quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Aida Baptista comunicação


Encontro Mundial - Mulheres da Diáspora

Expressões Femininas da Cidadania”

Lisboa, 24 e 25 de Outubro

Rimas de cidadania – uma viagem pelas quadras de Ana Fontes

Aida Baptista

a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;

Natália Correia

 

Introdução

 

Permitam-me que comece por felicitar a Associação Mulher Migrante por mais uma atividade, entre tantas outras que a sua história testemunha, cujo enfoque são as Mulheres na Diáspora. Um país que desde sempre fez da migração um modo de vida, não podia deixar de ter tido mulheres, desde os tempos mais remotos, a engrossar os seus diversos fluxos migratórios. Tradicionalmente, eram os homens quem primeiro partia, seguindo-se depois as mulheres - no âmbito dos casamentos por procuração ou de movimentos de reunificação familiar.

Ao longo da última década, e como é do domínio público, o desemprego tem aumentado de forma exponencial e os dados que nos vão chegando dos organismos nacionais e internacionais indicam que esta situação não sofrerá alterações nos anos que se avizinham. Como consequência, o emprego, enquanto atividade remunerada e factor de inserção social, começa por, em primeiro lugar, ser vedado às mulheres. Por sua vez, os cortes salariais acabam por afectar também os sectores em que a classe trabalhadora é maioritariamente constituída por mulheres. Segundo Odete Filipe[1], «Quando estamos perante políticas que geram situações de recessão económica e social, todos andam para trás, mas as mulheres são sempre mais atingidas».

Assim sendo, não admira que estudos recentes demonstrem que, nos últimos anos, tenhamos sido confrontados com a feminização da emigração, que o mesmo quererá dizer que a iniciativa cabe às mulheres, passando esta a ser não só o sujeito ativo da partida, mas também a mobilizadora de vontades para a decisão de partir.

De acordo com o estudo do professor da Universidade do Porto, o sociólogo João Teixeira Lopes[2] - realizado para a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, sobre a recente vaga de emigração para a França -, «Esta nova vaga é feminizada, qualificada, planeia (a viagem) e vai para França porque quer deixar de ser jovem. Estão fartos. Em Portugal só podem ser jovens, isto é, precários, intermitentes, constantemente adiando o futuro, permanecendo em casa dos pais, sem qualquer capacidade de constituírem família».

Esta amostra que o autor considera bastante feminizada, é, na sua perspectiva, reveladora de um «grau de autonomia que mulheres e raparigas têm para sair do país que não existia antes».

Faz, por isso, cada vez mais sentido que se organizem iniciativas como esta, porque é em sede própria que se devem debater as transformações que, em termos evolutivos e de psicologia feminina, ocorrem com as mudanças que a emigração provoca, tendo em conta a diversidade das diásporas em que as mesmas ocorrem.

Sejam quais forem as geografias, o importante é avaliar e valorizar o papel que às mulheres cabe como agentes de mudança no tecido familiar, social, empresarial, artístico, académico e tantos outros, nem sempre contemplados numa primeira leitura. Contudo, tenhamos em conta que, para além de um universo de mulheres cujo nome teve direito a uma entrada em enciclopédias, compêndios de história ou estudos da especialidade, muitas outras viveram no esquecimento a que o berço ou as circunstâncias as condenaram.

Foi com o propósito de entrar nesta cadeia de anonimato em que muitas têm vivido aprisionadas que, perante o convite e desafio que me foram formulados para participar neste painel dedicado às artes, me decidi por vos dar a conhecer Ana Fontes.

 

Bilhete de Identidade de Ana Fontes

 

Ana Fontes nasceu em 1931, na freguesia de Santa Bárbara, Ilha de Santa Maria, Açores. Como todos sabemos, a história dos Açores, por força da sua geografia, não existe dissociada dos fenómenos migratórios, pelo que se não conhece nenhuma família açoriana que, quer pela via oficial ou a da clandestinidade, não tenha sido tocada pela emigração. Ana Fontes não fugiu à regra e,  já órfã de pai e de mãe, viveu uma curta experiência de dois anos em Cambrige, no Canadá, para onde partiu em 1972 casada por procuração. Apesar de os seus oito irmãos estarem a viver nos Estados Unidos, Ana Fontes não hesitou em regressar ao aconchego da ilha-mãe, onde hoje vive com os seus 82 anos, viúva de marido e ambições, que não seja a de que alguém «olhe pela sua obra».

Esta é composta de mais de 20 cadernos[3] de prosa e quadras manuscritas e cerca de 600 peças de artesanato espalhadas pelas diferentes divisões da sua modesta casa, como se de uma exposição permanente se tratasse. O seu maior desejo era ser reconhecida como poeta popular e que, após a sua morte, as peças de artesanato figurassem num museu da ilha. Como nos diz o jornalista Nuno Ferreira[4], que em 2012 fez uma viagem pelas nove ilhas dos Açores: « Hoje, Ana vive inconformada com o desinteresse público e oficial pelo espólio. Já tem oferecido peças e pergunta se queremos alguma. "Já cá vieram antropólogos, veio um artesão brasileiro mas ninguém pega nisto. Eu tenho amor a isto, é a minha família, gostava que alguém ficasse com ela"».

Até hoje, viu apenas publicado um dos seus cadernos «a voz do linho»[5] que a Secretaria Regional da Economia teve a feliz ideia de dar a conhecer, numa edição de 500 exemplares, com uma belíssima encadernação e ilustração.

Estes cadernos - apresentados maioritariamente no formato de quadras populares - que respeitam de forma bastante perfeita o esquema da rima e da métrica a que se submete este género literário - tratam dos mais variados assuntos. A viver na solidão e isolamento da ilha, é através da escrita que expressa os mais variados sentimentos e emoções, transformando-a no mais acabado exemplo do exercício de uma cidadania interventiva. Longe do povoado - mas próxima da informação que a rádio e, mais tarde, a televisão lhe facultam - tem sempre um olhar muito atento ao tempo em que vive, não se coibindo de se interrogar sobre as mais variadas questões, que vão da discriminição do género à crítica social (mormente no que à igreja e aos costumes diz respeito), sem esquecer nunca a desatenção com que as autoridades governativas tratam os mais desfavorecidos. O conceito de justiça social é transversal a toda a sua obra, mas o que mais a marcou e vem bem expresso em muitas das suas quadras e prefácios, sob a forma de protesto e de revolta, foi o facto de se ter ficado apenas pelos dois anos de escolaridade. Era uma das melhores alunas da sua sala, mas à família faltaram os 62$50 que lhe teriam facultado o exame da 4ª classe, o passaporte que lhe permitiria outros voos.

 

Ana Fontes entre o real e o imaginário

 

Ao olharmos para a forma como Ana Fontes organiza os seus cadernos, fica-nos a certeza de que muito diferente teria sido o seu futuro, tivessem sido outras as condições do berço em que nasceu. Para além de escrever numa letra legível e bem desenhada (de quem tem a pretensão de vir a ser lida), preocupa-se com a elaboração de um prefácio que, em jeito de introdução, explica o objetivo dos conteúdos sobre os quais se propõe escrever. Define-se como analfabeta, sem que isso represente uma diminuição das suas capacidades, já que tem perfeita consciência do que faz e de como o faz: «Eu não tenho estudo de qualquer espécie, tenho apenas a terceira classe do ensino primário, nasci em bom terreno e cresci normalmente, mas esse terreno nunca foi adubado, nem cuidado no tempo primitivo, e tudo à minha volta eram espinhos e abrólhos, a terra era barrenta e selada»[6].

Os cadernos encontram-se datados, divididos por capítulos, as páginas e as quadras numeradas, pese embora uma ou outra falha na contagem (repetição de números), próprio de quem escreve de forma repentista e nas condições em que o fazia - noite dentro, à luz de uma candeia ou de candeeiro a petróleo.

Considerando a temática deste Congresso, ganham particular destaque os seguintes cadernos: A Voz do Emigrante, 1986 (189 quadras), uma reflexão sobre os conflitos interiores dos açorianos que habitam a fronteira entre a conjugação de dois verbos: partir e ficar; A vida no século XX, 1988, cerca de mil e quinhentas quadras em que faz a narrativa completa da sua vida pessoal e familiar, inserida no contexto social de uma época a que não faltam todos os pormenores; a segunda parte do caderno Histórias Reais de Mortes, 1988 (321 quadras) em que conta a saga de um casal de emigrantes  - José e Adelina Chaves - que partiu para a América em 1968; Casas Branquinhas, 1988 (204 quadras), que mais não são do que casas de memória, abandonadas pelos que emigram e, por último, Diário[7], (Diário pessoal de Ana Fontes de 68 anos, natural de Sta Maria, Açores, no qual descreve pormenorizadamente a viagem que realizou nos anos 90 aos E.U.A., país onde tem 3 gerações de família emigrada, 84 membros). Col. particular de Ana Fontes, Açores, 14 de Janeiro de1999.

A verdade é que toda a literatura popular que Ana Fontes produziu poderia ser explorada em vários dos painéis aqui representados. Contudo, como estou incluída no das Artes, debruçar-me-ei sobre um outro, intitulado Artesanato, por, em minha opinião, revelar a seguinte originalidade: Ana Fontes, poeta popular, dialoga com Ana Fontes, artesã. Ou seja, serve-se das 578 quadras que compõem o manuscrito para nos dar a conhecer as peças por si confeccionadas nos mais diversos materiais, muitos deles enviados por familiares a residir na América.

O registo que utiliza tanto pode ser o da simples descrição na 3ª pessoa, como passa por personificar as personagens idealizadas, dando-lhes voz na primeira pessoa, ou ainda o do diálogo com as peças, numa teatralização perfeita do papel que lhes confere e do que delas espera. Elas ganham vida quando, reveladoras de uma genuína espontaneidade, entram na narrativa e se situam no tempo, no espaço e na função que lhes é atribuída.

Testemunha o Padre Jacinto Monteiro[8] que tudo o que lhe vem à mão é reciclado. «Assim, garrafas e garrafões revestidos de fazenda, transformam-se em patas, perus e galinhas achixadas, poedeiras, e seus respectivos comparsas, em trajes de gala, de crista vermelha e papo empertigado e farto. De latas de coca-cola, e de plásticos faz imagens de santos, metidos em oratórios, por ela fabricados. Com folhas secas entrelaçadas fabrica frágeis vasos e com ramos de giesta rija e grossa faz toscas mesas e cadeiras, com coxins de retalhos de variegadas cores, mais apropriadas para salas de casas solarengas». Esta colecção de figuras é designada por Tio Camacho e Angelina Mariante[9] como «arte ingénua e primária» concebida por «uma mente aberta, fantasiosa, um imaginário de apreço e receio, de exprimir o visto e o nunca visto, de criar sem ataduras ao interesse da moda ou do que fica bem nas feiras de artesanato».

Posta perante o dilema de ter de vos dar alguns exemplos do que foi dito, vou mostrar-vos algumas peças de artesanato, acompanhadas das respectivas quadras, cuja seleção (peças e quadras) são de minha inteira responsabilidade. A escolha prendeu-se com:

 

 a) o pormenor e importância das figuras representadas, como foi o caso do seu casamento:


 

 



[1] Odete Filipe, Comissão para a igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP-IN, As Mulheres contribuem para o desenvolvimento do país, Revista MDM movimento democrático de mulheres, 2013.
[2] Jornal Mundo Português, p. 12.
[3]Renascer, maio de 1985 (546 quadras); Vóz dum Emigrante,1986 (189 quadras); A morte é divórcio, fevereiro de 1987 (212 quadras); Vida do Séc. XX, fevereiro de 1988 (cerca de 1500 quadras); Artesanato, fevereiro de 1988 (578 quadras); História do Linho, março de 1988 (28 quadras); Poemas Românticos Decorados, março de 1988; Orações decoradas, março de 1988; Histórias Reais de Mortes, Abril de 1988 (321 quadras); A fé é um dom de Deus, maio de 1988, prosa;  Ilha de Santa Maria, outubro de 1988 (216 quadras); Ecos aos astros, novembro de 1988 (643 quadras); Casas branquinhas , Dezembro de 1988  (204 quadras); O acidente do Boeing 707, Agosto de 1989 (373 quadras); A vindima de S. Lourenço, Outubro de 1989 (315 quadras); Amor Falso é Traição, Outubro de 1989 (184 quadras);  Viagem Atribulada, 1993, prosa;  Diário, 1999 (prosa e quadras); A morte de meu marido, 2004 (200 quadras); Pranto Secreto sem Voz, julho de 2005 (423 quadras e 18 sextilhas); Realidades em Contos Pontos (prosa, sem data);
[4] Autor de Portugal a Pé, Edição Vertimag, Revista Epicur e Café Portugal (revista on line).
[5] a voz do linho, 2001, Edição da Secretaria Regional da Economia, Centro Regional de Apoio ao Artesanato
[6] Caderno manuscrito A vida no séc. XX.
[7] Exposto em Traços da Diáspora Portuguesa, exposição organizada pelo Museu da Presidência da República e Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, 2007, na Gare Marítima de Alcântara - Salão Almada Negreiros.
[8] In a voz do linho
[9]A cabana do Tio Tio, Companhia de Marionetas, in a voz do linho,

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