quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Isabel Ponce de Leão Introdução ao Pinel das "Artes"


Contribuições culturais de expressão feminina

As artes

 Arte no feminino

 

Isabel Ponce de Leão

CLEPUL / UFP

 

Consciência e usufruto da cidadania plena é, naturalmente, preocupação primeira de quem demanda a integração num país que não é o seu. Se, num contexto desenvolvido, a cidadania persegue os direitos políticos, num outro menos desenvolvido ou mesmo terceiro-mundista abarca problemáticas como a autonomia, a democracia e o desenvolvimento.

Quanto ao problema da autonomia, há que superar as tendências periféricas e traçar políticas próprias; a democracia exige a participação activa, em termos políticos, a salvaguarda dos direitos do homem em termos sócio-político-económicos e, em termos sócio-culturais, uma formação que permita estabelecer valores idiossincráticos. Já o desenvolvimento dar-se-á com a utilização de modelos apropriados que não se restrinjam ao crescimento mas lutem pelo desenvolvimento numa dimensão social. Logo, a cidadania terá que ter em conta todo o tipo de relações: institucionais, económicas, políticas, culturais, tecnológicas… aos níveis interno e externo.

No caso da Mulher migrante, acresce o problema do género e a sua luta contra preconceitos e tabus. Há contudo que humanizar o conceito e seguir Cornelius Castoriadis quando afirma que a cidadania exige que se modifiquem as estruturas sociais, as atitudes, a mentalidade, as significações, os valores, a e a organização psíquica, exige ainda que se siga um processo educacional por forma a que as instituições não sejam nem necessárias, nem contingentes, ou seja, a aceitação do facto de que não há nem sentido recebido como dádiva nem garantia do sentido, de que não há sentido a não ser o que é criado na e pela história (1982: 88).

A Mulher tem escrito a sua história de luta contra a exclusão nas sociedades contemporâneas que, sendo complexas e diferenciadas, transformam-se, assazmente, em sujeitos passivos reduzindo-se a meros receptáculos de direitos garantidos por via externa.

Hoje ela é cidadã do mundo, migra em busca de um lugar onde estejam mais favorecidos os projectos económicos a nível individual, sabendo que vai encontrar leis, instituições e direitos, que tanto condicionam como legalizam. A Mulher Migrante tem contribuído para que a sua implantação no novo território seja formatada do modo que mais lhes convenha. Tal não é normalmente conseguido num curto lapso de tempo, mas a instalação, mais ou menos prolongada, outorga-lhe uma gama de vivências que lhe permitirá caldear a bagagem, geralmente tradicional da origem, com a experiência recente, actualizada, e portanto geradora de possibilidades acrescidas de se incorporar e de fazer reivindicações, sem prejuízo das normas anfitriãs. Sendo uma trajectória comum nos processos migratórios, depende de múltiplos factores, tanto exógenos, como endógenos.

Interessa-me, por agora, ver em que medida a arte se institui factor integrador da Mulher marcada pela quebra de identidade, a orfandade cultural e o desenraizamento afectivo tão comuns nas movimentações dos povos. A actividade artística das mulheres migrantes é hoje uma realidade e levanta questões para que se devem procurar respostas coadjuvadoras de uma melhor integração / inclusão.

Qualquer país ganha com a actividade artística de migrantes quer pelo conhecimento de novas sensibilidades e diferentes emoções, quer pela repercussão do novo e do diferente que, interagindo com o que existe, formatará novos modelos. O cruzamento de sensibilidades e saberes geram a obra de arte aglutinadora de culturas e divulgadora de idiossincrasias. Por outro lado, e crendo-se no binómio arte / sociedade, as mutações quer artísticas quer sociais são sistemáticas contribuindo também para a inserção do país na aldeia global.

A arte contribui para a inserção no mercado de trabalho não só pelos postos que pode gerar, como também pela sociabilização que propicia. Porque só existe se consumida – entendendo-se por consumo muito mais que a aquisição, a simples percepção – ela é também elemento aglutinador de saberes e sentires e de reforço das relações humanas. Através da sua produção artística, a mulher migrante marca o seu lugar na sociedade abanando o mercado da arte também através do exotismo de novos produtos. Tratando-se de artes sustentáveis – e todas o deviam ser – contribuem para a integração da migrante no mercado de trabalho. Naturalmente que a facilidade de integração é maior no caso da trabalhadora independente que acaba por criar novos postos de trabalho ganhando um estatuto privilegiado no país de acolhimento.

Olhando para o lado menos material da questão a arte apresenta-se como um domínio propício a construções interculturais sendo, como é, expressão de criatividades idiossincráticas. É justamente neste encontro de diferenças que se gera a comunhão de saberes e de afectos e se demanda o cosmopolitismo  de que o século XXI não abdica. A arte assume, por si só, a superação de particularismos e difunde linguagens universais propiciadoras de um ecumenismo prático.

Tendo como certo que as políticas públicas e os seus agentes podem e devem tornar-se mais amigos da criação artística de matriz intercultural, não será despiciendo observar que ela se tem vindo a autonomizar e a tornar sustentável muito por virtude da força da Mulher, mas também pelo gosto do diferente, a que atrás aludi, vendo, o país de acolhimento, no novo produto, uma mais-valia para o desenvolvimento do produto existente.

Embora as causas das migrações sejam, sobretudo, não artísticas, pelo menos no caso de Portugal, a presença de artistas migrantes altera completamente o mercado da arte. Sendo a mulher minoritária, a sua obra mostra que a dimensão artística é cada vez mais tributária da mobilidade e da diversidade cultural e marca de forma mais decisiva o painel social. Ao valorizar o território das artes em relação a outras categorias socio-profissionais, ela demonstra que os princípios estéticos estão em constante reconstrução e torna-se, por vezes, ela própria protagonista da obra de arte como acontece, e.g. na ficção documental de Olga Gonçalves ou nas obras João de Melo, José Rodrigues Miguéis ou Tiago Rebelo preocupadas em contribuir para o aclaramento destes fenómenos migratórios, de contornos pouco nítidos e assaz confusos, onde as relações inter-étnicas e a problemática das minorias parecem constituir uma das maiores dificuldades. Lembre-se, a este propósito o recente filme La Cage Dorée (A Gaiola Dourada) de Ruben Alves, onde Rita Blanco assume o estereótipo da porteira, grande êxito de bilheteiras em França e Portugal.

Uma corrente interessante em qua a Mulher assume protagonismo é a chamada pós-colonialismo, movimento estimulado pela obra Ocidentalismo de Edward Said que defende a teoria que as sociedades coloniais ocidentais erigiram uma ideia de oriente conotada com exotismo, perigosidade e subalternidade. Identidade, etnia, classe e género convertem-se em temas primordiais da expressão artística e os artistas, tanto ocidentais como não ocidentais, procuram inspiração em formas artísticas que ultrapassam as fronteiras culturais. Trata-se de uma tentativa de leitura do mundo contemporâneo com vista à estruturação de uma cidadania multicultural, igualitária e emancipatória de formação humanística cosmopolita. A arte caracteriza-se agora pela multiplicidade e pela transversalidade tentando, sistematicamente, superar o paradigma moderno precedente bem como o momento cronológico. Identidade e diferença são conceitos que apontam para um espaço contínuo, sem fronteiras, onde o eu e o outro partilham crenças e estéticas fazendo desmoronar posições dominantes e subalternas como tão bem o demonstram obras da angolana Balbina Mendes - angolana

Chamei esta corrente estética porque é através dela que a mulher ganha um papel preponderante pela multiplicidade de artes que desenvolve ao nível da pintura, da tapeçaria, da cerâmica, da bijuteria... Não há razão, neste particular, para se olhar para o papel da mulher migrante como subalterna, outrossim como a grande impulsionadora da realidade artística que já tem o seu lugar marcado no mundo das artes.

Paula Rego, Maluda, Helena Almeida, Vieira da Silva e, embora noutro registo, Menez, são cultoras das belas artes mulheres que, por motivos vários, abandonaram Portugal para fazerem o seu percurso no estrangeiro onde, apesar de dificuldades iniciais e tendo sempre em vista o país de origem, deram boas provas de cidadania.

Milly Possoz, Maria Pepa Estrada, Constância Nery, Balbina Mendes vieram até nós e por aqui ficaram entre idas e vindas trazendo aqueles traços idiossincráticos que marcam a interculturalidade emergente.

Umas e outras, a sua história de vida, a obra feita fazem-me sustentar a crença que, cada vez mais, a estética está ao serviço da globalização instituindo-se elemento imprescindível da inserção nesta aldeia global onde todos queremos ser felizes.

 

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