terça-feira, 18 de novembro de 2014

Dr AMÂNDIO DE AZEVEDO

GRANDE MIGRAÇÃO DE ÁFRICA PARA PORTUGAL

1 - Tenho a noção daquilo que posso, sobretudo nesta área. Não sou

especialista em imigração ou emigração. Acontece, porém, que é um tema

que seguramente interpela qualquer pessoa que se preocupe com os

interesses do país. E não foram poucas as vezes em que tive de me ocupar

desta problemática e destas matérias.

 Começo por informar que, com o Orfeão Académico de Coimbra, visitei

Angola, Moçambique, São Tomé e África do Sul em 1949, onde pude

contactar com os nossos compatriotas que aí viviam e ouvi-los sobre

problemas específicos que tinham como emigrantes.

Fiquei muito marcado pela maneira calorosa como receberam o Orfeão

de Coimbra, bem demonstrativa dos laços muito fortes que os uniam

à sua terra natal. Apesar disso, não deixava nunca de transparecer das

longas conversas havidas um grande descontentamento em relação à

política ultramarina, que não era dirigida essencialmente ao objectivo

nobre da colonização, que era o de promover o desenvolvimento de povos

que estavam numa fase de desenvolvimento muito atrasada, parecendo

antes ter o objectivo contrário, isto é, fazer com que não houvesse

desenvolvimento para não haver vontade de autonomia e de separação. E

isso era qualquer coisa que não podia ser aceite por quem tenha a noção

do que é a solidariedade entre os seres humanos e entre povos.

 Lembro-me também de que, quando comecei a despertar para a

problemática da democracia no nosso país, um dos assuntos que

constituía motivo de grande preocupação era exactamente o problema

colonial, porque era patente, pelo menos para as gerações mais novas a

que eu pertencia, que a política ultramarina precisava der ser repensada e

que os problemas levantados pelos movimentos separartistas não tinham

solução através da via que estava a ser seguida: a guerra, em vez de

resolver os problemas, só podia contribuir para os agravar.

Rrecordo-me também de que o problema do Ultramar se pôs com grande

acuidade no seio do Grupo que se constituiu no Porto para apoiar o bispo

do Porto no exílio e que veio a ter um papel importante na promoção

dos ideais democráticos, nomeadamente através da participação de

representantes seus na Assembleia Nacional, exactamente para defender

epromover a evolução do país para uma democracia do tipo ocidental.

 O problema colonial era um problema extraordinariamente importante

e a posição que eu próprio e todos aqueles que integravam o grupo

defendíamos era a de que a única solução era fazer de Angola e

Moçambique, novos Brasis, devendo Portugal mostrar-se disponível

para, em diálogo com os povos de Angola, de Moçambique e das outras

colónias portuguesas, preparar o caminho para que eles pudessem no

momento oportuno exercer o seu direito à autodeterminação e aceder à

autonomia ou à independência.

 E, à medida que os tempos foram evoluindo e que se via (só um cego

é que não via) que era completamente impossível manter o mesmo

esquema de domínio dos povos europeus sobre os povos ultramarinos,

tornava-se cada vez mais evidente que era necessário agir e alterar

profundamente esta situação.

Houve ainda uma informação que me marcou muito e que eu nunca

mais esqueci. Completado o Curso de Direito em 1953 e o Curso

Complementar de Ciências Jurídicas em 1954 na Universidade de Coimbra,

comecei a trabalhar em Lisboa em 1955 e a frequentar um grupo de

amigos bem informados sobre a política nacional, sendo que alguns até

desempenhavam funções importantes em Gabinetes ministeriais. Ora,

uma das inormações partilhadas nesse grupo, aliás com alguma reserva,

foi a de que a Inglaterra tinha avisado Portugal de que ia alterar a sua

política em relação às suas posseções ultramarinas por considerar que

era impossível manter o esquema de então e que era impossivel travar

as suas aspirações à independência. Sendo assim, o que havia que fazer

era reconhecer o seu direito à autodeterminação, era dar-lhes acesso à

independência por um processo negocial que pudesse salvaguardar os

verdadeiros interesses dos antigos povos colonizadores. E nós, olhando

para o que aconteceu com os povos dominados pela Inglaterra e com as

nossas antigas colónias, não podemos deixar de reconhecer que era esta a

via mais aconselhável.

2 - Eu penso que há aqui um ponto que nós não podemos esquecer.

O 25 de Abril abriu as portas da liberdade e da democracia ao nosso

país. Não é que a democracia resolva todos os nossos problemas e não

cometa erros, pois acho que pensar isso é uma fantasia. A democracia

significa que os destinos de um povo estão nas mãos dos seus cidadãos

e através do voto ou de qualquer outra maneira, no governo ou onde

for, os cidadãos podem agir bem ou agir mal, podem fazer coisas boas ou

podem fazer coisas más.E nós, se quisermos fazer uma análise do que se

passou em relação ao 25 de Abril, temos que reconhecer que começámos

muito mal, designadamente com o problema da descolonização. Foi um

verdadeiro desastre, económico e humano.

 Mas não estava toda a gente irmanada na mesma ideia. Eu acho que as

pessoas se recordam, aqueles que têm alguma idade, que havia quem

entendesse, mesmo depois do 25 de Abril, como o General Spínola,

então Presidente da República, o PPD liderado por Sá Carneiro e o

CDS, que se devia fazer uma descolonização que tomasse em conta a

manifestação da vontade dos povos das colónias ultramarinas. Mas

toda a gente sabe também que a aceleração revolucionária foi de tal

ordem, e nisto estiveram conjugadas todas as outras forças políticas –

falo principakmente do Partido Comunista, mas falo também do próprio

Partido Socialista - que se tornou muito difícil ou mesmo praticamente

impossível acautelar interesses e reduzir riscos através de negociações

sérias e necessariamente demoradas. Lembremos o slogan com

verdadeira força arrasadora “Descolonização já!"

 Antes já se tinha defendido essa posição. Recordo-me, nomeadamente,

que, como membro da Comissão Diocesana de Justiça e Paz, aqui na

Diocese do Porto, subscrevi um documento, em que se dizia isto mesmo,

Que era necessário reconhecer o direito das colónias portuguesas

à autodeterminação e que se devia preparar esse caminho. Esta

posição representava uma grave afronta ao governo de Salazar, e só

não teve consequências graves para os subscritores do documento

por circunstâncias muito especiais . Tratava-se, com efeito, de um

assunto "tabú" e tanto assim é que, os deputados do grupo que integrou

a Assembleia Nacional e veio a ser conhecido como Ala Liberal, tiveram de

assinar o compromisso, antes de se candidatarem, de que não abordariam

nas suas intervenções a questão ultramarina. Era "tabú" e não se podia

mexer nisso.

3 - Hoje vou falar-vos de um tema que não é verdadeiramente uma

migração típica. As migrações típicas têm, não digo totalmente, mas têm

uma percentagem forte de autonomia e de decisão própria daqueles

que mudam de território. No caso dos retornados de Angola, sobretudo

porque foi em maior número, e de Moçambique, não foi assim. Eles

não regressaram por vontade própria. Essencialmente, eles voltaram

para Portugal para salvar a própria pele, aqueles que a puderam salvar,

porque muitos ficaram lá. Não vieram em correntes normais, que são

mais facilmente absorvidas, vieram em catadupa. Nunca ninguém pode

saber exactamente os números, mas aqueles que se apontavam mais

comummente eram da ordem, pelo menos, dos 700.000 portugueses

que vieram para Portugal em 1975 e princípios de 1976. Eu fui para a

Secretária de Estado em Janeiro de 1976 e fui várias vezes esperá-los ao

aeroporto onde chegavam às centenas e se acumulavam aos milhares,

antes de seguirem para junto dos seus amigos ou familiares ou ainda

para os lugares de acolhimento indicados pelos serviços do Instituto de

Apoio aos Retornados. Chegavam destroçados física e moralmente, tendo

perdido todos os seus bens acumulados ao longo de anos de trabalho

duro e honesto, com a memória das situações dramáticas por que tiveram

que passar para, milagrosamente , salvarem as suas vidas e com a imagem

terível daqueles que lá ficaram. Este é, para mim o quadro que nós temos

que ter na nossa mente, qualquer coisa que nos toca e nos faz doer o

Portanto, temos que assumir que isto não foi uma coisa absolutamente

necessária, que podia não ter sido assim. A responsabilidade cabe, em

primeiro lugar, no meu entender, na minha opinião pessoal, aos governos

anteriores que a tempo não souberam tratar do problema: o governo de

Salazar, que foi avisado a tempo pelos nossos amigos ingleses, e o governo

de Marcelo Caetano. Aliás, muitos dos problemas que tivemos a seguir ao

25 de Abril, na minha opinião, devem-se também ao facto de e o governo

não ter permitido a formação de partidos políticos, e e não ter respeitado

outros direitos do Homem, além de não ter conseguido impedir a

formação de uma força política, que era o partido comunista, que, com

a sua organização e os seus recursos humanos e financeiros, teve uma

grande vantagem sobre os partidos políticos que começaram a formar-
se depois do 25 de Abrile que, por isso, chegou a dominar a situação em

Portugal, como toda a gente se recorda, com violências de toda a ordem.

E essa é também uma página muito negra do nosso processo do 25 de

Abril, a que não podemos de maneira nenhuma fechar os olhos.

Mas eu sou obrigado a fazer o contraponto, eu que desde muito cedo

me apercebi de que a única forma digna de um país se organizar é a

democracia. Não há ninguém, por mais inteligente que seja, por mais

dotado que seja, que se possa arrogar o direito de decidir pelos outros

sem sequer querer saber o que é que eles pensam. Esse foi o regime em

que nós vivemos durante muito tempo.

 Antes de partir para África, o Orfeão de Coimbra foi recebido por Salazar

no Forte de São João do Estoril e eu nunca mais me esqueci da grande

mensagem que nos quis transmitir. "Os portugueses seriam muito mais

felizes se seguissem as orientações do governo em vez de discutirem no

café e de fazerem críticas...” A ambição dele era, portanto, ter pessoas

obedientes e submissas que acatassem as orientações e os comandos da

pessoa iluminada que ele era.

Ora, eu considero - eu digo isto porque tenho consciência de que hoje há

muita gente que está descontente com o 25 de Abril, porque as coisas

não têm corrido tão bem como nós desejaríamos, porque se criaram

expectativas excessivas - mas enfim, considero que é absolutamente

essencial que as pessoas tomem consciência de que o único regime que dá

dignidade ao ser humano e aos cidadãos portugueses, é indiscutivelmente

a democracia.

Se porventura Salazar tivesse reconhecido, ao menos numa fase em

que isso era claro como água, que era preciso evoluir para um regime

democrático, como como viria a reconhecer Marcelo Caetano, embora

sem passar das palavras aos actos, as coisas teriam sido completamente

diferentes. Nós tivemos pessoas cegas no poder que nunca tiveram os

olhos abertos à realidade e que esperaram até que a barragem se desfez

e veio a avalanche das forças organizadas contra a grande maioria dos

cidadãos impreparados que nunca tinham pensado em tomar nas suas

mãos os seus destinos.

 Apesar de tudo, também gostaria de aproveitar esta oportunidade para

dizer que, no diálogo que mantive ao longo de vários anos no quadro

da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa ,sempre ouvi da

generalidade dos parlamentares dos paises democráticos da Europa os

maiores elogios a Portugal e aos portugueses por terem sabido superar

os gravíssimos problemas que tiveram de enfrentar na sequência da

revolução de 25 de Abril, dando excepcionais provas de bom senso,

de equilíbrio e de determinação na defesa dos valores da democracia ,

constituindo assim um exemplo a seguir, que já foi efectivamente seguido,

por outros povos que venham a encontrar-se em situação semelhante.

4 -Que é que eu posso dizer-vos para além disto, que são preliminares

que mostram o problema em toda a sua extensão, lembram até como ele

podia ter sido evitado, que podíamos ter tido uma descolonização bem

mais humana do que aquela que tivemos e seguramente menos dramática

do que aquela que tivemos.

Outro aspecto que eu penso que é importante destacar é que, apesar

de tudo, as autoridades portuguesas de qualquer sector, se mostraram

sempre fortemente empenhadas, até ao limite do possível, se é que

mesmo este limite não foi muitas vezes ultrapassado, na resolução dos

prolemas ingentes e muitas vezes dramáticos dos portugueses residentes

nas antigas colónias que foram obrigados a regressar a Portugal.

Mas também tenho a convicção de que houve tentativas de forças

políticas para tirar proveito, a meu ver ilicitamente, da situação dos

retornados. Não tenho a mínima dúvida a esse respeito. Duma delas até

fui eu a vítima.

Refiro-me à invasão do meu gabinete de Secretário de Estado dos

Retornados por um grupo organizado de cerca de 300 a 400 pessoas,

algumas delas, ao que veio a ser apurado, em tratamento em hospitais

psiquiátricos, que exigiam que eu abandonasse o meu cargo com o

fundamento de que este cargo devia ser exercido por um retornado.

Argumentavam ainda que eu era comunista e, consequentemente,

inimigo dos retornados. Argumento curioso, quando era lícito suspeitar

que o movimento tinha por traz o Partido Comunista e era simples

pretexto para atacar o Governo. Aconteceu até que eu acabei por

ser agredido, eu até penso que a responsabilidade não terá sido da

organização. Mas, enfim, a situação era complicada, mesmo explosiva,

porque a certa altura havia cerca de 300 ou 500 pessoas no gabinete, que

era uma sala grande, e na rua começou a haver tiros.

Lá se conseguiu acalmar os ânimos, com o meu chefe de Gabinete,

Secretárias, e outros emmbros do Gabinete a tentarem corrigir a

informação que eles tinham, que não era nada verdade que eu fosse

comunista. E naquele período ainda meio revolucionário eu dispus-me

a resolver o problema da maneira mais pacífica. Tendo a polícia pedido

autorização para entrar no meu gabinete e desocupá-lo à força, resolvi

consultar os líderes do movimento e disse-lhes que era o momento de

eles decidirem se queriam sair voluntariamente, porque, se assim não

fosse, eu tinha que dar autorização à polícia para entrar e evacuar as

instalações. Por outro lado, no que respeita à reivindicação, disse-lhes

que não deveria ser feita perante mim, porque eu estava ali porque fui

nomeado legitimamente. E só estava lá enquanto quem me nomeou

quisesse que eu estivesse. Portanto, se queriam fazer essa reivindicação,

faziam-na ao Primeiro-Ministro.

É claro que eu tinha tido antes o cuidado de telefonar a Pinheiro de

Azevedo, que era um primeiro-ministro muito especial, a pedi-lhe

para receber uma delegação dos manifestantes para ver se a gente

conseguia controlar aquela manifestação e evitar que ela descambasse

ou redundasse em grande violência. Curiosamente eles aceitaram,

evacuaram o ministério livremente e eu próprio e o meu chefe de

gabinete, levámo-los de carro até ao gabinete do Primeiro-Ministro

Pinheiro de Azevedo. Pessoas que o conheceram imaginam o raspanete

que Pinheiro de Azevedo lhes deu. Acabaram por saír de lá todos a pedir

desculpa. E a manifestação acabou assim, nunca mais se tendo ouvido

falar da reivindicação que a teria motivado.

Mas, voltando ao problema dos retornados, eu fui escolhido - não pensava

nestas funções, nem tinha conhecimentos particulares nesta matéria - na

sequência do pedido de demissão do Secretário de Estado de então, meu

amigo e saudoso Vasco Graça Moura, que veio a notabilizar-se justamente

no domínio das letras e de outros domínios. Era um pessoa por quem eu

tinha um grande respeito, consideração e amizade, embora e por muitas

vezes não tivéssemos estado de acordo e até em aspectos importantes

da política do partido. Mas a verdade é que ele saiu do partido por

divergências no Congresso de Aveiro, que se realizou em Dezembro

de 1975, e, pessoa honrada como era, tendo saído do partido resolveu

entregar o lugar de Secretário de Estado dos Retornados ao partido para

que pudesse indicar para o cargo outra pessoa. E, entendendo o partido

que devia ser eu, acabei por ser nomeado.

Tive a sorte, devo dizê-lo aqui publicamente, de ter encontrado na

Secretaria de Estado pessoas que me deram uma ajuda absolutamente

fantástica. Aliás, também é preciso dizer que os ministros e os secretários

de estado não são necessariamente especialistas. São generalistas, quer

dizer, vêem os problemas na sua globalidade e assim é que tem que

ser. Têm que olhar para o país inteiro, devendo a informação técnica e

específica sobre cada assunto ser dada pelos seus colaboradores.

Mas eu tive realmente a sorte de ter colaboradores excepcionais,

competentes e de uma lealdade a toda a prova. São conhecidos, aliás. A

Dra. Maria Raquel Ribeiro, que foi deputada na Ala Liberal, juntamente

com Sá Carneiro e Balsemão e a Dra. Irene Aleixo, que foi Governadora

Civil de Setúbal.

5 - Mas, gostaria ainda de referir aqui alguns factos relacionados com a

minha passagem pela Secretaria de Estado dos Retornados que merecem

ser conhecidos.

Em primeiro lugar, posso afirmar que me parece indiscutível que a atitude

do governo do país - o governo de que eu falo era o sexto governo

provisório, anterior às eleições de 1976 que deram lugar ao primeiro

governo constitucional - no que respeita aos retornados, era proporcionar

tudo o que fosse necessário para eles não terem carências essenciais no

seu regresso a Portugal, e estamos a falar de alojamento, de alimentação,

de habitação e de ensino dos filhos. Aliás, a minha mulher,que é ligada a

esta área, lembrou-me que aumentou exponencialmente o número de

alunos nas nossas escolas porque se inscreveram várias dezenas de milhar

de crianças vindas de África.

 Para executar a sua política, o Governo criou o IARN, Instituto de

Apoio aos Retornados Nacionais, configurando-o como uma espécie de

instituição pública paralela, porque tinha competências para tratar todos

os problemas, fossem quais fossem, relacionados com os retornados.

6 - Pouco depois de tomar posse, e quando o gabinete ainda dava os

primeiros passos, surge o meu primeiro grande problema e a minha

primeira surpresa. Sou informado por um responsável do IARN que os

cofres do Instituto estavam vazios e que havia contas a pagar a curto

prazo. Abreviando, chegou-se à conclusão de que era necessário um

reforço de verbas da ordem de um milhão de contos. Porquê? Porque

muitos retornados foram alojados em hotéis, hotéis que eram pagos pelo

Estado como se fossem clientes normais. E a este respeito deve dizer-se

que inicialmente até foi uma medida saudada pelos próprios hoteleiros.

A revolução de Abril eliminou o turismo. Os hotéis estavam às moscas,

completamente vazios. E então isto foi uma forma de os hoteleiros terem

os hotéis cheios. Os retornados distribuíram-se naturalmernte pelo país

inteiro, mas fpram muitos os que se concentraram em Lisboa e esses é

que causavam o maior problema ao orçamento do Instituto.

Era preciso pagar os hotéis e resolver-lhes o problema da alimentação.

A solução encontrada, porventura determinada pela força das

circunstâncias, consistiu na distribuição generalizada de “vouchers” que

permitiam aos retornados tomar as suas refeições nos restaurantes,

sendo depois as respectivas facturas apresentadas ao IARN. Assim se

compreende que as facturas dos hotéis e restaurantes atingissem no fim

do mês importâncias consideráveis.

Devo dizer que o meu pedido de reforço de verbas encontrou o melhor

acolhimento por parte do Secretário de Estado do Orçamento, na linha,

aliás, da orientação fixada pelo Governo no sentido de serem dados

ao IARN os recursos necessários para responder às necessidades dos

retornados, que, pela sua natureza, não se podiam prever com rigor e

tinham sempre que ser tomadas com a maior urgência.

Atendendo, porém, ao enorme esforço financeiro que esta situação

implicava, sendo ainda certo que a tendência seria a de se agravar com

o tempo, decidi fazer uma análise profunda de todas as medidas que

tinham sido adoptadas para apoiar os retornados e logo verifiquei que

nem todas eram correctas e estavam muito longe de respeitar o princípio

fundamental da igualdade de tratamento para todos os retornados. Será

que continava a justificar-se o alojamento de retornados nos hotéis ? Não

haveria outras soluções menos dispendiosas e até mais adequadas tendo

em conta o objectivo da sua reinserção social ? Não heveria mesmo a

necessidade de desocupar os hotéis para que pudessem ter o seu destino

normal, tanto mais que, com o fim do período mais agudo da revolução,

estavam restabelecidas as condições de segurança para quem quisesse

visitar-nos ? Será que não haveria uma solução alternativa mais correcta

e equilibrada para os retornados a quem era dada a possibilidade de se

alimentarem sem custos nos restaurantes ? Será que é juusto gastar

quantias avultadíssimas com os retornados que optaram por ficar na

região de Lisboa,deixando os que se espalharam pelo país muito mais

desprotegidos e entregues muitas vezes à sua sorte ?

Na sequência deste estudo e desta reflexão, a porimeira decisão que

tomei foi a de anular todos os “vouchers”que tinham sido distribuidos

pelo IARN, substituindo-os por prestações sociais que lhes permitiriam,

pelos próprios meios, prover à satisfação, a nivel aceitável, das suas

necessidades essenciais.

Comunicada esta decisão ao IARN para elaboração do projecto de

despacho, fui confrontado com toda uma série de razões que me

aconselhavam a renunciar ao meu propósito, invocando mesmo o

argumento de que este despacho iria provocar uma grande perda de

votos no meu partido nas eleições que deviam realizar-se dentro de

poucos meses.

Mas, a minha resposta, no essencial, foi a seguinte. Quando tenho um

problema, estudo-o em profundidade, analisando as suas soluções

possíveis, com as respectivas vantagens e inconvenientes e opto

naturalmente por aquela que julgo dever tomar, tendo em conta as

minhas competências e as minhas responsabilidades. A partir daí, a

decisão está tomada e é para executar, a menos que tenham surgido

factos novos ou razões que não tinha ponderado, o que não se verificava

neste caso. O despacho foi assinado e os “vouchers” acabaram.

Quanto aos votos, sempre entendi, e continuo a entender, que se

conquistam com uma actuação pautada pela seriedade e, seguramente,

pela competência demonstrada no exercício da função governativa, que

tem como objectivo o bem e os interesses do país e nunca angariação de

votos, ainda por cima através de processos desonestos, para o partido do

governante.

Eu até podia perder votos nas eleições, e até considero provável que

o PPD tenha perdido alguns. Mas, os votos que se perdem nestas

circunstâncias ganham-se depois, porventura a dobrar,com a credibilidade

que se conquista, porque, para mim a política não pode ter sucesso se as

pessoas que quiserem segui-la não tiverem credibilidade.

Essa foi sempre a minha grande preocupação. Aliás, eu devo dizer que

não é só a minha experiência pessoal. As pessoas estão muito enganadas

quando dizem que os políticos são todos uns aldrabões, uns corruptos.

Claro que também há disso, mas no meu entender, e conheço muita

gente que está na política, a grande maioria dos responsáveis políticos,

nomeadamente os membros do governo, actuam seriamente na linha de

defesa dos interesses nacionais e nunca na linha da defesa dos interesses

do partido.

 Quem está no governo tem a obrigação moral e cívica de agir em

conformidade com a defesa dos interesses do país. Não pode pensar

na defesa dos interesses do partido. Aliás, os verdadeiro e autênticos

interesses do partido nunca são contraditórios com os interesses do país.

Um partido que se afaste da defesa dos interesses do país não é digno de

ter os votos dos eleitores.

Ora, nunca tive a menor dúvida de que era meu dever, para defender os

ineresses do país, acabar com uma despesa em grande parte injustificada

que custava aos cofres do Estado uma quantia calculada em 300.000

contos por mês.

7 - Da análise da situação, tornou-se também muito claro que a quási

totalidade do orçamento do IARN era gasta em Lisboa.

Qualquer retornado que habitasse em Trás-os-Montes, nas Beiras,

onde fosse, se quisesse ter algum apoio, teria que se deslocar a Lisboa.

Resultado: o acesso aos apoios era muito mais difícil, e, se viessem a obtê-

los, uma boa parte era gasta nas viagens.

Para pôr termo a esta situação, claramente discriminatória, determinei

que a assistência aos retornados devia ser prestada no local da sua

residência. Para tanto, fez-se um convénio com os serviços da Segurança

Social e foi assim que as coisas passaram a ser feitas.

8 - Como já tive a oportunidade de referir atrás, punha-se também o

problema da desocupação dos hotéis. O país, a partir do 25 de Novembro,

começava a ter a necessária estabilidade. Consequentemente, os turistas

começavam a ter condições para regressar e era preciso ter hotéis

disponíveis para os receber.

O problema não era fácil de resolver. Eu tive a consciência de que a

desocupação, para ser feita ordeiramente e sem grandes perturbações,

tinha que ser levada a cabo por alguém que soubesse dialogar com os

retornados e explicar-lhes convenientemente as razões que estavam na

base da decisão tomada. Tive que reconhecer que isto só podia ser feito

por pessoas da minha inteira confiança.

Esta tarefa, excepcionalmente difícil, melindrosa e arriscada, foi, por isso,

confiada à Dr.a Raquel Ribeiro e à Dr.a Irene Aleixo, apoiadas pelas suas

colaboradoras. A verdade é que seconseguiu desocupar o Hotel Altis, que

foi o primeiro entre muitos outros, sem grandes problemas, oferecendo-
se como alternativa a cada retornado uma importância considerada

razoável que lhe permitisse organizar a sua vida e assegurar no imediato a

satisfação das suas necessidades essenciais

Os retornados a quem não agradasse esta proposta, seriam encaminhados

para alojamentos colectivos, como antigos quartéis, antigos sanatórios,

etc. Eram instalações humanamente aceitáveis, cosideradas como

provisórias, como se pretendia que fossem. Resultaria daqui uma pressão

razoável para que o próprio retornado se empenhasse na procura duma

solução mais conforme com as suas legítimas aspirações.

 Aliás, eu também já tinha tido, há muitos anos, a responsabilidade de

dirigir os serviços sociais das prisões, destinado a prestar assistência

aos presos e suas famílias, aprendendo aí um princípio básico. A ajuda

social deve ter como objectivo principal o desenvolvimento máximo das

capacidades, da autoestima e do sentido de responsabilidade de quem

está necessitado para que ele possa, por si próprio, resolver os seus

problemas. Daqui resulta que a ajuda só deve ter lugar quando, a esta

luz, se revele claramente necessária e deve ser sempre encarada como

acessória e temporária. É este o sentido daquele velho ditado chinês: “se

alguém tem fome, não lhe dês o peixe, dá-lhe antes a cana para pescar”.

Quer dizer, como tive a ocasião de ler em livros especializados nesta

matéria, é indispensável, em relação a uma pessoa que pede ajuda, ter

a paciência e a coragem de permitir que ela se aperceba da gravidade da

situação, que “queime até as pontas dos dedos”, para a partir daí agir e

tentar por si própria resolver os seus problemas.

 Aconteceu, de resto, que a grande maioria dos retornados era dotada

de um grande espírito de iniciativa e de uma vontade muito forte de

melhorar as suas condições de vida, prontos para enfrentar com coragem

e determinação as dificuldades que pudessem surgir. Foi por isso que,

em prazo relativamente curto, fazendo apelo a todas as suas capacidades

e com a ajuda e a solidariedade de familiares, amigos ou simplesmente

conhecidos, espalhados por todo o país, já tinham casa para morar e

desenvolviam actividades da mais diversa natureza que lhes permitiam

auferir rendimentos para prover à satisfação das suas necessidades.

Tenho a consciência de que o governo fez o que devia e o que podia

para ajudar os retornados. Mas se a sua reintegração no nosso país foi

indiscutivelmente um caso de sucesso, que causou imensa admiração e

rasgados elogios a Portugal, o mérito cabe essencialmente aos próprios

retornados e ao extraordinário espírito de entreajuda e de solidariedade

mais uma vez demonstrado pelo povo português.

Recordo que a generalidade dos parlamemtares do Conselho da Europa

não se cansavam de fazer as referências mais elogiosas. Então os

franceses, conscientes dos problemas complicadíssimos que tiveram com

a integração dos retornados da Argélia, perguntavam insistentemente

com é que nós, um país tão pequeno com 9 milhões de habitantes

conseguimos, num curto espaço de tempo e de uma maneira tão pacífica,

integrar cerca de um milhão de retornados das antigas colónias. Eram só

 Como acabei de dizer, o mérito foi sobretudo dos próprios retornados

que demonstraram possuir a capacidade, a vontade e a determinação

necessárias para ultrapassar a situação dramática que lhes foi criada e de

muitos milhares de portugueses que, por razões de família, de amizade ou

de simples vizinhança, deram provas de uma solidariedade sem limites.

Mas também tem de se reconhecer o mérito do Estado que, como já

foi dito, fez tudo o que era necessário para garantir a subsistência dos

retornados e para apoiar os projectos em que rapidamente se lançaram

para reorganizar as sus vidas.

9 -Cabe aqui falar da criação do Fundo de Financiamento dos Retornados.

A certa altura, os Estados Unidos resolveram, numa louvável atitude

de solidariedade com Portugal, oferecer um donativo de um milhão de

contos. Se esse donativo fosse utilizado para melhorar as prestações

de apoio aos retornados, o seu impacto seria relativamente reduzido

e esgotar-se ia rapidamente. Sabia que muitos retornados se tinham

queixado de que tinham projectos económicos considerados viáveis,

para os quais não conseguiam financiamento na Banca por não disporem

do chamado “capital próprio”. Não sendo cumprido esse requisito, o

projecto ficava pelo caminho.

 Foi então que, discutindo com os meus acessores a melhor utilização que

poderia ser dada a este donativo, o Dr. Paulo Daniel, que foi mais tarde

Subsecretário de Estado da Educação, propôs que com ele se criasse um

fundo para financiar projectos de retornados, destinado exactamente a

substituir o capital próprio de que eles não dispunham.

O apoio monetário a estes projectos poderia ser concedido se a Banca

considerasse o projecto viável e se decidisse financiá-lo. Desta maneira

não se gastaria um centavo em custos administrativos. Este apoio

era considerado um empréstimo que só seria reembolsável depois

de reembolsado o empréstimo concedido pela Banca. Optámos por

esta solução porque, com o reembolso dos empréstimos concedidos

aos projectos que tivessem sido bem-sucedidos, se reforçaria o fundo

de financiamento com a consequente possibilidade de ajudar mais

retornados.

 O que é certo é que este projecto vingou. Os bancos comprometeram-
se a apreciar os projectos, a conceder financiamento adequado no

caso de os considerarem viáveis. Portanto, quando a banca desse o

financiamento, era sinal de que acreditava no projecto, e, sendo assim,

o Fundo entrava com a parte que correspondia ao capital próprio do

retornado. Devo dizer que, por esta via, foram efectivamente centenas de

projectos de retornados que tiveram financiamentos – até porque o fundo

foi sucessivamente reforçado pelo governo seguinte – abrindo a porta

a muitos retornados para criarem as suas próprias empresas, o que lhes

permitiu reorganizar a sua vida e rapidamente resolver os seus problemas

financeiros pessoais e até dar um contributo muito importante para o

progresso do próprio país. Numa altura em que a economia estava longe

de ter o dinamismo necessário, os retornados, com a sua reconhecida

experiência, conhecimentos, iniciativa e dinamismo acabaram por ajudar o

próprio país ajudando-se a eles mesmos.

10 -Para terminar, gostaria ainda de informar que também foi feito um

esforço especial para resolver o grave problema da habitação através

da execução de um programa de construção de casas destinadas aos

retornados e que, neste domínio, pudemos ainda contar com a ajuda

generosa do Governo da Noruega , que nos ofereceu um número muito

considerável de casas prè-fabricadas que foram implantadas pelo país

fora, não em Lisboa, em terrenos cedidos pelas diferentes autarquias, e

atribuidas gratuitamente a muitas famílias de retornados.

11 - O balanço final que se pode fazer da descolonização, já o dissemos, é

muito negativo, quer para os nativos das antigas colónias, que sofreram

os horrores de uma guerra fratricida durante vários anos, quer para os

portugueses que lá viviam e que foram forçados a regressar a Portugal em

condições particularmente dramáticas. Penso ter mostrado, todavia, que,

em compensação, Portugal e os portugueses souberam estar à altura das

suas responsabilidades na resolução dos problemas que a descolonização

desgraçadamente provocou. Pode dizer-se que não foram precisos mais

de dois ou três anos para que os retornados estivessem plenamente

integrados no seu país de origem como cidadãos de pleno direito e com os

seus problemas básicos em geral resolvidos

Deve referir-se, porém, em homenagem à verdade, que não existiam

neste caso os verdadeiros problemas das migrações. Apesar de alguns

terem nascido em África, o que é certo é que a sua matriz cultural era

portuguesa. Sem esquecer que as condições e modo de vida em Portugal

eram claramente diversas das que tinham em África, virem para Portugal

era, de algum modo, um verdadeiro regresso a casa, ao encontro, para

muitos deles, de familiares e amigos que cá tinham deixado e de quem

nunca se tinham esquecido.

Amândio de Azevedo

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