatos vivenciados por Maria Archer, com base na observação da vida social, na qual faz um engajamento literário nas suas obras. A articulação de elementos da vida social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros.
É relevante afirmar que a produção e o lançamento de Filosofia de uma mulher moderna (1950) é contemporânea ao lançamento da obra O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, publicada originalmente em 1949. A referida obra francesa, amplamente difundida, é construída em uma perspectiva fenomenológica existencial de gênero, a autora volta-se para o estudo da dinâmica das ações femininas e focaliza o conceito de “experiência vivida”, que contribui para compreensão e o “desalinhamento” da perspectiva do status quo.  Em sua abordagem, Beauvoir será crítica dos parâmetros discursivos da tradição, que se consagram em princípios lógicos e ontológicos, Beauvoir propõe novas formas de abordagem sobre a condição da mulher. Desta forma, na condição de autora, ao lançar um novo olhar sobre a condição feminina, propiciou a reflexão e o surgimento de uma nova visão acerca do perfil feminino.
Beauvoir recusava também enclausurar-se como pensadora e como mulher na esquadria de um sistema de pensamento e, pois, de comportamento já determinado pela história. A condição feminina deveria, então, se voltar para novas vias de ação, de argumentação e de reflexão que não as mesmas trabalhadas pelos homens na história da cultura. (SANTOS, 2012, p.928).


Vale lembrar que as lutas de caráter mais radical pelas igualdades e a construção de uma identidade feminina, bem como o surgimento do atuante movimento feminista, naquela altura, estavam apenas no início. Isto porque os ensaios de Beauvoir em O Segundo Sexo produziram sobre o público leitor um efeito prático, modificando a sua conduta, sua visão de mundo e, sobretudo reforçando o sentimento do valor social da mulher. Para a lusitana Maria Archer, contudo, em Filosofia de uma mulher moderna (1950), a vida social e a condição feminina serão o “fermento orgânico“ de que resultarão em fértil produção criativa e a expressão literária de uma diversidade coesa.
Isto porque, em suas páginas, a autora leva em conta o elemento social como referência em suas crônicas produzidas para os jornais em Lisboa e, posteriormente reunidas na referida coletânea. Neste sentido, a captação do olhar fixado no território da escrita para os jornais serão a expressão de uma certa época e de uma sociedade determinada, que permite situá-la, não somente em seus aspectos sócio-histórico-culturais, mas como fator preponderante na sua elaboração artística, ou seja, sua coletânea deriva no registro literário que sinaliza a interpretação estética da vida social.


O ESBOÇO E O SURGIMENTO DE UMA NOVA MULHER


Nas narrativas para os jornais, a autora coloca em cena a mulher na condição de dona de casa, trabalhadora do lar, viúva, separada, e todos os seus atributos humanos como a ambição, a inveja, egoísmo, maledicência, a mulher estigmatizada que se torna “mal vista” perante a preconceituosa sociedade da época. Seus temas derivam para aquilo que afirma Alfredo Bosi (1996, p. 11),  
É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real. A literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente.


Um olhar ainda que superficial pela coletânea de narrativas percebe-se um elemento curiosos e unificador: o absoluto predomínio de personagens femininas na condição de protagonistas. Os homens assumirão papéis secundários, enquanto a autora descreve a personagem feminina em dois ou mais parágrafos, especificando as qualidades da mulher da época, ela descreverá o homem em pouco mais de um período.
Outro aspecto que marca a coletânea composta de 27 narrativas é o registro de que o tratamento que será dispensado à mulher está diretamente ligado ao seu estado Civil. Neste sentido, as mulheres casadas obterão reconhecimento social, enquanto as desquitadas e divorciadas não encontravam acolhida no seio social, ficando fadadas ao isolamento e impedidas de contraírem uma segunda união conjugal, fora do plano da clandestinidade. Um exemplo emana da regra explícita de que os funcionários públicos, sobretudo os de cargo elevado, não poderiam contrair matrimônio com mulheres desquitadas ou divorciadas.
A crônica Filosofia duma mulher moderna, atendendo ao meio em que fora originalmente publicada, estrutura-se no âmbito de uma linguagem coloquial, de fácil entendimento, a personagem feminina age com a razão e não a emoção, fato que, no plano da narração, é justificado por preferir perder o pretendente a marido, que fora promovido e terá que ser transferido para fora do país, do que arriscar perder o domínio de um vantajoso contrato de locação. Constitui-se uma crônica jornalística, pois ali o que temos são quadros representativos da vida social contemporânea portuguesa.
Narrada a partir de uma visão por trás, narrador onisciente intruso, portanto, é contada em 3º pessoa, conforme os estudos de Gancho (2003), “um narrador que fala com o leitor e julga a conduta da personagem, que fica bem explícito no trecho a seguir, [...] Uma maravilha”! Julgo que ela preferia um ataque de bexigas negras, a queda do cabelo, mesmo o reumatismo, a que lhe tirassem a casa [...] (ARCHER, 1950, p. 10). Ao mesmo tempo em que o narrador avalia os desejos da protagonista Teresa, ele coloca a importância que, mesmo alugada, a casa situada sítio nobre, representa para o conforto da personagem e seu único filho e, portanto, abriria de mão de qualquer coisa, entretanto, abrir mão de um antigo contrato que fixava o valor da renda muito abaixo do valor que a casa representa, estaria fora de questão.
A personagem, aqui representante de uma classe, deriva para aquilo que Abdala (2004, p. 40) define como: “O conceito de pessoa refere-se ao indivíduo pertencente ao espaço humano, enquanto personagem refere-se à persona (máscara) da narrativa. A personagem é um ser fictício, que se refere a uma pessoa”. O ser da ficção, que é representado por uma pessoa, no caso aqui, a Teresa, que tem seu valor para a economia da obra.
As personagens que compõem a narrativa são Teresa, sr. Seabra, o filho deles, Eduardo, a mãe de Teresa e suas amigas. No entanto o Sr. Seabra, as últimas personagens, e o filho de Teresa, são vistos neste espaço como personagens secundárias, atuam na trama, porém, suas intervenções não alteram significativamente seu sentido, diferentemente das personagens centrais, que é o caso de Teresa e Eduardo. A Teresa por sua vez podemos considerá-la ainda, como uma personagem plana, devido as características em que ela se encaixa. Gancho (2003, p. 16) afirma que [...] personagens planos, são caracterizados com um número pequeno de atributos [...] e que pode ser reconhecido por característica típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem[...], reconhecemos essas características quando a escritora nos descreve Teresa:


Como ia passar dois anos no estrangeiro mostrava-se imensamente «snob» e impertinente. Exibia-se e luzia-se nos conhecimentos da vida dos povos que habitam para lá do nosso modesto horizonte. Não se calcula como nos irritava! E eram as minucias... Não se ia e vinha, como os caixeiros viajantes... Demorava-se... Viveria num hotel de luxo... Compraria peles preciosas...  Vestidos... Perfumes... Voltaria com as malas cheias... Daria passeios lindíssimos... Exercitar-se-ia a falar... Oh! O sotaque, numa língua, dá o tom... (ARCHER, 1950, p. 9).


Dentre os elementos que estruturam a narração identificamos, no tocante ao tempo, que a autora narra a sua contemporaneidade e esta se dá em meados do século XX, momento em que Portugal vivia o regime austero da ditadura Salazarista. Enquanto elemento estruturante, de acordo com Nunes (2002, p. 20), ocorre um tempo cronológico, as cenas vão ocorrendo em uma ordem natural, do início para o fim, “[...] Baseado em movimentos naturais recorrentes, como os cronométricos a que já nos referimos, o tempo cronológico, por esse aspecto ligado ao físico, firma o sistema de calendário [...]” (idem), pois, essa cronometria é que coloca a ordem dos acontecimentos e os qualificas.
O espaço socialmente verificável em que a trama ocorre é na cidade de Lisboa “[...] A mãe de Teresa deixara o sossego da sua casa da província para viver em Lisboa esses dois anos, de guarda a casa da filha [...]” (ARCHER, 1950, p.13). Abdala (2004, p. 48) diz que o espaço se articula com as demais categorias da narrativa ao nível da história, e podem aparecer ligadas a um lugar físico, onde circulam as personagens e se desenvolve a ação.
O ambiente do enredo é mostrado a partir do termino do divórcio de Teresa com o senhor Seabra, já havia nascido um filho, com isso após o desenlace ele deixara a Teresa na confortável casa alugada por uma renda muito accessível. O narrador fornece detalhes do espaço situando-nos acerca do nível de conforto do ambiente.” Imagine-se uma moradia com quintal, e jardim, e um vestíbulo com ferros forjados, e aquecimento central, e três casas de banho, e salas ligadas por arcadas-com o senhorio a morar no primeiro andar e a Teresa no rés-do-chão.”  (ARCHER, 1950, p.10).
Os elementos do espaço serão, para a economia da narrativa, decisivos para a solução estética, como veremos adiante. Percebemos, pela minuciosa descrição do espaço em que se desenrola o enredo da narrativa que trata-se de uma casa ampla e, em muito bom estado de conservação onde Teresa habita com o seu filho menor. Vale registrar que o ambiente eventualmente está presente através de certas indicações que o artista faz, como descrições, atitudes conscientes das personagens, regular disposição de acontecimentos, inversão de fatos, descrição de lugares, resultado inesperado de certas cenas, etc.
Este diz respeito aos aspectos sócio econômicos, ou seja, a situação-ambiente constitui-se, muitas vezes um detalhe não atingível, inapreensível objetivamente na obra, e resulta de uma observação do leitor em torno dos elementos apresentados ou sugeridos pelo artista na combinação das atitudes das personagens e na ação.  Entretanto o ambiente faz referência à vida da personagem. Essa descrição também pode considerar como situação-ambiente conforme define Ataíde (1941): A situação ambiente é como um pano de fundo que serve para o desenrolar da ação e a vivência das criaturas ficcionais. É um resultado da experiência sobre o tempo e espaço. (p. 51).


Consideramos neste contexto a situação-ambiente, pois, é a partir da fruição desta que veremos o desenrolar da exegese ficcional, além de despertar o interesse pela leitura, aproximando a personagem da representação literária da vida social. De certo modo é neste ambiente que ocorrerá o conflito do enredo, criando o ponto culminante da a história, que podemos chamar de clímax, ou seja, o momento em que a narrativa atinge seu maior ponto de tensão, em seguida, temos o desfecho, a solução estética, o qual o autor nos surpreenderá com um final feliz ou não. Solução esta que segundo Gancho (2003, p. 11) “o desfecho é a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não. Há muitos tipos de desfechos: surpreendente, feliz, trágico, cômico, etc”. O desfecho da narrativa, é surpreendente, pois, Teresa  tinha consciência que o Eduardo estava com ela por causa do filho desta, (no seu primeiro casamento) o Quim, todavia, ela não cogitou em levar o menino consigo.


Toda gente, nas relações do casal, compreendia o assunto e o discutia. Mas toda a gente supunha, eu incluída, que a Teresa gostava do Eduardo. Por isso estranhei a resposta dela, há dias, quando lhe perguntei se levava consigo o filho: - Fica com minha mãe... O advogado insiste em que o deixe ficar... Calei-me – mas os meus olhos devem ter sido eloquentes porque a Teresa, logo em seguida, diz-me, como quem se justifica: - Olha, menina... Um outro marido como o Eduardo arranjo eu... Uma casa como esta é que não... (ARCHER, 1950, p.16).


O final, imprevisto para os padrões romanescos, sinaliza para o valor que materialismo e a razão assumem em detrimento da vivência do romance a sensibilidade, na vida da protagonista.  No trecho acima, percebemos que a casa era mais importante para Teresa do que seu companheiro, no recorte selecionado, a importância dos bens materiais prevalecerá para a personagem.
AS TRILHAS E A CONDIÇÃO FEMININA
A crônica é emblemática e sinaliza para o registro literário do nascimento de um novo perfil de mulher, agora mais consciente e menos dependentes dos ditames sociais e de um status quo.  A crônica selecionada por exemplo, permite-nos observar as relevantes mudanças no comportamento da mulher portuguesa que vive no meio urbano, em contato permanente e crescente com a instauração gradativa da modernidade, principalmente no que tange ao processo de formação da sociedade capitalista.
A narrativa intitulada “Faça mal quem o fizer quem o paga é a mulher”, à partida já se nota o um trocadilho, a apropriação da linguagem coloquial, que sua estrutura pode ser separada em versos de forma que temos “Faça o mal quem o fizer/ Quem o paga é a mulher”, este é formado de redondilha maior, com rima rica, e de fácil memorização.
O conflito gira em torno da personagem Anica, que por ter decidido deixar o marido opressor e acompanhar o amante, torna-se mal vista aos olhos da sociedade. A  personagem lança-se ao impulso de suas escolhas emocionais. Anica – um nome próprio no grau diminutivo já é sintomático – será guiada pelo sentimento da paixão, ao invés da razão, não se importando com o futuro. A representação da personagem foi contemplada na ficção de Maria Archer e deriva para aquilo que Anatol Rosenfeld (2011) afirma:
A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo: lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação.


É neste sentido, pois que, em seu percurso, ao longo da breve narrativa, Anica enquanto protagonista, será construída como personagem esférica. As “personagens esféricas” não são claramente definidas por Forster, mas concluímos que as suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; serão, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender, pois, conforme diz Candido (2000, p.63):
A prova de uma personagem esférica é a sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente. Se nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana com pretensão a esférica. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida, — traz a vida dentro das páginas de um livro” (Ob. Cit., p.75). Decorre que “as personagens planas não constituem, em si, realizações tão altas quanto as esféricas, e que rendem mais quando cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica arrisca tornar-se aborrecida” (Ob. cit., p. 70).
A narrativa breve indica sumariamente que Anica, embora dispusesse de uma condição financeira estável, andava muito insatisfeita com a vida que levava e, na ânsia de dar um novo rumo à sua existência, ao lado de um novo companheiro, lança-se à nova experiência conjugal, sem, entretanto, assegurar-se, muito menos estudar melhor o caráter do novo pretendente.  Desta maneira Anica, como veremos no trecho abaixo, a protagonista inconscientemente assume os riscos, na medida em que não se importou se um dia Ramiro a deixasse e ela viesse a perder tudo, se arrisca para viver uma paixão:


A Anica, desvairada de amor, fruia com intensidade o momento presente e não pensava nas consequências temerosas dos seus passos de mulher banida da vida das famílias nem no que poderia ser o seu futuro, um dia, se o Ramiro a amasse menos, a amasse pouco, ou a abandonasse. (ARCHER, 1950, p. 193).



A narração é feita por um narrador testemunha, aquele que participou e vivenciou os fatos do enredo, que pode ser justificado com a fala dele, [...] Lembro-me bem daquele dia, há anos, em que o escândalo da sua fuga com o Ramiro ribombou por Lisboa e deixou a sociedade – este meio de gente rica e janota e preconceituosa que a si mesmo se classifica de sociedade – deixou-a espantada e atordoada [...]( Idem, p. 191).


Ele narra em 1ª pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos como personagem secundaria que pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. Testemunha, não é à toa esse nome: apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal. (LEITE, 2002, p. 37).


Conforme adianta o narrador testemunha, a qual faz o uso do verbo lembrar, no pretérito, dá a perceber que o narrador conhecia Anica, e vivenciou o fato ocorrido. Segundo Ataíde (1941, p.55) o ponto de vista da trama é visto de modo externo, ou seja, está sendo apresentado por alguém que sabe dos acontecimentos, mas não os vivenciou. Ao olhar para a construção da obra, e para a sua ordem temporal veremos que esta obedece ao tempo cronológico, ou seja, o enredo corre de maneira sucessiva, desde que Anica saiu de casa, passou a viver com Ramiro, mudaram de cidade, e ao fim acaba sendo gradativamente abandonada pelo parceiro e ficando sozinha, isto pode ser percebido nos recortes: (ARCHER, 1950, p. 196) “[...] a Anica via-o partir dia após dia, noite após noite [...] Meses consecutivos, com muitos dias e muitas noites em cada mês[...], para Ataíde:


O tempo cronológico é aquele que se mede pelo relógio, pela sucessividade dos dias e das noites, pelo movimento da terra e da lua, pela alternância das estações. O tempo cronológico consiste num esforço do homem para opor uma barreira ao tumulto subjetivo, às presentificações da memória à duração interior que é imprevisível e incontrolável. (ATAIDE, 1941, p. 47).



A personagem experimenta dupla condenação: o isolamento social por parte dos seus familiares e o afetivo, na medida em que vivenciará o gradativo abandono por parte do amado. Tal constatação deriva do que pode ser percebido na construção narrativa e nos dá a impressão de que os espaços utilizados articulam-se com as demais categorias da narrativa ao nível da história. Na obra são divididos em três sequências, no dizer de Abdala: “Num sentido mais abstrato, é importante que seja considerado o espaço social, a ambiência social pela qual circulam as personagens, e o espaço psicológico, as suas atmosferas interiores”. (ABDALA, 2004, p.48).
Desta forma relacionamos os acontecimentos que ocorrera com Anica, através destes espaços, ao qual, no início, ela circulava tacitamente pelas ruas de Lisboa e fazia parte da alta sociedade, podendo relacionar este como espaço social, em seguida ao fugir com Ramiro, se vê obrigada a passar por sua irmã, e aos poucos acaba ficando isolada em casa, num país estrangeiro, não tendo a liberdade de circular pelas ruas, ou seja, este se torna um espaço físico restritivo, sua vida se restringirá aos limites da sua modesta morada. A partir de então, dará vazão à dimensão do espaço psicológico, pois, a restrição dos deslocamentos funcionará como elemento propulsor para Anica na tomada de consciência do espaço que oprime e como estes podem se tornar espaços de fuga.
Assim, ao impacto das suas constatações, o desfecho da trama se dá quando Anica deixa Ramiro, e volta para Lisboa sem o parceiro e despojada dos seus bens materiais. Notamos a distinção existente entre os homens da trama, enquanto o primeiro faz questão de dizer que é casado com Teresa, Ramiro omite, ou seja, esconde o relacionamento com Anica, sob o pretexto de não perder o emprego, pois o que predomina para ele é posição social, por não aceitarem homens casados com mulheres que fossem divorciadas.
A Anica, nesses anos de peregrinação pelo estrangeiro, desfalcara grandemente os seus haveres. Ao separar-se do Ramiro não dispunha de meios que lhe permitissem fixar residência em Paris. Foi-lhe forçoso regressar a Lisboa, limitar as despesas e viver de pouco. (ARCHER, 1950, p. 199).
As crônicas selecionadas são representativas de distintos perfis femininos. A primeiro trata-se de uma mulher ambiciosa e racional que se arrisca a perder o pretendente a marido, a perder a confortável casa onde vive, e na segunda narrativa, temos a representação da mulher que, ao impulso de viver a segunda experiência conjugal, não se importa com os bens materiais, foi capaz de largar tudo para viver um amor.


TRILHAS QUE SE ABREM...


A coletânea Filosofia de uma mulher moderna, em seu conjunto abordam temas como os vistos acima, exibindo o desafio vivenciado pelas mulheres na luta pela libertação de sua condição de subalternidade, entre outros.  As mulheres dos meados do século XX, época da ditadura salazarista, estavam sujeitas a uma hegemonia masculina, contentando-se apenas com os serviços domésticos e a educação dos filhos. A mulher encontrava-se sob um intenso domínio familiar, antes do casamento submissa ao pai e, após o casamento, ao marido.


Historicamente, a mulher foi sempre mantida como uma figura emudecida e marginalizada em diversos aspectos. O fato de ter sido tomada por sua suposta fragilidade e incapacidade de viver fora do domínio patriarcal implicou, não raro, o sacrifício de sua própria identidade. A tradição sócio histórica relegou à mulher um papel secundário na sociedade. Na esfera doméstica restavam-lhe as atividades de administração dos afazeres do lar e de educação dos filhos de forma que reproduzissem e perpetuassem os papeis sociais preestabelecidos. (ARAUJO, 2012, p. 14).


Da mesma forma, o registro literário na coletânea revela que a condição e o papel reservado para a mulher na vida social daquele momento, onde o lugar privilegiado era destinado aos homens e as personagens femininas, dispunham de espaço restritivo e, não raro, para viver eram submetidas ao regime no qual, sendo vistas como frágeis e incapazes, seu destino seria o casamento. Dessa forma, a literatura de Maria Archer desprende-se do usual, instaura um estilo próprio com seu distinto jeito de escrever, fará aquilo que defende Teixeira: “buscando, por meio de seus personagens, estabelecerem representações que questionam e contestam as posições ocupadas por homens e mulheres na sociedade” (TEIXEIRA, 2008, p. 33 apud MOURA, 2012, p.3).
A representação literária de Archer recria o mundo a partir da sua ótica e fala a por aqueles que não tem voz própria. Como se sabe, eram poucas as mulheres que assumiam a profissão de escritoras naquela altura.  O papel da escrita literária de várias autoras feminina, vista deste modo, era expor o comportamento dos perfis femininos, ligados ao período em que viviam, desta maneira, em suas publicações a representação literária e o engajamento era constante.


Ao recriar na literatura os diferentes grupos sociais é importante um posicionamento condizente com as vivências de tais indivíduos. Compreender o meio social a partir de um único viés não torna possível representar de modo eficaz os grupos que o compõem, já que, mesmo mostrando-se sensíveis e solidários a seus problemas, ainda assim estes não terão as mesmas experiências de vida. (ARAUJO, 2012, p. 34).


A literatura pode ser considerada como uma instituição social, que utiliza como expressão a linguagem, ela pode representar a vida, esta é uma realidade social. O artista se apropria da literatura para através dela fazer uma utilidade social, ou seja, apoia-se em suas vivências para se dirigir ao público. Conforme exprimem  Wellek & Warren, (1955),  ao discutirem a relação entre literatura e a sociedade, é costume começar-se pela frase – derivada de De Bonald - que afirma que “a literatura é uma expressão da sociedade”.


[...] Afirmar que a literatura é o espelho ou a expressão da vida será ainda mais ambíguo. Um escritor não pode deixar de exprimir a sua experiência e a sua concepção total da vida; mas seria manifestamente falso dizer que ele exprime a vida total – ou até mesmo a vida total de uma certa época -  por forma completa e exaustiva. [...] (WELLEK & WARREN, 1955, p. 114).


Desta forma, o artista não é obrigado a escrever sobre aspectos que ocorreram em toda a sua vida, mas sim de determinada época, descrevendo as implicações e relações sociais deste período. Dizer que a literatura exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo; no dizer de Antonio Candido, mas houve tempo em que “foi novidade e representou algo historicamente considerável”.  Na atualidade não é necessário enunciar que a literatura representa a sociedade, conforme defende Candido:
No que toca mais particularmente à literatura, isto se esboçou no século XVIII, quando filósofos como Vico sentiram a sua correlação com as civilizações, Voltaire, com as instituições, Herder, com os povos. Talvez tenha sido Madame de Staél, na França, quem primeiro formulou e esboçou sistematicamente a verdade que a literatura é também um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre. (CANDIDO, 2006, p. 29).


Assim, com base na sua produção e seu legado literário será possível afirmar que Maria Archer recusava enclausurar-se como intelectual e como mulher nos modelos impostos pelos ditames sociais. Essa atitude pode ser colhida nas suas produções criativas, uma vez que a autora alinha-se a um sistema de pensamento e de comportamento não previsto para a condição feminina determinado pela história.  Muito pelo contrário, sua atuação revela que a condição feminina deveria se voltar para novas vias de ação, de argumentação e de reflexão que não as mesmas trabalhadas pelos homens na história da cultura do seu tempo.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


Foi possível entrever, por meio da representação literária, na qual incumbe-se de exprimir “A filosofia de uma mulher moderna”, como as mulheres, naquela altura, comportam-se perante seus dilemas e suas angústias existenciais. Desde a escolha entre a razão e a emoção, diante do desafio de se entregar a um novo amor, em que a personagem da primeira narrativa, ao mesmo tempo em que ela decide recomeçar sua vida amorosa, ela teme em perder a casa, agindo com a razão, ela decide deixar o filho, assim, estaria segura a sua moradia com o aluguel muito abaixo do valor de mercado.
Paradoxalmente, a protagonista da segunda narrativa selecionada, como amostra para a identificação do delineamento dos perfis femininos, sob a ótica de Maria Archer, vimos que a personagem não imaginou que seu romance poderia não vicejar, como seria evidentemente desejável para a protagonista, desconsiderou a possibilidade de vir a perder o conforto em que vivia. Ou seja, a protagonista peca por ceder ao primeiro impulso e ao excesso de sensibilidade.
A contribuição literária de autoria de Maria Archer vem sendo gradativamente estudada no âmbito de relação literária e cultural ibero/afro/americana, vimos que autora muito tem contribuído para o avanço da literatura nos países de Língua Portuguesa e pela representação feminina neste contexto literário, uma vez que pela sua visão crítica, produz narrativas que estão muito além da literatura considerada apenas como de “sensibilidade contemplativa” e “linguagem imaginativa”. Suas narrativas são inquietantes porque identificam a opressão, evocam a vida, buscam a emancipação da mulher e, talvez por isso seu nome tenha sido gradativamente apagado e, até certo ponto eclipsado na história da literatura portuguesa.
A representação literária na obra de Archer pode ser considerada um genuíno produto de vida social, pois, através de sua criação é possível entrever questões relacionadas a fatos históricos, sociais e culturais, e que ao mesmo tempo pode ser vista ainda, como um modo de comunicação e expressão do seu olhar sobre a sociedade, a qual, por meio do seu gesto de interpretação estética, o conteúdo da mensagem pode alimentar um desejo de mudança no meio social.



REFERÊNCIAS
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ARAUJO, Adriana L. de,A representação da mulher no romance contemporâneo de autoria feminina paranaense. Dissertação de mestrado em Estudos Literários, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2012.
ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de ficção. 2. Ed. São Paulo: McGraw-hill do Brasil, 1941.
BATTISTA, Elisabeth. Maria Archer – o legado de uma escritora viajante. Lisboa: Edições Colibri. 2015. 380 p.
BATTISTA, Elisabeth. Entre a Literatura e a Imprensa: Percursos de Maria Archer no Brasil. Tese de doutorado em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
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