quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Tânia Reis

PORTO – SÃO PAULO – UMA DECISÃO DE VIDA

Quando o convite me foi formalizado pela Doutora Maria Manuela Aguiar, confesso que fiquei surpresa e um pouco inquieta.
Embora para mim este convite seja uma honra, deparei-me com o facto de que, tendo já participado de vários encontros e congressos, sempre estive do lado de quem faz, de quem produz, de quem idealiza. Então, ter que escrever uma comunicação fez-me estremecer, pois estarreci com a ideia de não saber muito bem aquilo que deveria partilhar e o que vos interessaria saber, ouvir.
E, depois: que desejo eu passar, aos que neste momento me estão a ouvir?! Que mensagem devo passar, para aqueles que pretendem um dia, sair de Portugal e tentar a vida noutro País?
Depois de muito pensar, acredito que contar a minha experiência pessoal, seja o mais rico que tenho em contar.
Vivo no Brasil, nomeadamente em São Paulo, desde Agosto de 2008, e olhando para trás, vejo que tomei uma decisão, que na época não me pareceu tão aventureira, como agora.
Mas antes de vos avançar a vivência de agora preciso voltar ao contexto e ao ano 2007, quando fui pela primeira vez ao Brasil como actriz. Recebi o convite para fazer uma peça de teatro infantil, no sertão de pernambuco, “Cor da Pele, Um rosto diferente”. Naquela época, eu trabalhava como produtora cultural - uma área pela qual sempre me interessei bastante.
Expectante pelo convite, e pelo o que isso iria resultar em consequências directas no meu dia a dia, acabei por aceitar, e iniciei a jornada que ainda hoje estou vivenciando, com muita luta (mas o que não nos desafia não nos dá tanta fibra e faz crescer, sobretudo no crescimento pessoal), mas ciente de que é aquilo que me deixa mais realizada e leve, porque amo a minha profissão: e quando fazemos aquilo que mais gostamos, por mais que isso nos custe, acredito, deixa-nos um pouco melhor com a vida, com os outros porque estamos a ser honestos com a nossa natureza.
Fui, e passei lá 3 meses nesse inóspito e quente sertão pernambucano. Longos. Rápidos. Sofridos. Intensos. O sertão de Pernambuco, ou qualquer outro sertão brasileiro, em nada se assemelha ao que qualquer novela, ou folhetim da televisão, que nos acostumamos a ver ao longo dos anos, nos mostra.
O sertão é rude, é duro, é poético, é arrebatador e assustador. Nos 3 meses que lá vivi, tive vários choques culturais, conheci pessoas cujos olhos brilham, só porque têm o chão para cultivar, o sol para aquecê-los. E convivi com crianças cuja fome cultural é incompreendida e desconhecida de nós, que estamos habituados à urbanidade e nem nos apercebemos como ela nos contagia em vários sentidos.
O olhar de uma criança, vendo a peça, no banco da praça municipal, me fez chorar várias vezes. E não quero aqui ser piegas, mas de facto, aquelas pessoas, aquelas crianças, nunca tiveram na vida oportunidade para ir no cinema, ao teatro, a um show musical. Essa realidade para elas é tão distante, que qualquer manifestação cultural, para eles, é um acontecimento digno de feriado. Há essa espontaneidade.
Após esta experiência, voltei para Portugal, para o Porto, onde durante 5 meses, continuei o meu trabalho nesta peça, mas agora, com as crianças de Valongo, onde a realidade é outra. A fome cultural, é outra.
Já tendo visitado o Brasil, por diversas vezes, e quase sempre em trabalho, a ideia de me mudar, e conquistar outras frentes, não me saía da cabeça.
Após muito pensar, aconselhar-me com amigos e família, nos 5 meses que estive em Portugal, tratei de tudo o que era necessário, fiz as malas, e mudei-me com a cara e a coragem para São Paulo.
Longe de imaginar, a dura realidade de uma cidade tão cosmopolita, enorme e voraz como a nossa Sampa, como é carinhosamente apelidada.
Lembro-me até hoje com os mínimos detalhes da saga da viagem. Começou em Lisboa, com excesso de peso, na mala (pudera...) e com a dificuldade em comprar outra mala, para dividir bagagem, no aeroporto de Lisboa, lotado de turistas, que iam para o Brasil, de férias. Depois de quase perder o voo, lá embarquei, e tinha 12 horas até ao meu destino.
Ocorre-me que durante a viagem, pensava se tinha certeza do que estava a fazer. Do que tinha deixado para trás. Se aqueles que não tinham entendido a minha decisão, não estariam certos no que me diziam....mas depois, também me ocorria esse ADN do Fado que nos é tão peculiar, e que nos impede, muitas vezes, nós portugueses, de dar passos, pelo medo, de pura e simplesmente falhar.
Entre pensamentos, dormitar, eis que já estava sobrevoando São Paulo. Era noite, e quando olhei pela janela, fiquei assustada com o trânsito, com as luzes, com a confusão, que do ar já era possível ver. E me questionei: Onde te vieste meter, Tania Reis!!!! Sim, era claro que estava assustada. Afinal, eu estava prestes a chegar a uma cidade em que o estado tem 3 vezes mais que a população portuguesa.
Cheguei e quando pousei, pensei que a saga teria terminado, mas não. As minhas malas tinham ficado em Belo Horizonte, e durante 4 dias, não tinha mais do que a roupa que tinha no corpo. Além do facto de que por erro de comunicação, também não tinha onde dormir, e tive que ir para um hotel, durante 3 dias, no centro da cidade.
Tudo era diferente, e eu estava por minha conta.
Até hoje, nem sei como tive tanta coragem, como consegui não ter medo. Mas aos poucos, as coisas foram indo para o lugar, e volto nesse momento, e o que me lembro é do cheiro da cidade, do meu olhar de “turista”, a tentar entender como funcionava a cidade, quais os hábitos dela, como ela pulsava...como ela pulsa.
Demorei uns 3 meses a adaptar-me, e senti-me muito sozinha nesse tempo, até conseguir decidir o que fazer, como começar, por onde começar.
Quando decidi vir para o Brasil viver, decidi frequentar um curso de teatro, onde seria a forma mais célere de integrar-me na cidade, no País, na sua cultura, no seu quotidiano, e ao mesmo tempo, aprender e analisar o modus operandi dos brasileiros, nomeadamente no Teatro.
Acredito até hoje que tomei a melhor decisão.
No curso conheci pessoas, que ajudaram a ajustar-me e a conhecer esta Sampa tão rude, e ao mesmo tempo tão encantadora.
Comecei a ir ao teatro, a conhecer pessoas do meio, a ver como a cultura pulsava. Para terem uma ideia, São Paulo tem 200 peças em cartaz por mês, bem longe da nossa realidade, em que se tivermos na cidade do Porto, por exemplo, duas peças em cartaz, já é uma sorte. Além de exposições, filmes, mostras de cinema europeu, latino, japonês, etc, e galerias de arte, shows musicais, diversos restaurantes, manifestações na Avenida Paulista, lançamentos de livros, e por ai adiante.
Aproveitei o curso para entender-me, para entender como acontecia este país, e esta cidade, capital económica do Brasil.
Estudei como funcionam as leis, como as companhias de teatro conseguem fazer as suas montagens, onde conseguem o dinheiro, como sobrevivem os artistas.
E claro, fiz o que se espera de quem vive no Brasil, e tem esta profissão, contactei as televisões, dei-me a conhecer e fiz o meu cadastro, para quiçá, precisem de uma portuguesa, mais jovem, saibam que existe.
Deparei-me com algumas curiosidades. Aqui não existe o conceito de companhia de teatro. Existem poucas. Existem projectos, hoje eu estou a trabalhar com fulano, e amanhã com cicrano. Os atores, pela concorrência, inventam projectos, para conseguirem trabalhar, e enquanto isso, vão tentando sobreviver, indo a testes de publicidade, pois o mercado é imenso, na expectativa de agarrarem um comercial – que é um anúncio publictário-, e ganhar duma vez só, uns 10 mil reais. Enquanto isso não acontece, ganham 30 reais, como caché-teste. Conheci atores e atrizes que vão a 3 e 4 testes por dia, e assim, conseguem ir pagando as suas contas.
É... viver em São Paulo é muito caro, muito mais caro que Portugal. Ir jantar fora, é um luxo para poucos, pois pode sair uns 100 reais por pessoa, o que estamos a falar de mais ou menos 50 euros.
Após 3 meses, e quase sem dinheiro, comecei a procurar alguma coisa, que me desse o sustento. E eis que, virei empregada de mesa, lá chamada de “garçonete”. E durante um ano, servia às mesas num bistrô em Pinheiros, durante o dia, estudava à noite, e tentava entender cada vez mais como pulsava este lugar.
Foi uma experiência engraçada. As pessoas achavam chique ter uma portuguesa lhes servindo. O brasileiro, embora um povo alegre, simpático e acolhedor, ainda tem muito o preconceito de colonizado e, às vezes, se acha inferior ao que vem de fora. Coisa que só vivendo para entender, donde vem este sentimento, tão fora da realidade. Eles, brasileiros, são um povo rico, capaz, imaginativo, e muito empreendedor.
Com as dificuldades financeiras, e numa cidade tão cara, e sendo estrangeira, eu tinha que me virar, como eles dizem.
Hoje, passados três anos, olho para trás, e surpreendo-me com tudo o que já passei, com esta decisão, que na época me pareceu tão singela.
Passei muitas dificuldades, já andei quilometros a pé, por não ter dinheiro para apanhar uma autocarro, já chorei, já sorri, já conquistei, já derrubei barreiras que julgava intransponíveis.
Acredito que a que mais pesou, foi a de sentir-me estrangeira num País, que sinto, como meu. Escolhi o Brasil para viver, e muitas vezes irrito-me com a falta de consciência cívica dos governantes, da falta de educação dos Patricinhos, os chamados betinhos, ou meninos com posses, onde o dinheiro paga e compra tudo, mas emociono-me com o sorriso daqueles que conseguem as suas conquistas diárias, da boa disposição, mesmo nas adversidades.
Os 3 anos foram duros, mas valeram e continuam a valer a pena. Conquistei muita coisa, encontrei muitos amigos.
E por falar em amigos, não posso deixar de falar nesta nova leva portuguesa no Brasil. Tem sido inacreditável a quantidade de portugueses, que conheço, que chegaram ou acabaram de chegar para trabalhar no Brasil.
Uns com o visto resolvido, outros não. É, para quem não sabe, já lá vai o tempo, em que o português, não precisava de visto para viver no brasil. E esta também, foi uma grande luta minha, a conquista de um visto. Já lá vamos!
O brasil hoje, está na mira mundial, e é ele quem dita as regras.
È dificil conseguir-se um visto, nomeadamente de trabalho, e demora tempo, e é caro, além das imensas filas, e burocracias que temos que passar. O que leva, que muitos deles, deixem-se ficar ilegais, e tentando encontrar uma solução, que um dia virá, e enquanto não vem, passam pela dura realidade de não poder visitar a terrinha.
Antes de viver no Brasil, a questão do visto, para mim era uma epopeia dos anos 50, com a emigração dos nossos bisavós, e que afinal se tornou presente e vivenciado.
Embora a emigração seja outra, a de mão de obra especializada, as dificuldades e os encantamentos são os mesmos.
Quando alguém do meu círculo de amigos do Porto, me escreve ou liga, e diz,: “Tu é que tens sorte. Estás no Brasil, vais para a praia, tens sol e samba...”, eu penso, como estão enganados....O país é lindo de facto, mas é dificil viver por aqui. É preciso muita persistência, muita força de vontade, de acreditar muito que somos capazes e vamos conseguir...E também tem as saudades!!!
Ai, claro, acabamos por nos encontrar todos, para de alguma forma colmatar este sentimento que herdamos do fado, no boteco mais conhecido, dito “Ministrão”, do Sr. Fernando, português do centro de portugal, que com 13 anos veio para o Brasil de barco, sozinho, e que passou fome, frio e encontrou muitas vezes a solidão nas calçadas paulistanas. Raro o português que não se emociona com a história que ele nos conta. E também muito recorrente, estas histórias dos que vieram para o Brasil no passado.
E tudo ao sabor de uma Original, ou uma Bohemia de 600 ml, vamos contando as nossas experiências, vamos rindo, vamos fazendo palhaçadas, pedindo ajuda, nos apoiando e também nos apaixonando.
E esta nova leva, vai-se encontrando em botecos e provas de vinho. E ai perguntam, mas não existem organismos em São Paulo, portugueses, onde este novo emigrante se dirija. Existem sim, mas não são próximas.
Esta é uma questão, que pessoalmente me inquieta.
Temos a Casa de Portugal e o Clube Português em São Paulo. Distintos no público que atingem, mas com a mesma filosofia – Rancho Folclórico e aluguer do espaço das suas sedes, para festas de 15 anos, casamentos...
Já fui por diversas vezes almoçar à Casa de Portugal, ao famoso “almoço das quintas”. Inclusive foi lá que conheci a Drªa Maria Manuela Aguiar, e que nos tornamos amigas, pela empatia imediata.
Mas sou, provavelmente, a única pessoa da minha geração que lá vai, por amigos que tenho. E por que isso acontece? Porque, por muito valor que as pessoas que fundaram e estão na Casa tenham tido e continuem a ter, elas estão apegadas, à filosofia de um Portugal dos anos 50, porque essa é a realidade que viveram. E compete à nova geração mostrar e partilhar o país de hoje.
Este não é o Portugal que a minha geração viveu. Não existem nas comunidades portuguesas, os nossos “Xutos e Pontapés”, os “Ornatos Violeta”, “Cristina Branco” e “Bernardo Sassetti”, “António Lobo Antunes2 e “Saramago”, “José Luís Peixoto”, “Graça Morais”, “Noiserv”, “João Canijo”...para enumerar apenas alguns nomes do nosso cenário contemporâneo artístico.
Não me entendam mal, não estou a fazer uma crítica. Apenas a dizer que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, mas mais do que isso, reinventa-se a fibra cultural de um país que mudou, que muito deve à sua herança e legado, mas precisa de se mostrar como é moderno, empreendedor... E sinto, no grupo de amigos que tenho, que em nada se identificam com a Casa de Portugal, e por isso não a frequentam. Então pergunto-me: A Casa vai morrer com a geração que a criou? Espero que não, e tenho tido algumas tentativas até ao momento, falhadas, de organizar eventos, palestras e outras coisas que aproximem esta nova leva de emigrantes no Brasil, no qual me incluo. Por isso estou ciente que a responsabilidade de pôr mãos à obra também é minha.
Porque não deixar aqui o desafio, formalmente?
Sinto que temos que mudar a ideia que tem do português, por este mundo a fora. Temos um exemplo, que são os personagens portugueses nas novelas, nomeadamente na TV Globo. Todos, eles e elas, tem bigode, dizem “oh pá” e “ora pois, pois”, e ainda fazem contas de lápis na cabeça.
Se calhar por isso, que ainda hoje, as piadas preferidas dos brasileiros, sejam exactamente as dos portugueses.
Mas tem um lado muito bom. O português é visto, pelos brasileiros, como o irmão, o que fala a mesma língua, o povo que é trabalhador e honesto. E isto sim, para mim, é uma das melhores qualidades que os nossos antepassados nos deixaram de herança. Sem falar, claro, no nosso incrivel Fernando Pessoa, tão apreciado por terras de tupi guarani.
Devo dizer, que esta tem sido a melhor experiência da minha vida. Onde cresci, onde me tornei uma pessoa melhor, onde hoje a Tânia Reis que saiu de Portugal, em Agosto de 2008, já não existe. Hoje sou um ser humano melhor, mais consciente, mais predisposto a ter cada vez mais uma papel mais activo na sociedade, tanto portuguesa, como brasileira.
Com o tempo, e aos trancos e barrancos, fui encontrando o meu lugar.
Hoje, já tenho no CV 4 peças que fiz neste período, participação num filme, atriz num video-clip de uma Banda Rock que foi para o “Rock in Rio”, e acabei de ajudar a produzir a “Balada Literária”, que foi o sexto ano, idealizada por Marcelino Ferire.
E estou com um grupo de pessoas, formando uma empresa de Produção e Criação Cultural, onde temos projectos desde peças infantis, encontros literários, peças adultas, e aulas para crianças e adultos.
Para finalizar, e por acreditar que faz todo o sentido, termino com um poemo do nosso querido Fernando Pessoa, que gosto muito:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas...
Que já tem a forma do nosso corpo...
E esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares.

È o tempo de travessia...
E, se não ousarmos fazê-la...
Teremos ficado...para sempre...
Á margem de nós mesmos.”

Muito obrigada.

Tânia Reis/Atriz

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