segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Berta Guedes Santana


Expressões Femininas de Cidadania: As Portuguesas no Recife

Gabinete Português de Leitura em Recife, 18/11/13

“Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa (SAMWL): Um exemplo de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência”, Berta Fernanda de Souza Guedes Santana, psicóloga, vice-presidente da ‘Folia das Deusas”, organizadora do evento.

 

Boa noite a todos!

Cumprimento o nosso anfitrião, o Dr. Celso Stamford Gaspar, Presidente em exercício do Gabinete Português de Leitura, a quem agradeço a cessão do espaço e todo o apoio da sua equipe.

Cumprimento as Presidentes da Direção e da Assembléia Geral, Dra. Rita Gomes e Dra. Manuela Aguiar, da Associação de Estudos, Cooperação e Solidariedade Mulher Migrante, a quem agradeço por nos confiarem a organização deste evento, o que muito nos honrou.

Cumprimento o Vice-Cônsul de Portugal no Brasil, Dr. Adriano Moutinho, a quem agradeço todo o apoio e incentivo que nos deu.

Cumprimento todas as palestrantes e o palestrante, agradecida por aceitarem o convite para falar neste encontro.

Senhoras e Senhores!

Sou portuguesa nascida em Lisboa, cidade que adoro, de alma lusa e nordestina de coração. Filha de português, do Porto, da Foz do Douro, e de brasileira, de Recife (sou, portanto, resultado do encontro de 3 rios – Tejo, Douro e Capibaribe – todos deságuam no oceano Atlântico, oceano que aqui me trouxe, fazendo-me lembrar Fernando Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Meus avós maternos, que alguns aqui neste salão com certeza conheceram, eram de Trás-os- Montes: Berta e João de Souza, um dos sócios fundadores do Clube Português, sócio benfeitor do Real Hospital Português, reconhecidos anfitriões, sempre prontos a acolher os seus conterrâneos, como tantos outros de seu tempo. Vim para Recife às vésperas de completar 12 anos e aqui estudei, formei-me e comecei minha vida profissional, sem maiores dificuldades por ser esta a terra natal da minha mãe, cidade onde passei muitas férias e que tão bem me acolheu.

Como fonoaudióloga e psicóloga, trilhei caminhos ou naveguei por águas que sempre me levaram para as minorias ou os menos favorecidos: desde os beneficiários do INSS[i], deficientes físicos e mentais na APAE[ii], usuários de álcool e outras drogas quando estive na coordenação clínica do CAPSad[iii] Professor Luiz Cerqueira e, atualmente, trabalhando, como psicóloga, com acolhimento, apoio e acompanhamento a mulheres vítimas de violência no Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa[iv], e é desta experiência que falarei.

Violência contra as mulheres, alguns podem estar se perguntando porquê o tema num encontro como este?

Além da relevância do assunto, estamos antecipando em uma semana o dia internacional para a eliminação da violência contra a mulher, que é o dia 25/11, e que no ano passado recebeu a seguinte mensagem do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon:

“Milhões de mulheres e meninas em todo o mundo são agredidas, espancadas, estupradas, mutiladas ou até mesmo assassinadas, atos que constituem violações atrozes dos direitos humanos. Do campo de batalha para a casa, nas ruas, na escola, no local de trabalho ou na sua comunidade, cerca de 70% das mulheres sofrem de violência física ou sexual em algum momento de sua vida. Um quarto de todas as mulheres grávidas é afetado.”[v]

Portanto, infelizmente, violência contra a mulher é um flagelo mundial, uma prática que atravessa os anos e com características muito semelhantes em países cultural e geograficamente distintos, mais e menos desenvolvidos, de tal ordem, que a ONU criou em 2010 uma entidade – a ONU Mulheres - para promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres em todo o mundo.

Em 2003, a Organização Mundial da Saúde considerou que a violência doméstica “é um grave problema de saúde pública e que as conseqüências que lhe estão associadas são devastadoras para a saúde e para o bem–estar de quem a sofre, comprometendo o desenvolvimento da criança, da família, da comunidade e da sociedade em geral”[vi], representando enormes gastos para os cofres públicos.

Segundo o Conselho da Europa, a violência contra as mulheres no espaço doméstico é a maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos, ultrapassando o câncer, acidentes de viação e até a guerra.[vii] Estes dados internacionais cruzados com outros disponíveis em Portugal sugerem que, semanalmente, morrem mais de cinco mulheres por razões direta e indiretamente relacionadas aos atos de violência doméstica.

Estudos de 2002 e 2003 indicam que, em Portugal, cerca de 1/3 das mulheres com 18 anos ou mais são vítimas de violência e que o custo médio com a saúde por mulher vítima de violência doméstica é de cerca de 140€ por ano, sendo que desse valor 127€ /ano são suportados pelo Serviço Nacional de Saúde, o equivalente a 91% dos custos.[viii]

Comparando com os dados internacionais, verificamos que, com uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, o Brasil ocupa a 7ª posição e Portugal a 72ª, no contexto dos 84 países, estados-membros da ONU, com dados atualizados na OMS entre 2006 e 2010.[ix]

No Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)[x], ocorrem, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, o que corresponde a 15,52 mortes por dia, ou seja, um óbito a cada hora e meia.

O Mapa da Violência contra a mulher de 2012, baseado em dados do SINAM[xi] (Sistema de Informação de Notificação de Agravos à Saúde da Mulher) sinaliza que uma mulher é agredida a cada 5 minutos no Brasil, que a região Nordeste (entre 2009 e 2011) lidera o ranking com a maior taxa de feminicídios do País: 6,9 mortes violentas por cada 100 mil mulheres. Esse mesmo mapa indica que Pernambuco ocupa a 10ª posição entre os estados da federação e que Recife é a 6ª capital do país em número de mulheres mortas em conseqüência de violência.

Tanto Portugal quanto o Brasil tem vindo a desenvolver políticas continuadas e serviços que visam dirimir ou amenizar as conseqüências que a violência provoca na vida das mulheres bem como promovendo ações preventivas.

No Brasil muito vem sendo feito neste sentido e, atualmente, com uma mulher na presidência, mas também desde a criação, ainda no governo Lula, da Secretaria de Políticas para a Mulher, com status de Ministério, esperamos que as políticas nesta área sigam avançando. A nossa realidade estadual e municipal acompanha esse quadro nacional, com inúmeras iniciativas, que perpassam várias secretarias, em ações inter-setoriais, como muito bem já falaram a Secretária estadual, Dra. Cristina Buarque[xii] e a Secretária Municipal, Dra. Sílvia Cordeiro[xiii].

Todos nós, de uma forma ou de outra, já nos deparamos com alguma situação desta natureza e é nosso dever, enquanto cidadãs e cidadãos (pois falo também para os homens) contribuir para transformar esta realidade tão sofrida.

Trago o exemplo de uma iniciativa pioneira implantada no Hospital Agamenon Magalhães[xiv], que é um equipamento público, estadual onde existe uma ilha de excelência no atendimento às mulheres vítimas de violência. Este serviço chamado Serviço de Apoio à Mulher Jornalista Wilma Lessa, mulher que muito lutou pela causa feminista, foi inaugurado em 2001 num espaço diferenciado e reservado do hospital e funciona em regime de plantão, 24h, de 2ª a 2ª, inclusive feriados. É constituído por uma equipe multiprofissional da qual fazem parte médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, equipe que integro desde 2006.

Esta equipe é responsável por acolher a mulher vítima, prestar-lhe os primeiros socorros, examiná-la do ponto de vista tanto clínico quanto biopsicossocial, estabelecer e aplicar a conduta médica obedecendo o protocolo adequado ao tipo de violência sofrida.

É realizado o acolhimento e prestada a assistência psicológica não só no 1º atendimento, mas durante o período em que a paciente apresente sintomas de estresse pós-traumático, ajudando-a na recuperação da sua auto-estima e na reconstrução do seu projeto de vida.

O serviço acompanha esta paciente durante o tempo necessário ao seu restabelecimento e promove também a conversa com os outros organismos e instituições envolvidas para que a paciente tenha toda a atenção e cuidados pertinentes, cuidados estes que envolvem desde esclarecimentos sobre a Lei Mª da Penha e seus encaminhamentos (a lei que tipifica a violência doméstica como crime), ao aborto previsto por lei (que se aplica aos casos em que a gestação é fruto de um estupro), passando por toda a conduta de prevenção e profilaxia para DST/AIDS bem como a realização da cadeia de custódia.

Eis alguns números do serviço neste ano de 2013, contabilizados até Setembro:

Nº de atendimentos de novos casos: 512 (257 vítimas de violência sexual, 224 vítimas de violência física, 29 vítimas de ambas as violências e 2 sofreram ameaças)

Nº de retornos ao serviço: 677

Nº de casos encaminhados para o Programa de Aborto Legal: 8

Nº de casos em Programa Pré-Natal no serviço: 17

Nº de casos de reincidência: 9 (4 vítimas de violência sexual, 4 vítimas de violência física e 1 vítima de ambas as violências).

 

Há um soneto de Florbela Espanca que muito me lembra o sofrimento das mulheres que diariamente nos procuram no serviço, por falar de um vazio, de um desamparo, de um sentimento de não-pertencimento que é tão comum a estas mulheres:
 
 Lágrimas ocultas
 
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
 
E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
 
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
 
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
 
                             Florbela Espanca[xv]

 

Finalizo citando novamente o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon:

“A violência contra as mulheres não pode ser tolerada, de nenhuma forma, em nenhum contexto, em nenhuma circunstância, por nenhum líder político nem por nenhum governo.” [xvi]

Queria situar que foi destas experiências de trabalho que surgiu a idéia de criar uma associação que cuidasse das mulheres, mas de outra perspectiva, com foco nos seus direitos de cidadã, na sua saúde e educação, autonomia financeira, criatividade, enfim, visando o tão necessário e desejado empoderamento. Em conversas com amigas e colaboradores concluímos que por meio de um bloco de Carnaval, instituição enraizada na nossa cultura, poderíamos chamar a atenção da sociedade para essas questões e, assim, nasceu “Folia das Deusas”, associação que organizou este evento.

Por fim, peço às portuguesas e luso-descendentes que não fizeram parte desta mesa que não se sintam desprestigiadas e sim estimuladas a participar da próxima edição, contribuindo com as suas experiências.

Não queria encerrar sem antes agradecer à jornalista Geórgia Alves pela divulgação e articulação, e à Sra. Fernanda Dias pelo patrocínio da Casa do Frios, ao Sr. Manuel Tavares do Conselho da Comunidade Portuguesa de Pernambuco e ao Real Hospital Português também pelo patrocínio.

Muito obrigada pela atenção de todos!

 



[i] Instituto Nacional do Seguro Social, órgão do Governo Federal responsável pela Seguridade Social no Brasil, cuja missão é “garantir proteção ao trabalhador e sua família, por meio de sistema público de política previdenciária solidária, inclusiva e sustentável, com o objetivo de promover o bem-estar social.”
[ii] Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, associação sem fins lucrativos que tem por missão educar, prestar atendimento médico, suprir as necessidades básicas de sobrevivência e lutar por direitos dos portadoras de deficiências  mentais, na perspectiva da inclusão social.
[iii] CAPSad Professor Luiz Cerqueira, Centro de Apoio Psicossocial para usuários de Álcool e Outras Drogas localizado no Distrito Sanitário I em Recife. O CAPS é um serviço de saúde aberto e comunitário do SUS (Sistema Único de Saúde), local de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e persistentes e demais quadros que justifiquem sua permanência num dispositivo de atenção diária, personalizado e promotor da vida.
[iv] Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa é uma unidade de serviço que atende mulheres vítimas de violência de gênero no Hospital Agamenon Magalhães, hospital público estadual, de grande porte, localizado na cidade do Recife.
[v] Ban Ki Moon, Secretário Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), mensagem proferida em 25 de novembro de 2012, no Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher..
[vi] II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica em Portugal, Diário da República Nº154 de 07.06.2003.
[vii] II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica em Portugal, Diário da República Nº154 de 07.06.2003.
[viii] LISBOA, Manuel e BARROS, Pedro Pita. “Custos Sociais e Econômicos da Violência Exercida Contra as Mulheres em Portugal: dinâmicas e processos socioculturais”. Universidade Nova de Lisboa.
[ix] WHOSIS, CENSUS, IBGE
[x] IPEA: Instituto Brasileiro de Pesquisa Aplicada é uma fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Suas atividades de pesquisa fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros.
[xi] SINAM: O Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan é alimentado, principalmente, pela notificação e investigação de casos de doenças e agravos que constam da lista nacional de doenças de notificação compulsória (Portaria GM/MS Nº 104, DE 25 DE JANEIRO DE 2011.
[xii] Cristina Maria Buarque é feminista e ocupa, desde janeiro de 2007, o cargo de Secretária da Mulher do Governo do Estado de Pernambuco. Sua experiência no campo do feminismo e da defesa dos direitos das mulheres é reconhecida pelos movimentos sociais de mulheres urbanas e rurais, nos âmbitos nacional e internacional. Formada em Ciências Econômicas, Cristina Buarque fez mestrado em Ciência Política e, atualmente, é doutoranda em Sociologia. Antes de ocupar o cargo de Secretária de Estado, Cristina, que também é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, idealizou a Rede Mulher & Democracia cujo principal objetivo é promover a inserção das mulheres nos espaços de poder. Além disso, é presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim-PE), coordenadora dos fóruns Regional e Estadual de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres e membro do Fórum Nacional de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres.
[xiii] Sílvia Cordeiro, atual secretária da Mulher da Prefeitura Municipal da Cidade do Recife é médica sanitarista e feminista. Fundadora e ex-coordenadora do Centro das Mulheres do Cabo, integrou a Rede Mulher e Democracia, iniciativa de lideranças do movimento de mulheres e feminista do Nordeste que tem o objetivo de fortalecer e ampliar a participação e representação política das mulheres . Participou  também do Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social do Governo do Estado. Há 30 anos, tem atuação destacada junto aos grupos de mulheres populares em diversas categorias.
[xiv] Hospital Agamenon Magalhães é um dos mais importantes suportes ao SUS em Pernambuco, hospital público estadual, de grande porte, credenciado como hospital de ensino, localizado na cidade do Recife. Atende mais de 10 mil pacientes nas emergências e mais de 7 mil pacientes no ambulatório de especialidades por mês. 
[xv] Florbela Espanca (1894-1930), poetisa portuguesa nascida em Vila Viçosa, no Alentejo. Florbela viveu durante trinta e seis anos, teve uma vida tumultuada e cheia de sofrimentos, que eram transformados em poesias, cheias de erotização e feminilidade.
[xvi] Ban Ki Moon é atual Secretário-Geral das Nações Unidas. Campanha do Secretário-Geral das Nações Unidas “Una-se pelo Fim da Violência Contra as Mulheres” América Latina.

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