sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

COMUNICAÇÃO MARIA MANUELA AGUIAR

INTRODUÇÃO
O CONGRESSISSMO COMO ESPAÇO DE LUTA PELA IGUALDADE DE GÉNERO

No Encontro Mundial da Maia, procuramos ir às raízes do movimento pela intervenção cívica da Mulher, em Portugal, que, a nosso modo e no nosso tempo, continuamos, olhando em especial as mulheres da Diáspora.
O que nos une e reúne, como há um século aconteceu com as feministas da 1ª República, é a convicção de que só a acção colectiva pode levar a mudanças essenciais a uma transformação da sociedade no sentido da maior igualdade de género.
O poderoso associativismo feminino, que se projectou no tempo dessas precursoras, é irrepetível e do que, na mesma época, traduziu formas inéditas de solidariedade entre as portuguesas emigradas (muito em particular na Califórnia, a nível do movimento mutualista) o mesmo se poderá dizer.
É certo que há ainda lugar para organizações exclusivamente compostas por mulheres, que desempenham um papel muito importante, sobretudo no campo tradicional da beneficência e acção social, caso da Sociedades das Damas Portuguesas da Venezuela, da Liga da Mulher da África do Sul e da Associação da Mulher Migrante Portuguesa da Argentina - de todas a mais recente. Todavia, na Califórnia, as pioneiras Sociedade Rainha Santa Isabel e União Protectora Portuguesa do Estado da Califórnia passaram a aceitar a filiação de membros do outro sexo ou a fusão com outras sociedades fraternais e mutualistas.
No século XXI, na nossa perspectiva, sem prejuízo de aceitação da bondade de outras opções, a prioridade terá de ser dada ao acesso das mulheres ao dirigismo nas organizações em que se estruturam as comunidades portuguesas, onde estão, em regra, ainda marginalizadas - o que para além de representar uma inaceitável discriminação sexista, prejudica a expansão e a renovação das próprias instituições.
O "congressismo", outra das heranças feministas do início de novecentos - entendido em sentido lato, para abranger o esforço de informação, debate, reflexão, crítica, testemunho, troca de experiências, reivindicação em múltiplos "fora" e, genericamente, eventos com projecção mediática - é ainda um dos mais eficazes instrumentos actuais ao serviço do objectivo de mobilizar as portuguesas para a intervenção nas comunidades do estrangeiro.
A organização dos vários Encontros Mundiais de Mulheres Migrantes, a partir de 1985, de conferências e debates sobre a temática de género ligada à emigração portuguesa, enquadra-se nesta visão das coisas e tem sido, frequentemente, iniciativa conjunta, ainda que através de fórmulas diversas, do governo e de ONG's - penso sobretudo, nas que vêm sendo levadas a cabo, desde 1994, pela "Mulher Migrante - Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade". Esta continuada cooperação entre Estado-sociedade civil, entre mulheres e homens é, sem dúvida, um aspecto a realçar, e não se pode dizer que seja algo de alheio às nossas melhores tradições, pois, de factto, vai encontrar raízes no passado.
Nesta breve comunicação, limito-me a assinalar algumas das caracteristicas singulares do exemplo português na luta pela afirmação da cidadania das mulheres e da recorrência de singularidades ou originalidades nossas, em épocas tão distintas como foram o início e o final do Século XX. Há ensinamentos a tirar, que apontam, ainda que com todos os riscos inerentes à extrapolação, para as virtualidades de uma mudança rápida do "status quo", de que os portugueses se mostraram, por vezes, tão capazes, para surpresa dos outros e, talvez, também deles próprios.

I - O PRIMEIRO PARADIGMA - O MOVIMENTO FEMINISMO NO INÍCIO DE NOVECENTOS
O movimento feminista foi, em Portugal, surpreendentemente moderno e vanguardista na medida soube resistir à tentação do radicalismo, aos excessos de uma "guerra de sexos", por um lado, e, por outro, ao mimetismo dos paradigmas masculinos, em favor de uma assunção plena do "feminismo feminino", na expressão de Carolina Beatriz Ângelo. As nossas “Avós” sufragistas, reclamaram, lucidamente, os mesmos direitos e deveres na "res publica", com a sua própria maneira de ser e de actuar, tal qual eram - em caminhada democrática e solidária, lado a lado, com os homens, numa vivência da ideia da "paridade", que teorizaram e quiseram por em prática muito antes da palavra ter feito o seu curso nas Constituições e nas leis, que hoje nos regem.
Partilhavam, como sabemos, a utopia igualitária que inspirava os movimentos de luta pela libertação das mulheres por toda a Europa e na América do Norte, mas moldaram-na à sua feição, com a força da esperança numa mutação de regime, imediatamente antes e durante o processo de consolidação da República.
De facto, entre nós, as questões de género e de regime entrelaçaram-se, num mesmo desígnio de liberdade e progresso, que parecia capaz de resolver a primeira pelo simples facto de resolver a segunda – embora, o não viesse a fazer, sem que às mulheres possa ser assacada a responsabilidade por esse desvio do que poderia e deveria ter sido o curso da história do feminismo em Portugal.
Aquela dupla pertença foi, a meu ver, a argamassa, a base sólida da especial cumplicidade que as unia aos revolucionários do sexo oposto, e as levava a situarem, claramente, a problemática da mulher no quadro global das transformações do Estado e da sociedade. Era a refundação do País que idealizavam, sem duvidar de que ela comportaria o fim de todos os privilégios, entre eles, os de sexo, assegurando, em simultâneo, a plena emancipação da metade feminina. Não era uma luta em causa própria, em favor de uma minoria - a elite da cultura ou da fortuna, a que muitas delas pertenciam - mas em favor de todas as mulheres, e, mais latamente, da sociedade portuguesa.
Viam o momento de explosão revolucionária, como um tempo de grandes oportunidades, para que estavam, porém, como o futuro demonstraria, bem mais preparadas do que os homens seus correligionários. Mas sabiam que nada aconteceria sem esforço, sem a comprovação da importância do seu contributo, muito concreto, num combate que só poderia ser ganho pela força da organização colectiva, pelo associativismo, e pela consequente demonstração pública da inteligência, da coragem, e capacidade de decisão e de intervenção cívica de toda uma geração, não apenas de algumas mulheres a título excepcional - como as que, em diferentes épocas, venceram a barreira do absoluto anonimato a que estavam destinadas, em razão do sexo, na História escrita pelos homens: Chefes de Estado, rainhas influentes nos negócios do Reino, heroínas de revoltas populares e de guerras, sobretudo nas praças de África, no Oriente, algumas invulgares escritoras ou artistas imortalizadas pelo talento... Todavia, o que é raridade não conta. e, por isso, não destruíram, com o seu exemplo solitário, os estereótipos de inaptidão da mulher comum para a coisa pública, não influenciaram o estatuto e os direitos da generalidade das mulheres, como a elite de novecentos se preparava para tentar.
A tomada da palavra perante multidões, um pouco por todo o país, com um discurso coerente e convincente, tanto por parte de nomes consagrados (Osório, Cabete, Veleda…), como de tantas jovens desconhecidas, em comícios, em "fora" de reflexão e debate, em acções de propaganda, constituiu um grande momento de viragem.
Foi, assim, no campo de acção ou de luta designado por “congressismo”, que as Portuguesas fizeram a passagem, súbita, inesperada, espectacular, do círculo doméstico, onde os costumes as confinavam, para a esfera pública, onde abriram caminhos, que levariam décadas a percorrer - e que são ainda agora a via aberta para o nosso próprio trajecto.
Outra das peculiaridades lusas, há que destaca-la, patenteia-se no papel que os homens desempenharam neste processo. Os líderes republicanos apelaram, eles próprios, à participação activa das mulheres, deram-lhe, nessa primeira década de novecentos, um papel a representar no palco das sessões de propaganda, no turbilhão revolucionário em que, por igual, se envolveram. Até então, o incipiente movimento feminista nascia à semelhante dos de outros países europeus - mais tardio, mais discreto, porventura - mas avançando, à margem de solicitações partidárias directas, com republicanas como Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete, mas também com monárquicas, como Olga Morais Sarmento Silveira, Branca de Gonta Colaço ou Domitília de Carvalho (que haveria de ser, durante o Estado Novo, deputada na Assembleia Nacional).
As primeiras tomadas de posição, com pouca visibilidade popular, estão ligadas a organizações pacifistas, como a "Liga Portuguesa da Paz", de Alice Pestana, que veio a organizar, em 1906, uma "Secção Feminista" e foi responsável pela que se poderá considerar a primeira sessão pública de um grupo feminista, que Teófilo Braga, um declarado defensor da emancipação da Mulher, prestigiou com a sua presença.
As datas são de salientar, porquanto, pouco antes, no ano de 1902, uma das participantes activas nessas iniciativas, Carolina Michaelis de Vasconcelos, olhando, com a sua mentalidade germânica, e, naturalmente, com muita preocupação, o país do sul que escolhera para viver, escrevia o seguinte:
"O combate das massas feministas, em vista de melhores condições sociais, está inteiramente por organizar"[...] "O aparecimento de uma mulher na política seria considerado uma monstruosidade".
Ora apenas dois anos depois, em 1904, Adelaide Cabete, Maria Veleda e outras fazem-se ouvir no I Congresso do Livre Pensamento. Em 1906, a própria Carolina Michaelis está entre as impulsionadoras da "Liga Portuguesa da Paz", e de manifestações em que pacifismo e feminismo se interligam. A partir do ano seguinte, acentua-se a convergência entre feminismo e republicanismo e a entrada de muitas notáveis em lojas maçónicas.
É de ressaltar a assombrosa aceleração do processo de participação feminina, neste curto período, a revelar as contradições, os anacronismos e a inacreditável capacidade de os superar de que, de vez em quando, dá provas a sociedade portuguesa, com uma plasticidade, uma maleabilidade, que não se adivinha de fora e é preciso saber descobrir, de dentro. Ainda por cima, em geral, o inesperado protagonismo feminino, essa suposta "monstruosidade", despertava nas massas um enorme entusiasmo e aplauso, demonstrando que as afinidades ideológicas superavam facilmente os preconceitos misóginos. (1)
Por parte do povo, a reacção era, sem sombra de dúvida, espontânea. Por parte das lideranças, a utilização das mulheres consumava uma hábil estratégia política. Vejamos: em 1908, António José de Almeida, Bernardino Machado e Magalhães Lemos dirigiram a ilustres correlegionárias o convite para criarem "A “Liga Portuguesa da Mulher Republicana", que foi a maior das associações feministas - com cerca de um milhar de militantes - e deve a sua génese a esse convite, uma das excentricidades da história do nosso movimento de emancipação da mulher. No ano seguinte, a LPMR é formalmente integrada nas estruturas do Partido Republicano, tornando-se como que o equivalente aos departamentos femininos de muitos partidos actuais.
Ao período de grande unidade, que assinalou a última fase da monarquia e a da proclamação da República, seguir-se-á o das múltiplas cisões, fatalmente determinadas pelo incumprimento das promessas do novo regime, sobretudo no que respeita ao sufrágio.(2)
O pais fundadores da República, não se haviam limitado a chamar - como tantas vezes e em tantos países viria, posteriormente, a suceder - meras figuras decorativas, dispostas a fazer o jogo do partido e dos seus interesses, mas intervenientes de grande estatura moral e intelectual, escritoras, jornalistas, médicas, professoras, advogadas... Poucas foram as que toleraram a dolosa recusa do direito de voto nas sucessivas leis eleitorais da República. A maioria abandonou a "Liga", logo em 1911. Ficaram as que, como Maria Veleda, eram verdadeiramente mais "republicanas do que feministas", e colocavam, estrategicamente, o esforço de educação cívica das mulheres antes da concessão de direitos políticos. As sugragistas, sem nunca enjeitarem os seus ideais republicanos, multiplicaram associações independentes e ligadas a movimentos internacionais, como foi o caso da Associação de Propaganda Feminista de Ana de Castro Osório (1911) e do Conselho Nacional da Mulher Portuguesa, por muitos anos liderado por Adelaide Cabete, e que viria a ter, como última presidente, nos anos 40, Maria Lamas.
A prioridade do movimento sufragista está bem expressa no grito de revolta de Ana de Castro Osório: "Se uma República nos expulsa das suas leis cívicas, não podemos considerar nossa a Pátria onde não temos direitos, onde não temos voz para protestar".
Nos seus turbulentos 16 anos de vida, a República perdeu-se pela incapacidade de agregar crescentemente os portugueses, de responder aos anseios democráticos das mulheres e de largos sectores das populações, que foram marginalizados num universo eleitoral cada vez mais reduzido e inferior ao que existiu na última fase da monarquia. Por medo de um voto popular, que não soube atrair, a República incumpriu as promessas de sufrágio universal, e não se tendo enraizado suficientemente, não pode resistir ao golpe militar de 1926, a que se seguiria uma longa ditadura.
As republicanas alcançaram, todavia, vitórias em domínios que consideravam, justamente, do maior relevo, como as novas leis da família, a lei do divórcio, a extensão da rede de ensino, a co-educação, o acesso das mulheres à função pública, a carreiras profissionais - reformas que transformaram a sociedade portuguesa, e que, apesar de muitos retrocessos, de alguma forma, resistiram durante a ditadura e o Estado Novo, levando ao acesso, limitado embora, ao voto e à política, ao ensino, à participação no mundo do trabalho, da cultura.
As mulheres não esmoreceram, prosseguiram o seu infindável combate cívico. O I Congresso feminista acontece quase em fim de regime, em 1924. O II realiza-se em 1928, já em plena ditadura. Quase duas décadas depois, em 1947, um outro grande evento dá a conhecer as mulheres da cultura, no país e no mundo - uma audaciosa iniciativa do CNMP, presidido pela grande intelectual, jornalista e escritora Maria Lamas, que hoje justamente, evocamos neste Encontro. A visibilidade e o êxito do “feminino” no campo do pensamento, da escrita, da livre expressão, foram vistos como realidades verdadeiramente subversivas e, por isso, intoleráveis para o regime. O CNMP foi extinto e Maria Lamas perseguida.
Podemos assim dizer que um ciclo se fecha e uma época incomparável termina no rasto do sucesso de um último congresso...

II - CONGRESSISMO E POLÍTICAS DE GÉNERO PARA A EMIGRAÇÃO PORTUGUESA (em revisão)

Restaurada a democracia, é também no cenário do “congressismo” que, em 1985, as portuguesas da Diáspora se reúnem, pela primeira vez, com o propósito de criarem as condições para o exercício pleno da sua cidadania no interior das comunidades portuguesas. Não podemos, em rigor, dizer que a história se repetiu, mas o certo é que a organização do "1º Encontro Mundial de Mulheres no Associativismo e no Jornalismo” coube, também, aos políticos - não aos da oposição, mas aos do Governo - tendo, neste caso, a solicitação partido das próprias mulheres, através de uma recomendação do Conselho das Comunidades Portuguesas, na reunião Regional da América do Norte, na cidade de Danbury, em 1984.
Não havia conhecimento de organização semelhante em qualquer outro país de emigração, pelo que o governo português se converteu em pioneiro e viu a UNESCO patrocinar, oficialmente, essa sua primeira grande medida de uma política de género no domínio da Diáspora.
Podemos afirmá-lo, olhando as leis e as práticas do passado, porque, até 1974, as medidas especialmente destinadas às mulheres foram sempre, discriminatórias, procurando restringir o seu direito de emigrar, e até de acompanhar os maridos, evitando a saída de famílias inteiras ou a sua reunificação no estrangeiro (por se temer que facilitasse a integração nas terras de acolhimento). Traduzindo o sentir comum dos políticos do seu tempo, Afonso Costa considera o exôdo das mulheres "uma degenerescência do fenómeno migratório". Ou seja, considerava que a emigração era, ou devia ser, “só para homens”! Não que estes não vissem, também, em determinadas épocas ou circunstâncias, cerceado o direito à livre circulação. A liberdade de emigrar é uma das liberdades que floresceu com a revolução de 1974, e que veio a ser expressamente consagrada na Constituição de 1976, assim como a plena igualdade entre os sexos. Todavia, a consagração da igualdade formal entre mulheres e homens, converteu-se, no espaço universal da Diáspora, em pretexto para ignorar as especificidades da situação das mulheres, continuando a emigração portuguesa a ser padronizada no masculino. Enquanto dentro do País foram criados programas de combate às discriminações que, de facto, resistiam à proclamação formal do princípio da igualdade, nada de semelhante aconteceu fora das fronteiras geográficas. As mulheres residentes no estrangeiro não estavam no centro das preocupações de iniciativas e de planos traçados por sucessivos governos e executados por vários departamentos e, em especial, pelas comissões para a igualdade - cuja designação foi variando ao longo dos anos ou não o estavam, pelo menos, de uma forma continuada e sistemática.
Ora, como é, nos nossos dias, amplamente reconhecido (e começou a sê-lo desde a abordagem do tema no Encontro Mundial de 1985) tornou-se, em regra, mais fácil às emigrantes afirmarem o seu estatuto de igualdade nas sociedades de acolhimento do que no âmbito das comunidades portuguesas. No movimento associativo das comunidades o seu papel, muito importante embora, reconduzia -se - e ainda, frequentemente, se reconduz - aos estereótipos tradicionais de divisão de trabalho, em função do sexo. Um trabalho invisível, de bastidores, de preparação dos eventos, dos programas culturais, da decoração e arranjo das salas, na cozinha, na retaguarda actuante... Completamente arredadas do acesso a cargos directivos excepto, evidentemente, no associativismo feminino – uma raridade, salvo na Califórnia, como vimos.
Em consequência disso, ficaram também de fora do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), quando ele foi criado, como órgão consultivo do Governo, em 1980 - justamente porque era composto por dirigentes associativos e por jornalistas (3). A ausência feminina decorria da sua marginalização no movimento associativo, espelhava, fielmente, uma realidade. Aliás, foi, inicialmente, na "quota" dos jornalistas que surgiram as primeiras mulheres - caso de Custódia Domingues, de França, que era o único nome feminino na primeira reunião do CCP em 1981. E foi, precisamente, uma outra jornalista, a Conselheira das Comunidades Maria Alice Ribeiro (directora de um grande semanário de Toronto), que apresentou, em Danbury, a recomendação para a realização de um congresso mundial de mulheres da Diáspora, logo ali aprovada consensualmente. (4)
A Secretária de Estado da Emigração, que era eu mesma, limitou-se a dar rápido cumprimento a essa recomendação. As mulheres fizeram o resto… (5) Foi, por todas as razões, um Encontro memorável – antes de mais, pela qualidade dos debates, das contribuições. As participantes não falaram, apenas dos seus próprios problemas. Na escolha e tartamento de temas, no modo de historiar o passado e olhar o presente, nas recomendações para a mudança de um "estado de coisas", colocaram a tónica em dois grandes objectivos indissociáveis: o de serem consultadas sobre a realidade global das comunidades e o seu futuro, tal como o viam e queriam legitimamente influenciar; o de repensarem o seu próprio papel na família, na vida colectiva, no trabalho profissional e no associativismo, a fim de passarem à execução de projectos de mudança.
Tal como as feminista, um século antes, punham o acento na ideia de cidadania, de serviço cívico, privilegiavam o companheirismo com os homens, seus aliados. E mostravam, também, um elevado nível intelectual, eram jornalistas, escritoras, profissionais de prestígio, líderes de associações.
A chamada ao0 Encontro de mulheres do mundo associativo e dos media, tal como acontecia no CCP, é mais um indício de que este órgão consultivo foi o paradigma para a audição das mulheres. Contaram, aliás, com os mesmos interlocutores, membros do governo da República e dos governos regionais dos Açores e da Madeira. E, ainda, com personalidades da vida política e cultural do País, num acontecimento que deixou marcas e influenciou o futuro. Porém, nos anos que se seguiram, a estrutura internacional autónoma para que apontavam, não viria a formar-se – por falta da liderança, devida, certamente, à dispersão, à distância, às dificuldades de contacto entre todas… (6). Só em 1994, algumas das participantes do Encontro retomariam esse projecto, com a criação, em Lisboa, da “Mulher Migrante – Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade”, aberta a membros de ambos os sexos, e reclamariam a herança, para a continuar, com a intenção de associar a "sociedade civil" e o Estado na prossecução das tarefas de promover a participação cidadã das mulheres no contexto da expatriação. Só assim se explica que uma pequena associação se tenha convertido desde então, e até hoje, em parceiro privilegiado para o desenvolvimento de políticas de género neste domínio, nomeadamente das que passam pelo “congressismo”. A Associação tem colaborado, em especial, com os departamentos responsáveis pelas políticas da igualdade e com a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, em sucessivos governos.(7) Uma prova de que, neste campo, a convergência e a sequência de políticas tem sido alcançada - asserção que não poderá generalizar-se, evidentemente, ao conjunto das políticas para a emigração.
De algum modo, ainda que sem uma base institucional, o modo de colaboração entre a “Mulher Migrante” - agregando associações locais que têm co- participado no “congressismo para a igualdade de género” na Diáspora - e o Estado, continua a inspirar-se, a meu ver, no modelo do CCP originário (não o actual, mas o que tinha raízes associativas e pretendia ser uma "plataforma de diálogo" entre o governo e instituições ou personalidades das comunidades do estrangeiro - no nosso caso, uma instância e uma ocasião de ouvir a voz das mulheres.
Assim foi no Encontro Mundial de Espinho, em 1995 (que reuniu mais de 300 participantes dos cinco continentes). Assim foi em inúmeros seminários e colóquios realizados no País. Assim foi, muito em especial, nos "Encontros Para a Cidadania - a Igualdade entre Mulheres e Homens", entre 2005 e 2009. (8)
Por altura do 20º aniversário do "Encontro" de Viana, a "Mulher Migrante" apresentou ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas António Braga uma proposta de comemoração dessa efeméride, através da retoma de audições sistemáticas das emigrantes, inseridas numa estratégia de mobilização para a intervenção cívica. Proposta que ele aceitou, patrocinando, de uma forma sistemática, campanhas, com esse objectivo, desenvolvidas nas maiores comunidades da Diáspora - por ONG´s de Portugal e das comunidades locais - na América do Sul, em Buenos Aires (2005), na Europa, em Estocolmo (2006), no Canadá, em Toronto (2007), na África do Sul, em Joanesburgo (2008) e nos EUA, Berkeley (2008).
Mais uma vez podemos falar de um caminho próprio, pois não conhecemos precedente em qualquer outro país (ainda que haja certamente muito em comum, no que respeita às situações de facto, às aspirações de mudança, às metas e metodologias para as atingir).
De relevar, como uma primeira medida jurídica de promoção da igualdade de género na emigração, a aplicação do princípio da paridade na eleição para o CCP, e, também, o facto de ter sido anunciada pelo Secretário de Estado Jorge Lacão na Conferência para a Igualdade, co-organizada pela "Mulher Migrante" em Toronto. (9)
As listas para o CCP viriam, de facto, no ano de 2008, a assegurar, em observância da lei, a inclusão de um terço de mulheres. E como os actos eleitorais para a Assembleia da República e para as autarquias ocorreram no ano seguinte, acabou por constituir como que um "ensaio geral" do sistema de quotas - bem sucedido, pois redundou no aumento, que era previsível, do número e percentagem de conselheiras e, também, na sua ascensão (minimalista ainda) ao Conselho Permanente - Teresa Heimans, participante neste Encontro é a primeira a integrar essa cúpula directiva.
A presença feminina, globalmente, no CCP, nas diversas Comissões e na instância de coordenação, é quantificável, com todo o rigor (sabendo-se que está ainda longe de uma verdadeira igualdade), mas a importância real que terá no maior equilíbrio de participação de ambos os sexos na vida das comunidades do estrangeiro vai depender, directamente, do uso que as eleitas farão da sua capacidade de influenciar os processos de funcionamento e de decisão do "Conselho", e, indirectamente, do papel que venha a ser o desta instituição - que tem tido, como afirmei, um percurso acidentado e irregular, enquanto forum de consulta do Governo e de representação dos emigrantes.)
Com a tomada de posse de um novo Governo, em Junho de 2011, tendo como SECP José Cesário, a Associação “Mulher Migrante dirigiu-lhe uma nova proposta, imediatamente aceite, para dar continuidade ao esforço de promoção da intervenção cívica das Portuguesas da Diáspora, na perspectiva da paridade.
José Cesário, enquanto deputado eleito pela emigração, apresentara na Assembleia da República, em 2010, uma iniciativa inédita sobre a problemática da mulher emigrante, que se converteria na Resolução nº 32/2010, de 19 de Março.
A “Resolução privilegia em larga medida, o "congressismo" como instrumento de mobilização das mulheres para a intervenção cívica, apontando para a efectivação de "seminários, campanhas de sensibilização, acções formativas e informativas junto das comunidades, incentivos a estudos e investigações, com o objectivo de "[…]definir um conjunto de medidas destinadas ao desenvolvimento da cidadania das mulheres portuguesas do estrangeiro".
O programa, nos seus traços gerais, corresponde às principais recomendações que foram avançadas pelas próprias mulheres nos Encontros para a Cidadania”, em sintonia com a sua visão e o seu sentir. O mérito desta iniciativa reúne, assim, a um enorme simbolismo (foi a primeira vez que a questão de género na emigração tem uma tal focagem na Assembleia da República, fora de um processo de revisão constitucional – a primeira vez que os Deputados chamam a atenção para os deveres do Estado na consecução da igualdade de mulheres e homens, para além das fronteiras territoriais, como manda o art. 109º da Constituição), uma orientação realista e pragmática. E, pelo visto, neste Encontro de 2011 e nos que em 2012 se projectam, a Resolução é para ser vivida no concreto e para se tornar o instrumento da efectivação de políticas de emigração, com a componente de género.

Notas

(1) São múltiplas as referências à participação de jovens mulheres, que saíam do mais completo anonimato, para serem aclamadas nas tribunas dos comícios, não só na capital, mas em muitas terras de província, feitas na mais recente publicação de Fina d'Armada "Republicanas quase Desconhecidas", que colige dados referentes a 33 concelhos. Interessante a informação sobre os nomes dessas mulheres, que bem merecem ser lembradas, e, também, sobre o seu parentesco com activistas republicanos - a revelar que existiam, as mais das vezes, laços de família entre elas e eles. Família de sangue e família ideológica.
(2) João Esteves dá-nos a cronologia dessas iniciativas in "Mulheres e Republicanismo, 1908-1928", uma publicação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género
(3) O CCP foi instituído pelo Decreto-Lei nº 373/80 de 12 de Setembro, como uma plataforma de diálogo ente o governo e as organizações do movimento associativo, assumindo no programa do VI Governo Constitucional, no discurso político, e, a meu ver, também de facto, um lugar de grande relevo, como porta voz das comunidades e co-participante nas políticas de emigração, o que tornava especialmente grave e lamentável a exclusão da voz das mulheres.
(4) A proposta formalizada por Maria Alice Ribeiro começou a ser equacionada nos convívios informais da reunião do Conselho Regional, onde estava a mulher de um dos conselheiros, Natália Dutra, ela própria, dirigente de uma Irmandade da Califórnia. A ambas, Natália a Maria Alice, se pode atribuir a autoria da ideia.
(5) Foram 36 as representantes das suas comunidades no "Encontro de Viana":
Alice Vieira (Venezuela); Angela Giglitto (EUA -Califórnia); Aurora Vackier (França); Barbara Angeja (EUA-Califórnia);Benvinda Maria (Brasil); Berta Madeira (EUA-Califórnia); Claudia Rios (EUA-Leste); Custódia Domingues (França); Debora Morais (Canadá); Dolores Nunes-Lowry (EUA-Califórnia);Fernanda Claudio (Canadá); Helena Guerreiro-Klinowsky (Canadá); Helena Amaral (EUA-Leste); Heroína de Pina (Luxemburgo); Julieta Maia (Canadá); Laura Bulger (Canadá); Manuela da Luz Chaplin (EUA-Leste); Manuela Faria (Austrália); Maria Adelaide Vaz (Canadá); Amélia Afonso (Argentina); Mary Giglitto (EUA-Califórnia); Maria Antónia Anjos (Argentina); Maria do Céu Cunha (França); Eulália salgado (RAS); Maria Emília Pedreira (Brasil); Fernanda Gabriel (França); Maria da Graça dos Santos (França); Isabel Vieira (França); Maria José Brântuas (EUA-Califórnia); Juliana Resende (Venezuela): Leonor Xavier (Brasil); Lourdes Lara (Canadá); Edith Phillips (Inglaterra); Manuela Cavaleiro Miranda (França); Natália Dutra (EUA-Califórnia); Rosa Silveira (EUA-Califórnia).
Daquelas que indicam a naturalidade 5 são madeirenses, 8 açorianas e 15 continentais.
(6) Nas Conclusões Gerais do "Encontro", diz-se no Ponto 8: "Foi decidido formar uma associação entre as participantes do encontro, aberta, no entanto, a outras mulheres portuguesas ou de origem portuguesa residentes no estrangeiro e às que em Portugal se interessam pela matéria". in "1º Encontro Portuguesas Migrantes no Associativismo e no Jornalismo", Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Centro de Estudos, Porto, 1986, pag 138
(7) vd Rita Gomes in "Mulher Migrante em Congresso" coord Maria Manuela Aguiar e Maria Teresa Aguiar, edição Associação Mulher Migrante, VN Gaia, 2009, pag.
(8) Sobre esse Encontro Mundial há duas publicações editadas pela Associação Mulher Migrante, tal como sobre o Encontro de 2009. Todas constam sintética bibliografia indicada desta comunicação.
(9) O mesmo princípio da paridade adoptado na formação de listas para as eleições legislativas e autárquicas é imposto no nº 4 do artº11º e na alínea a) do nº1 do art. 37º da Lei nº 66-A/2007.

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