quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Entrevista a Constância Néry


Entrevista a Constância Néry por Ricardo Varela  Pinto de Sá, aluno do 8º ano da Escola Básica e Secundária Domingos Capela no Encontro em Espinho

 

1-A construção das caravelas, para serem apresentadas no serão cultural, realizado na Escola Básica e Secundária Domingos Capela, sobre o tema "Camões" e a sua obra emblemática «Os Lusíadas», obedeceu a um projeto com base numa memória descritiva. Poderemos saber se algumas das suas obras aqui apresentadas obedeceram a esta dinâmica ou nasceram de forma espontânea?

 

Começo por citar o mundialmente famoso analista de Arte Anatole Jakovsky, que justifica o fato de a arte naïf resgatar a criança que está esquecida dentro do ser humano:“ … A pintura de uma criança não é obra de arte, não passa de divertimento, enquanto que para o pintor naïf trata-se do objetivo de suas vidas. Abolem o tempo e remontam às fontes, a esses paraísos infantis perdidos e, afinal reencontrados…” As minhas obras são criadas e produzidas no estilo Naïf, também conhecida como Arte espontânea, ínsita, ingênua. A expressão espontânea define melhor uma arte que não obedece a critérios determinados pelas academias, mas aplica a emoção e a sagacidade na elaboração da obra, a beleza e o encanto na composição de cores, conta sempre uma história a partir do desenho e usa o olhar da alma na escolha dos temas. O meu processo de criação passa pela planificação do trabalho, com requintes nos detalhes, nas informações, nas intenções. Direi que há imensas etapas neste processo criativo, onde os artistas que bebem na fonte naïf, por exemplo, Matisse, Picasso e outros se inspiram e se aproximam de vários estilos: impressionismo, surrealismo, cubismo, expressionismo. A arte naïf regista formas elaboradas em alguns artistas e formas brüit noutros.

 

2- O que a inspira ou inspirou nos países onde esteve como emigrante (pessoas, locais)?

O que me inspira: os casarios históricos, antigas esculturas nos logradouros públicos. Objetos de arte ou utilitárias. Gente, especialmente. Costumes de raiz, da terra, o jeito de ser do povo. Em Portugal, adoro a primavera, quando chega o tempo em que o sol transpassa as folhas e os troncos das árvores, com uma inexplicável luz que chega por todos os lados e mesmo assim nos dá a luz e a sombra. É diferente da luz do sol do Brasil, ou então parece diferente por ser tão rara. A música me inspira muito, especialmente José Zeca Afonso, em Portugal, as ladainhas, os pregões das feiras e mercados.

3 - Até que ponto poderíamos dizer que há, no país onde esteve, uma arte no feminino em oposição a uma arte no masculino? Ou há uma relação entre género e expressão artística?

Desconfio desses movimentos do feminino e do masculino. Acho que já está fora de tempo. Temos que estar sempre vigilantes, é claro. Mas eu sou uma “dona do meu espaço no feminino, onde quem quiser pode também entrar” e adoro somar, interagir, sempre respeitando o meu ser e o outro. Sei que tropeço nos preconceitos, se pudesse pisava neles.

Por outro lado, na vida social, não sou anarquista, sou até meio burguesa. Já basta a minha arte que não obedece a regras nem instituições.

Sei que há mulheres que sofrem essa divisão, especialmente as de classe desfavorecida por terem pouco poder económico e fracos conhecimentos. Acho que devemos dar a nossa expressão feminina sem confrontos com a masculina, sempre que possível. Juntar sim, separar não. Faço parte de um grupo de 80 artistas do elenco do meu marchand, há mais de trinta anos. Sou uma das primeiras contratadas por ele e, no grupo, há muitos homens, muitas mulheres. Todos somos respeitados, tanto na expressão como no valor dos quadros. Convivemos bem com a igualdade e com o direito de oportunidades. Não creio que Tarsila do Amaral e Di Cavalcante e Portinari tenham sofrido por culpa do masculino-feminino, durante a Semana de Arte Moderna no Brasil.

Acho que quando a cidadania, a responsabilidade, a generosidade estão presentes, aliadas com o saber, com o conhecimento, tudo fica mais claro e mais fácil fica a convivência.

 

4- Para uma artista plástica em comunidade estrangeira, como absorveu a nova cultura do país onde vive e como é que a interligou com a sua cultura de origem?

 

Cheguei em 2008, em plena crise; moro na cidade do Porto, onde sou convidada para muitos movimentos de arte. Sou sempre bem recebida e não me posso queixar. No Brasil, eu já tinha um histórico, um grupo de pertença e ainda o tenho. Percebo e estranho os veteranos portugueses a fazerem exposições sem retorno de vendas. Outros a fazer suas Fundações. Preciso de um tempo para poder responder melhor, mas vejo  um povo que, ou não teve o costume de consumir arte, ou não está a fazer aquisição de arte por conta da crise. No Brasil, quem não pode enfrentar o preço de um quadro, compra e paga em prestações, como é o caso dos intelectuais, dos professores, jornalistas.

 

5- Quais as barreiras que encontrou enquanto mulher- preconceito e enquanto criativa - liberdade?

Eu, pessoalmente, nenhum, nos dois sentidos, caminho normal, sem problemas.

Eu falo como uma portuguesa, já me confundem, pois eu sou assim mesmo, se converso com russo de manhã, à tarde já estou inserida no sotaque. Há uma situação de barreira que tive que enfrentar, mas foi temporária, ou seja, o meu marchand pediu para não pintar igrejas, por que não conseguia vender para os judeus. Depois da minha mudança para Portugal, alguns colegas brasileiros começaram a implicar comigo, por que eu estava a pintar os “meus” adorados azulejos. Pedi que eles, os meus colegas pintores implicantes, espichassem o olhar pelo interior de Minas Gerais e do Recife, da Bahia e de Parati. Pintei um quadro cheio de azulejos e dei o título: “Onde estou: em São Paulo, Rio, Parati ou em Lisboa, Porto, Viana do Castelo?”

 

6- Pensando no  percurso, será que teríamos maior êxito ou maiores oportunidades se estivéssemos nos respetivos países de origem

 

Não acredito que seja uma questão de local, mas sim da qualificação profissional de cada um e da qualidade de ensino, de educação do país que hospeda. Não adianta estar no país de origem se ele não está propício. Como também não adianta esperar melhores oportunidades, sem qualificação profissional e num país em mau estado.

 

7- O que ganharam, neste particular domínio, as mulheres migrantes na sua itinerância por vários universos culturais?

 

Depende muito do projeto de vida. O grande Ariano Suassuna, antropólogo, dramaturgo, historiador, escultor, pintor, escritor, advogado e poeta, conhecido no mundo inteiro, cria e tem a grande energia a seu favor por que vive no Brasil, sorve o Brasil, idolatra o Brasil e toda a sua obra é criada e produzida no seu pequeno local onde nasceu, casou e viveu com a mesma mulher, mais de setenta anos; e lá continua, cheio de vida e de sucesso, sem crise, não acredita na crise. A felicidade está onde ele está. Nunca viaja. Para o exterior. Mas penso que sempre é uma mais-valia, para o processo de criação e produção, conhecer novos mapas.

 

 8- Que importância acha que devemos atribuir às Artes como formas de intervenção e afirmação cívica e humana?

Temporariamente está um pouco enfraquecido, mas não morreu, esse sentimento que, na composição da carne e do espírito, se instala no espírito do ser.

Esse sentimento é uma essência que corre no sangue puro da veia paralela e que o ser humano necessita dele para alimentar a alma. Essa essência é a ilusão que nos sustenta e nos dá a cegueira necessária e generosa, para que possamos suportar a outra veia, onde corre o sangue das dificuldades, do desamor, da falta de paixão e ausência do mistério. Na veia de sangue puro, podemos garantir a morada para as Artes, o saber, o conhecimento, os Artistas e todos os seres bons, sejam doutores ou não.

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