sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Feminismo e cidadania

Fotografias de mulheres que participaram na organização do
Primeiro Congresso Feminista e de Educação - 1925
1. Introdução1
2. Revisão histórica e teórica do conceito de cidadania1
3. O Feminismo em Portugal
3.1. Feminismo na 1a República
3.2. Feminismo no Estado Novo
3.3. Feminismo nos anos 70 e 8015
3.3.1. Feminismo Radical
3.3.2. Feminismo Socialista / Marxista
3.3.3. Feminismo Liberal dos anos 80
3.3.4. Pós-Feminismo
4. O Lugar das Mulheres nas Nossas Sociedades
- Perspetivas de Futuro
5. Conclusão
6. Bibliografia

Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE

"A cidadania das Mulheres, que implica a sua
representação paritária, não é uma concessão
generosa, nem um processo de mera equivalência
numérica. Mas, muito mais do que a reivindicar,
estamos a alertar para uma oportunidade
única para todos, homens e mulheres. Mais,
muito mais do que a defender um direito das
mulheres, estamos a convocar a vontade política
de mulheres e homens para lançarmos os
fundamentos de um novo contrato social. "
Maria de Lurdes Pintassilgo, 1994
'A extensão da emancipação das mulheres
é muitas vezes encarada como a bitola pela
qual se avalia o nível social e político de uma
sociedade. "
Mikhail Gorbatchov, 1987
LEONOR DA FONSECA PIMENTEL
A PORTUGUESA DE NÁPOLES
(1752-1799)
Até conseguir divorciar-se, Leonor era conhecida, entre os intelectuais e a nobreza, pela
sua notável capacidade para poetar, pela sua cultura que ia das letras às ciências, pelo seu
carisma, pela sua dedicação como esposa... A partir dos 32 anos, deixou de frequentar a
corte, dedicou-se ao estudo e a fazer traduções, ao convívio com novos ideais e tornou-se
republicana, uma das líderes da revolução napolitana. Esta mulher, que ficou na História
como a «Portuguesa de Nápoles», nasceu em Roma no dia 13 de Janeiro de 1752, filha
de um alentejano e de uma lisboeta. Os pais de Leonor preocuparam-se em dar-lhe uma
educação pouco habitual para a época, rodeando-a dos melhores mestres. A portuguesinha
estudou ciências, matemática e economia, filosofia, direito, política... Aos 16 anos já encanta
a Corte de Fernando IV e Maria Carolina, de quem foi dama de honor e a quem dedicou
alguns poemas. Corresponde-se com Voltaire que lhe dedica um poema e retribui o fascínio.
O marido não gosta que ela se cultive, odeia livros, e gastará todo o dinheiro nas suas
próprias extravagâncias.
Leonor casou-se em 1778 com um capitão do regimento de Sannio, cujo nome é hoje
conhecido por ter sido seu marido e pelos maus tratos que lhe infligiu e causaram a
interrupção de duas gravidezes, uma delas logo a seguir à morte do filho Francesco, vítima
de uma epidemia infantil aos oito meses. Os primeiros desgostos registou-os em dois bonitos
poemas. Mas quando escreveu sobre o seu casamento, fê-lo em prosa, num texto que ficou
apenso ao processo de divórcio. Pascuale Tria de Solis tentou tudo para que fosse ela a
incriminada, acusando-a de adultério e de lhe ter dado duas facadas, mas Fernando IV, que
Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
um dia a condenaria à morte, acreditou que Leonor sofria por ser obrigada a conviver com
a amante do marido, sujeita à tortura psicológica, às bastonadas e à penúria. (...) Jornal
Expresso, Nov. 2002, Adaptado.
1. Introdução
O conceito de cidadania é em si mesmo problemático e ambíguo, com diferentes conceções ao
longo do tempo.
Na primeira parte do nosso trabalho desenvolvemos diferentes conceções de cidadania, na parte
seguinte abordamos os feminismos e a sua luta para que as mulheres fossem incluídas no conceito de
cidadania, e como o conceito de cidadania se alargou para incluir as mulheres.
Por fim, procuramos identificar o lugar das mulheres nas nossas sociedades e perspetivar o futuro
sem esquecer que as sociedades humanas têm os seus ritmos próprios de evolução, os quais são função
das suas características socioculturais, económicas e políticas, e também dos seus percursos históricos.
2. Revisão histórica e teórica do conceito de cidadania
A ideia ou conceito de cidadania tem origem na Antiga Grécia. Aristóteles personifica a primeira
tentativa sistemática para desenvolver uma teoria de cidadania. É na polis grega, em Atenas, desde o
século V a.C. até ao século IV a.C. que encontramos a primeira expressão prática de cidadania.
Para Aristóteles, o que define um cidadão é a sua participação em processos de julgamento e
decisões públicas, sendo a participação na comunidade política o elemento central da cidadania.
A lógica cívica, subjacente a este modelo clássico, é a seguinte:
O objetivo central da política é a plena realização das capacidades humanas, a liberdade da polis é
necessária ao desenvolvimento dos humanos, e a virtude cívica é necessária para assegurar a liberdade da
polis.
Os cidadãos agiam quer como legisladores quer como executores, e defendiam-se através da
obrigação militar, o que nos leva a afirmar a existência de uma relação estreita entre guerra, cidadania e
masculinidade.
Na política e na sociedade, dominava uma ideologia cívica que sustentava todas as instituições
governamentais, educacionais e de lazer, onde cada uma destas se procurava com o exercício e
promoção da cidadania ativa. Para se ser verdadeiramente humano era necessário ser cidadão ativo, o
que demonstra que esta cidadania se baseava mais em obrigações do que em direitos, percebidos pelos
cidadãos como oportunidades para serem virtuosos e servirem a sua comunidade.
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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
A importância da participação política era tal
que se efetuavam pagamentos aos cidadãos pelo facto
de participarem na assembleia, constituindo assim a
pobreza uma barreira à cidadania e simbolizando a
dominância da política sobre a economia.
A cidadania é, assim, de natureza holística,
distinta do tempo presente, em que a política é vista
com suspeição, as obrigações como males necessários e,
em muitos casos, como um infringir da liberdade.
É importante sublinhar que o estatuto de
cidadania na polis era exclusivo. A cidadania era uma
marca de superioridade sobre os não cidadãos, fossem
eles mulheres (a quem faltava a racionalidade para a
participação política), escravos ou "bárbaros".
A conceção romana de cidadania apresentava um
carácter crescente de inclusão à medida que o império
se expandia, e representava igualmente um estatuto
privilegiado inerente à participação política. Mas, para a
maioria dos cidadãos romanos, a cidadania reduzia-se à
guarda e segurança social, tornando-se pouco mais que
a expressão de normas de lei, uma espécie de cidadania
nominal.
Na Idade Média, assistiu-se a uma diminuição
da importância da cidadania, onde a honra através
do
exercício
procura da salvação pessoal. Como dizia Santo
Agostinho, os indivíduos deviam preocupar-se com a
autocontemplação e a oração e não consigo próprios. A
Igreja substituiu a comunidade política como foco para
a lealdade e o código moral.
Todavia,
cidadania, incluindo uma ética de participação inspirada
na Antiga Grécia e, principalmente, nos romanos,
tornando-se, assim, fundamentais na emergência da
conceção da cidadania moderna. Esta cidadania só
foi possível devido ao desenvolvimento da atividade
comercial e industrial que permitia a existência de
taxas, sistema-base sobre o qual uma comunidade de
cidadania podia ser construída.
Estas cidades foram exceção em todo o sistema
feudal, onde a cidadania era hierárquica, não universal.
Foi com o liberalismo que a cidadania adquiriu
da
cidadania
foi
substituída
pela
Florença
e
Veneza
exerceram
a
Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
uma lógica igualitária, teoricamente inclusiva.
A conceção moderna de cidadania tem evitado
a autoridade e a governação, situando-se num espaço
conceptual de "lógica de proteção".
O desenvolvimento da cidadania moderna pode
associar-se quer à Revolução Francesa de 1789, que
permitiu fundir a lógica de Estado com a de nação, quer
às ideias preconizadas pelos filósofos Thomas Hobbes e
John Locke que introduziram a noção de Igualdade nos
debates relativos à relação entre o indivíduo e o Estado.
Cerca de 1566, Jeau Bodin, aterrado com a
violência religiosa, escrevia as primeiras declarações
daquilo que agora se designa por cidadania "protetora",
argumentando com a importância fundamental da
existência de uma soberania absoluta para assegurar os
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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
paz e da segurança, e assumindo a conceção de cidadão como um sujeito obrigado à obediência face à
soberania, em troca de proteção, rejeitando contudo a cidadania ativa.
No século XVII, Thomas Hobbes considerou como natural aos homens o estado de perpétua
guerra, e admitia que os humanos também possuem motivações para acabar com esse estado de medo.
No entanto, enquanto se mantiver o estado brutal e natural de guerra, todos os indivíduos, enquanto seres
iguais, têm direito a tudo, incluindo a vida de outrem. Como todos têm direitos naturais a tudo (o que
coloca todos em causa), a transferência desses direitos é feita através de um contrato, que é a base da
noção de obrigação e dever.
Tendo em conta o individualismo e egoísmo das pessoas, a violência dos contratos era sempre
uma possibilidade. Para assegurar os contratos (e a paz),Hobbes preconiza a entrega do poder a um
"soberano". Assim, a criação da sociedade política era o produto de um contrato social original entre
indivíduos, concebido para assegurar a autoproteção. Por transferência dos direitos naturais para o
poder soberano, de forma a assegurar a auto preservação e a zelar pelos contratos originais, os homens
escolhem livremente constituir-se a si mesmos como sujeitos desse poder soberano. Essa relação entre
proteção e obediência é contingente e contratual.
A cidadania é, assim, uma forma de "troca cívica" baseada na proteção por recompensa de
obediência, e não uma participação ativa.
John Locke defende que todos os indivíduos possuem capacidades e deveres para se revoltarem
contra a ordem social. Sendo que, nesta situação,, todos são iguais, acabou por permitir aos pensadores
liberais fazer a ligação conceptual entre cidadania e igualdade.
Este autor refuta a doutrina do direito absoluto e divino do monarca, criando desta forma uma
teoria que concilia a liberdade do cidadão com a ordem política, acrescentando que o trabalho está na
origem e na justificação da propriedade, e que o contrato e o consentimento são a base do governo, com
limites fixados, sustentando assim a ideia de independência da pessoa individual.
A legitimidade moral da sociedade política dependia inteiramente do consentimento relativo ao
contrato social, e das obrigações que os cidadãos assumiam voluntariamente ao acordarem com esse
contrato social.
Locke insistia que a defesa dos interesses individuais dependia de um Estado constitucional
limitado, na lei de "opinião e refutação", superior à lei divina ou civil, e no desenvolvimento e uso da
razão para governar.
Ao repudiar o absolutismo de Hobbes e ao formalizar a ideia de uma política liberal baseada num
governo constitucional e no consentimento dos cidadãos, acabou por lançar os princípios-chave da teoria
democrática liberal.
Mas, se pensadores como Hobbes e Locke introduziram a noção de igualdade nos debates
referentes à relação entre indivíduos e sociedade, outros autores, essencialmente posteriores à Revolução
Francesa, foram assumindo o direito dos indivíduos à vida e à liberdade.
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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
Rousseau foi fundamental na crítica do modelo de cidadania como "lógica de protecção" e na
asserção de igualdade. Pode considerar-se o primeiro dos democratas modernos comprometido com o
princípio da soberania popular, preocupado com as virtudes e participações cívicas, fundamentais para a
criação da comunidade política.
Segundo Rousseau, para os cidadãos serem livres e iguais e estarem protegidos era necessário
um contrato social entre os homens, baseado no consentimento de todos, clamando que a soberania
era das pessoas. O contrato social envolvia a total alienação, para toda a comunidade, dos direitos
individuais, uma forma de sociedade capaz de integrar o "Eu" no "Nós". Se todos eram iguais e tinham
iguais condições, ninguém teria interesse numa lógica de opressão. Desta forma, a total alienação de
todos os direitos à comunidade, estabelecia e protegia a igualdade moral e política de todos os cidadãos;
mesmo sob a direção suprema da vontade geral, ninguém abdicava da sua total liberdade. Deste modo, o
contrato social cria um governo, que atua de acordo com a vontade geral, um governo democrático.
Rousseau difere dos autores referidos na medida em que procura conseguir a "lógica de
participação" inserida numa "lógica de proteção", e também ao conferir às pessoas autoridade para
identificar a vontade geral e determinar a lei.
Rousseau não era um apaixonado da democracia representativa moderna. Para ele a
representatividade destrói a possibilidade de cidadania e a afirmação e desenvolvimento da personalidade
moral, através da Acão cívica. Como seria possível ser-se um cidadão numa comunidade política e
crescer em virtudes cívicas se não se estivesse capaz de participar na deliberação pública? A democracia
requer o contínuo envolvimento dos cidadãos na deliberação e retificação das leis de forma a poder
identificar-se a vontade geral. Se esta vontade geral protege o bem comum, então o bem comum requer
cidadãos virtuosos e patrióticos. Para isto é necessário um eficaz programa de educação republicana, que
desenvolva essas virtudes e o patriotismo. O cultivo da virtude cívica é a questão-chave do Estado. Não
poderia haver patriotismo sem liberdade, liberdade sem virtude e virtude sem cidadãos.
Depois do século XVIII, foram-se definindo as fronteiras dos Estados, assistiu-se à separação entre
Estado e Igreja, e a cidadania começou a focalizar-se no Estado, o local de exercício de reivindicação de
direitos, vinculada por novos movimentos sociais. Deste modo, o Estado tende a governar cada vez mais
de forma consensual, sendo que a cidadania se torna uma parte importante do processo de governação.
Assim, a história da cidadania moderna pode ser compreendida como uma série de contratos e
compromissos pelos quais as elites procuravam manter o seu poder através da gestão dos efeitos das
mudanças sociais, controlando as exigências dos movimentos sociais através das concessões em forma
de direitos. Isto culminou no desenvolvimento dos direitos sociais, na forma de Estado-providência, em
muitos países da Europa, em meados do século XX.
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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
Por volta dos anos 50, Thomas Marshall, conceptualizou a cidadania como um tipo de estatuto
legal particular de "Identidade oficial" juntamente com a ideia de "membro pleno" de uma comunidade
soberana que se autogoverna. A cidadania é um estatuto conferido a todos os membros plenos de
uma determinada comunidade, recusando restringir o significado de cidadania a uma relação política
estreita entre o indivíduo e o Estado. Como um estatuto legal, a cidadania confere o direito a ter direitos.
Além disso, todos aqueles que possuem este estatuto, são iguais nos direitos e responsabilidades a ele
associadas.
Marshall concebe a sociedade como um sistema social de atividades inter-relacionadas que
mantém o comportamento social e a identidade, permitindo a liberdade de escolha individual. Afirma a
possibilidade de compatibilidade entre empresas capitalistas e políticas sociais coletivistas, advogando
que uma economia de mercado livre pode contribuir para criação de bem-estar.
A preocupação de Marshall era conciliar a democracia política formal com a divisão da sociedade
em classes sociais. A resposta estava nos Estado-providência, já que estes poderiam limitar os impactos
negativos das diferenças de classe nas oportunidades de vida dos indivíduos, ao mesmo tempo que
permitiam um comprometimento das pessoas com o sistema.
No seu esquema classificativo (criticado por feministas), identifica três elementos conceptual e
historicamente distintos na cidadania.
O primeiro estádio é a cidadania civil, com os direitos fundamentais à liberdade individual,
liberdade de expressão, pensamento e fé, e direito à propriedade e à justiça.
Nos séculos XVIII e XIX, a cidadania política desenvolveu-se com a evolução da democracia
parlamentar moderna, donde considerar-se um segundo estádio, o da cidadania política - o direito a
participar no exercício do poder político.
Finalmente, refere o Séc. .XX como o terceiro estádio de desenvolvimento da cidadania liberal
- cidadania social -. Esta considera o acesso individual aos bens sociais básicos providenciados pela
comunidade no seu todo. Estas formas sociais de cidadania foram institucionalizadas na forma do
Estado-providência, onde o sistema educativo e o conjunto de serviços sociais são as instituições mais
relevantes..
A emergência dos direitos civis e da liberdades marca a transição da dependência feudal para o
desenvolvimento de uma comunidade de cidadãos iguais. Só depois de estabelecidos estes direitos, foi
possível lutar pela extensão do sufrágio a todos os cidadãos adultos. Passou-se de uma identidade baseada
no "ser sujeito" de um poder monárquico para ser cidadão do Estado. A transição de um "sujeito" para
um "ser cidadão" é fundamentalmente a transição da dependência para a independência.
Esta classificação é proveitosa para caracterizar a história das mulheres como "não-cidadãos".
As mulheres casadas inglesas, até ao fim do século XIX, não teriam atingido ainda o primeiro estádio,
podendo considerar-se pessoas vivendo num sistema feudal. O mesmo se poderia dizer das
Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
mulheres portuguesas, cujo estatuto de igualdade só foi consagrado na Constituição Portuguesa em 1976,
Uma critica possível ao trabalho de Marshall, é ter relegado para as margens da universalidade a
história da cidadania das mulheres.
John Rawls, filósofo político americano contemporâneo, baseia as suas teorias num contrato
social que apresenta, num Estado hipotético, o acordo entre os homens, estabelecendo assim a entidade
da sociedade. As pessoas, não conhecendo as suas posições ou habilidades naturais nessa mesma
sociedade, determinam os princípios desse contrato, em que o valor da liberdade não reside tanto no
gozo individual das liberdades (como acreditavam os antigos liberais), mas sim na efetiva igualdade de
oportunidades para exercício dos direitos da cidadania moderna. Desta forma não estabelece uma noção
rígida de natureza humana, como institui em teoria adequada às sociedades politicamente organizadas em
democracia constitucional (que concede prioridade à liberdade individual).
Este princípio de "liberdade igualitária",( liberdades básicas extensíveis), impõe, contudo, uma
obrigação a todos os cidadãos: a exigência de que cada um respeite a autonomia moral de todas as
pessoas e o direito ao desenvolvimento.
Se, até aqui, o nosso trabalho incidiu sobre a evolução social e cultural do conceito de cidadania e
sua consolidação através dos valores liberais construídos depois do século XVIII, parece-nos pertinente
fazer agora breve referência às controvérsias e/ou ambiguidades que envolvem
presente, cada vez mais identificado como neoliberal, onde o primado da economia se sobrepõe ao
político e social.
Na década de 70, na sequência da crise do Estado-providência e dos modelos de planificação
estatizante, assistiu-se à difusão da ideologia neoliberal de recentramento da sociedade no indivíduo,
com a inerente desvalorização do interesse comum e das estruturas que lhe dão suporte, o que nos leva a
afirmar que o termo cidadania, no sentido usual do termo, está associado a um Estado, que, por sua vez,
implica a fusão do Estado-Nação, típica dos países da Europa Ocidental, desde a Revolução Francesa.
Se, numa aceção ampla, cidadania significa que alguém é titular do passaporte de um determinado
Estado, , em sentido mais restrito configura os direitos humanos e civis, e o facto de, nas democracias
modernas, a soberania estar fundamentada no "povo" ou na "nação", definida como o conjunto dos seus
cidadãos.
A cidadania, na modernidade, é ambígua, resultante em parte da sua estrita relação com o Estado-
nação. Como a sua extensão acabou por ser determinada pelas fronteiras (físicas e culturais) entre os
Estados, surgiram fenómenos quer de inclusão quer de exclusão e controlo social.
Como equacionar a cidadania na sua relação com os Estados-nação?
este conceito no
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Miller (1995) afirma que as pessoas dão
importância à noção de nacionalidade e, por isso, será
necessário que qualquer teoria de cidadania tome isto
em consideração, para não ser uma ideia vazia. Assume
a nacionalidade como a história partilhada, a cultura
política e o sentido de destino comum. Só a associação
da cidadania à nacionalidade poderá implicar um
sentido de obrigações recíprocas dos indivíduos.
Faulks (2000), por sua vez, critica esta conceção
de cidadania como exclusiva e estática, referindo o facto
de não ser fácil encontrar uma experiência clara e bem
definida de nacionalidade, já que nem todas as pessoas
experienciam a nacionalidade da mesma forma, face
aos problemas cada vez mais frequentes de racismo,
desigualdades entre homens e mulheres, e desigualdades
entre classes sociais, que originam uma perceção e
valorização diferente de nacionalidade. Por isso, afirma
que uma conceção de cidadania nacionalista poderá
produzir fenómenos de exclusão.
Oommen (1997) refere que a ideia de cidadania
deve ser deslocada e desassociada da ideia cultural de
nação, se se quiser manter um conceito inclusivo, capaz
de unir diferentes grupos em sociedades crescentemente
plurais. Essa dissociação passa pela desarticulação da
ideia de Nação e da ideia de Estado. Assume a nação
como fusão do território e da linguagem, dando-lhe
um estatuto cultural e pré-político, o que implica que
a pertença a uma nação é determinada pela geografia e
história e não por deliberação democrática.
A fusão entre Estado e nação acabou por
confundir cidadania com nacionalidade, tornando-se
a cidadania um conceito tanto cultural como político
e, como tal, aberto a processes de exclusão. Daí a
necessidade de diferenciação do conceito de cidadania
do conceito de nação.
A
comprometida na medida em que não se pode esperar
que as minorias se tornem nacionais ou sejam
assimiladas culturalmente, devendo o estatuto de
cidadania ser concedido em função da residência e
não em função na naturalização ou de qualquer noção
abstracta e etnocêntrica de integração cultural.
própria
ideia
de
Estados-Nação
está
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Oommen preconiza uma sociedade fora do
contexto de Estado, Estado esse dissociado da nação.
Faulks vê neste argumento a fragilidade da
conceção de cidadania deste autor na medida que ignora
a conexão íntima da construção histórica e cultural das
ideias de nação e Estado.
Mais que qualquer outra ideologia, a sócio liberal
tem sido fundamental para o debate atual
sobre o exercício da cidadania, particularmente a
natureza tipicamente dualista de tradição liberal,
congruente com a lógica da modernidade e de
acentuação de dualismos, redutores e fonte de
No seu livro Citizenship, Faulks considera que
o potencial emancipatório dos valores liberais está
enfraquecido, sobretudo em razão da forma como esta
ideologia assume a relação entre os indivíduos e a
comunidade, assim como entre a economia e a política.
Faulks baseia-se no que considera ser o "dualismo
comunidade, para daí
\^
básico"
da
teoria
liberal:
indivíduo/
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equacionar outros dualismos, fonte de problemas para a cidadania, particularmente a questão entre
direitos e deveres, que representa uma das tensões mais evidentes da cidadania liberal.
A cidadania, segundo a tradição liberal, pode ser definida primeiramente como um conjunto de
direitos individuais, sendo o mais valorizado a autonomia individual, direitos estes que possibilitam
o espaço para o desenvolvimento individual que, por sua vez, promove a existência de seres
autossuficientes libertos da interferência de outros indivíduos ou da comunidade.
A autoridade do Estado é um contrato entre os indivíduos que aceitam desistir de algumas
liberdades, em troca da segurança que o Estado possa oferecer (direito à vida, à liberdade e à
propriedade). Nasce assim a ideologia do individualismo, abstrato, mas fundamentalmente em oposição à
comunidade, que se assume como ameaça potencial para essas mesmas liberdades e que, em parte, pode
explicar a ambivalência face às responsabilidades, à democracia e aos direitos sociais.
Assim, é legitimo afirmar que a defesa liberal dos direitos se baseia num conjunto de suposições
que privilegia o autointeresse do indivíduo egoísta e racional sobre as necessidades da comunidade
política. Como os liberais assumem que as pessoas são atores anónimos, os argumentos para os direitos
liberais são abstratos em forma e falham ou subestimam como os direitos, por mais cruciais que sejam,
devem ser enraizados numa rede de responsabilidades entre indivíduos e as suas comunidades.
Uma abordagem pós-liberal da cidadania exige que direitos e responsabilidades sejam analisados
como interdependentes e não em oposição, como a perspetiva dualista da cidadania liberal preconiza. Os
direitos individuais são apenas significativos quando são suportados pelo sentido de obrigação face aos
outros, e no reconhecimento de que os direitos podem ajudar a construir e sustentar as instituições sociais
que os tornam possíveis; deve-se promover o nível de responsabilidades para com as comunidades
políticas. As sociedades pós-modernas são complexas, diversas e individualistas; por isso, é necessário
encontrar maneiras para criar interesses comuns e para desenvolver obrigações sociais. Ao promover
responsabilidades também se reconhece a cidadania como sendo um estatuto ativo e não passivo.
3. O Feminismo em Portugal
3.1 Feminismo na Ia República
O aparecimento dos movimentos feministas em meados do século XIX e a visibilidade que
adquiriram, criticando a ordem patriarcal e as suas manifestações, não podem ser desligados do
processo de constituição, a partir de setecentos, de um espaço autónomo de debate e discussão no seio
da sociedade civil burguesa. A demarcação entre o domínio do Estado e o domínio da sociedade, a
separação entre a esfera da vida privada e a esfera da vida pública e o carácter politico
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que marcou o espaço publico como espaço independente e critico face à razão e ao poder do Estado,
abriram os caminhos iniciais que os primeiros grupos feministas iriam percorrer, na reflexão da condição
feminina e dos lugares que lhe estavam associados em ambas as esferas.
Em Portugal, desde a formação do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP),
organização feminista criada em 1914, até 26 de Dezembro de 1968, data que estabeleceu a igualdade
de participação entre os dois sexos, assistiu-se a um longo processo de produção legislativa que, no
impedimento absoluto do exercício feminino do voto, passou por sucessivas alterações à lei eleitoral e,
mediante determinadas condições, pelo reconhecimento limitado da intervenção das mulheres na vida
política do país.
Na esteira de feminismo internacional, a luta pela participação política constituirá uma das
pedras basilares do programa do movimento feminista português. Sublinhe-se que, no início do século,
o movimento feminista havia-se consolidado em muitos países da Europa e dos Estados Unidos,
desempenhando um papel ativo na reivindicação do sufrágio feminino, considerado como um dos
primeiros passos para a completa emancipação da mulher na vida social.
O Conselho Nacional da Mulheres Portuguesas é criado na quinta Assembleia quinquenal do
Internacional Council of Women, em Março de 1914, por iniciativa e proposta de Adelaide Cabete.
É oportuno dizer que a criação do CNMP acorreu num contexto favorável à discussão feminista, já que as ideias
não só eram conhecidas em Portugal como também constituíam objetos de teorização de algumas personalidades
pioneiras, nomes de referência na história contemporânea, pertencentes às camadas de alta e média burguesia
urbana. Representavam uma elite cultural e social, com formação escolar elevada ou superior. Moviam-se
nos espaços de debate de ideias, acompanhavam novas correntes de pensamento e muitos tinhas estado no
movimento republicano de oposição à monarquia constitucional, apoiantes do programa do Partido Republicano,
enquanto outras estavam próximas do movimento operário e movimento anarco-sindicalista.
Ao surgimento do feminismo não foram estranhas as movimentações em torno das ideias humanistas e
socialistas desde meados de oitocentos. A tal posicionamento não era estranho o quadro de orientação ideológica
da Maçonaria feminina que propunha "faire participer la femme à la vie intellectuel et à la pratique de la
solidarité humaine" (in Costa, 1979: 46). Um dos seus nomes mais significativos foi Adelaide Cabete, médica e
também presidente do CNMP.
Com a implantação da Republica, verificou-se uma significativa produção legislativa que
se vinculava à influência do catolicismo e ao direito romano. Serve de exemplo o art. 39 das Leis
da Família «a sociedade conjugal baseia-se na liberdade e na igualdade (...)» procedendo assim à
substituição do art. 1185 do Código Civil de 1867, «ao marido incumbe, especialmente, a obrigação de
proteger e defender a pessoa e os bens da mulher; e a esta a de prestar obediência ao marido». Todas as
transformações alteraram profundamente a situação jurídica da mulher portuguesa.
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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
Contudo, as promessas respeitantes ao alargamento da participação eleitoral por via do sufrágio
universal não se concretizam, e o voto continuará censitário. Numa constante flutuação, instabilidade
governamental e institucional, o voto das mulheres não será considerado nas diversas legislações
eleitorais promulgadas. As mulheres aparecem como "não sujeito" de direito, o que exprime por
excelência a presença de representações discriminatórias sobre o feminino na dimensão lógico-
sistemática do campo jurídico.
Nos discursos produzidos pelo C.N.M.P., o direito de eleger e ser elegível representa o primeiro e
imprescindível passo na luta pela igualdade política e social entre sexos, fulcral para a emancipação das
mulheres. A recusa do voto feminino traduz o quadro ideológico patriarcal e conservador que define o
papel subalterno das mulheres na sociedade.
«Urge fazer desaparecer do Código todos os artigos grilhetas, longa série de velharias, que nos
inferiorizam como povo civilizado e progressivo. Está provado que a supressão de direitos da parte
maior da humanidade representa a injustiça na sua mais nítida expressão», (n" 5, Maio, 1917)
«O Direito Romano considerando todas as mulheres como incompetentes para se dirigirem,
atribuía a pretendida incapacidade feminina à falta de inteligência e à fraqueza de sexo. Já se disse
que "a libertação da mulher há de ser obra da mesma mulher", comecemos por conquistar o direito ao
voto porque só quando as leis deixarem de ser formuladas unicamente pelo mais forte, é que se poderá
fazer à luz da imparcialidade, a revisão dos códigos, reduzindo a pó o que nestes existe de criminoso e
de arcaico». (n°9, Setembro, 1918)
Todavia, a 14 de Março de 1911, é promulgado, pelo Governo Provisório, o decreto com força de
lei que rege o sistema eleitoral, posteriormente alterado pela Lei de 5 de Abril do mesmo ano. Segundo
o referido artigo desta lei, são considerados eleitores «os portugueses maiores de vinte e um anos»
que estejam compreendidos nas duas categorias: «1º, os que souberem ler e escrever; 2o, os que forem
chefes de família, entendendo-se como tais aqueles que, há mais de um ano à data do primeiro dia do
recenseamento, viveram em comum com qualquer ascendente, descendente, tio, irmão ou sobrinho, ou
com a sua mulher, e proverem aos encargos de família».
Baseando-se na omissão do sexo no texto da lei, Carolina Beatriz Angelo requer a inscrição
nos cadernos eleitorais dado que, sendo médica e viúva, e portanto chefe de família, considera estar
abrangida pelas disposições que definem a capacidade eleitoral. Sendo-lhe negada a inscrição, recorre
ao tribunal e a causa é favoravelmente julgada. Nas eleições constituintes de 28 de Maio de 1911, será
a primeira mulher portuguesa a votar. No sentido de colmatar a imprecisão da lei a respeito da restrição
do voto aos homens, a Presidência do Ministério decreta uma nova lei eleitoral em 1913, que impede
a repetição da participação eleitoral a qualquer outra mulher. Este facto ilustra bem de que forma a
produção jurídica eleitoral, ao estabelecer a desigualdade entre sexos, contraria e transforma em efeito
meramente simbólico a igualdade civil estipulada pela legislação, condicionando deste modo, no seio do
próprio campo jurídico, a efetividade da sua aplicação.
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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
Um momento fundamental para o feminismo
internacional foi o da primeira Guerra Mundial. O
contributo das mulheres na retaguarda da guerra
comprovou a justiça da reivindicação da capacidade
eleitoral e política, o que impulsionou a emancipação
feminina, ao mobilizar os relutantes ou indiferentes ao
feminismo e ao direito de voto.
As fações da direita republicana assumem o poder
após o golpe de 5 de Dezembro de 1917 que instaura
a «República Nova» de Sidónio Pais, e do qual resulta
um novo congresso. O Código Eleitoral é alterado e
preconiza o sufrágio direto do Presidente da República
mas nega a capacidade eleitoral feminina,
Os Democráticos reconquistam o poder em
1919, após a morte de Sidónio Pais e dos meses de
governo da "Monarquia do Norte". Procede-se à
revisão do Código Eleitoral e o Conselho Nacional
da Mulheres Portuguesas retoma a reivindicação do
voto, relembrando que, antes de 1910, o programa
republicano contemplava o sufrágio feminino.
«Por que não tem ainda os nossos ilustres e
prestigiosas, médicas, professoras, proprietários -chefes
de família que pagam as suas contribuições - direitos
de cidadão e, portanto, direito de voto, e o tem os seus
serviçais, os seus criados e empregados analfabetos,
sem consciência do ato que praticam, capazes de, por
um copo de vinho, venderem o seu voto (...). Demolidos
pulverizados os preconceitos religiosos e sociais,
porque se espera ainda? Serão reacionários os nossos
republicanos?» (n° 12, Dezembro de 1919)
Em Maio de 1923, Adelaide Cabete foi nomeada,
pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, representante
oficial do governo ao congresso internacional feminista
promovido pela Aliança Internacional para o Sufrágio
da Mulher, que teve lugar em Roma.
Em 1924, o C.N.M.P. realiza um congresso
feminista, na esteira dos congressos que os conselhos
nacionais federados, o Conselho Internacional, assim
como a Aliança Internacional para o Sufrágio e a
Ação Cívica e Política das Mulheres promoviam. Teve
um enorme impacto a nível nacional e internacional,
Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
recebem mensagens de apoio de destacados organismos
e figuras públicas dos meios intelectuais e políticos.
a destacar a de Aurora Castro Gouveia sobre
«Reivindicações políticas da mulher portuguesa», que
discute e refuta os argumentos que pretendem justificar
a restrição completa no quadro da ideologia integradora
e da preparação da função social das mulherum no
regime, a criação da organização feministas, ideológica
e organicamente ligados ao Estado: A Mocidade
Portuguesa Feminina (1938) e a Obra das Mães pela
Educação Nacional (1936) que promovia a educação
moral, social, religiosa e nacionalista das raparigas,
preparando-as para a maternidade e para o lar.
O Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas
continuava a existir. A fraca expressão do Conselho
não justificava a intervenção estatal para além
da «revisão», feita pela Comissão de Censura, ao
boletim publicado "Alma Feminina". Não era necessária
a repressão política ao
teses
apresentadas
ao
Congresso,

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Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
feminismo, bastaram as restrições legais ao associativismo e a proclamação do lugar das mulheres
através do discurso oficial. Mesmo assim, o Conselho desenvolveu estratégias discursivas de oposição às
restrições legais ao associativismo, mobilizando a mulheres para a participação social.
Em 1927, assiste-se a uma reorganização do recenseamento eleitoral, no qual as mulheres não são
admitidas como eleitoras, seguindo-se as óbvias reclamações do Conselho.
No final de 1930, são publicados na imprensa as bases para a reforma administrativa, que
definem a composição do eleitorado para as eleições das juntas de freguesia e das câmaras municipais e
contemplam o principio da intervenção das mulheres nos atos eleitorais, capacidade eleitoral unicamente
em função da chefia de família, mas onde apenas são elegíveis os homens.
A 5 de Maio de 1931, a ao abrigo do Decreto-Lei n° 19694, as disposições eleitorais vão
considerar, pela primeira vez na história política do país, as mulheres entre os cidadãos eleitores. Para as
juntas de freguesia, eleitos por sufrágio direto parcial, são considerados eleitores «os cidadãos eleitores
de um e outro sexo» chefes de família. No respeitante às mulheres, são consideradas chefes de família
as «viúvas, divorciadas ou judicialmente separadas de pessoas e bens com família própria e as casadas
cujos maridos estejam ausentes nas colónias ou no estrangeiro».
A eleição para as câmaras municipais era efetuada pelas juntas, pelas corporações do conselho,
pelos homens que soubesse ler e escrever ou que pagassem uma quantia por imposto, de pelo menos
100$00, e pelas mulheres com curso secundário ou superior comprovado pelo diploma respetivo, mas
excluía do ato eleitoral todas as mulheres casadas que vivessem com os cônjuges, as mulheres solteiras e
todas as que não possuíssem as habilitações atrás referidas.
O conselho considera a nova lei eleitoral um avanço considerável na marcha do progresso do
sufragismo feminino, mas foca o carácter restrito da mesma, analisando as numerosas situações que
não são contempladas pelas disposições legais e que impedem a participação no ato eleitoral de várias
mulheres. Questiona-se o motivo de não se conceber o voto feminino em igualdade de circunstâncias
com o voto dos homens. Quando o segundo congresso feminista é realizado, quatro anos mais tarde,
recordar-se-ia o grande acolhimento do governo republicano ao congresso de 1924 e lamentava: «mas o
que resultou, de concreto? Nada! Silêncio, tudo silêncio!» (n° 3, Maio-Junho, 1928).
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3.2.Feminismo no Estado Novo
A negação dos princípios democráticos
e liberais e do pluralismo partidário, resulta da
instauração de uma ordem autoritária a 28 de Maio
de 1926, e da sua institucionalização definitiva em
1933.
A democracia, o liberalismo, o partidarismo,
o individualismo, o socialismo, o anarquismo, o
comunismo, o feminismo, constituem o quadro das
constantes mais obsessivas de repressão do Estado
Novo.
Na constituição de 1933, no artigo 5o, é
reafirmada a igualdade de todos os cidadãos
perante a lei, nomeadamente a igualdade entre
sexos, mas apenas no aspeto formal e abstrato, uma
vez que se considera: «salvo, quanto à mulher, as
diferenças resultantes da sua natureza e do bem da
família».
A mística da família e a apologia do regresso
ao lar, constituíram a expressão «intimista» do
espaço social hierarquicamente dividido, ordenado
e estruturado segundo os princípios políticos e
económicos do Estado autoritário e corporativo,
assistindo-se ao que Foucault chama de observação
minuciosa do quotidiano, a atenção política às
pequenas coisas, a disciplina como anatomia
política de detalhe (1975: 141-143).
Durante o Estado Novo, a definição do
feminino é inseparável do espaço familiar, a mulher
existe socialmente não como um elemento que
intervém na coisa pública, mas, tão-só, como um
dos elementos da família.
Atente-se aos discurso de Salazar:
«Temos como lógico na vida social e
como útil à económica, e existência regular
da vida do trabalhador; (...) defendemos que o
trabalho da mulher casada e geralmente até o
Maria Ortelinda Barros Gonçalves, Associação Universitária de Espinho, CEPESE
da mulher solteira, integrada na família e sem
a responsabilidade da mesma, não deve ser
fomentado: nunca houve nenhuma dona de casa
que não tivesse imenso que fazer».
Novas disposições legais relativas às
operações e ao recenseamento eleitoral para as
juntas e câmaras, para a Assembleia Nacional
e para a Presidência da Republica, vão sendo
promulgados, como se pode ver em anexo.
Destaque-se o Decreto-Lei n° 24631 de
6 de Novembro de 1937, que regulamentava a
eleição e elegibilidade para a Assembleia Nacional,
onde a mulher não aparece inelegível. Assim, são
apresentadas três candidatas a deputadas para a
Assembleia Nacional e uma à Câmara Corporativa,
mulheres estas que estiveram à frente da Mocidade
Portuguesa Feminina e da Obra das Mães pela
Educação Nacional.
O C.N.M.P. manifesta-se de forma
entusiástica,
apelidando
as
deputadas
de "verdadeiras feministas".
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Salazar continua a ser pressionado, particularmente por organizações feministas internacionais,
nas quais o Conselho se encontrava filiado.
Com a segunda Guerra Mundial, as organizações feministas vivem um período de estagnação e o
Conselho diminui a sua atividade.
Com o final da guerra, assistiu-se a um descontentamento generalizado nas camadas urbanas e
ao ressurgimento da oposição política e cultural. Surgiam núcleos feministas integrados no Movimento
de Unidade Nacional Antifascista, formava-se o Movimento de Unidade Democrática e a Associação
Feminina para a Paz, associações estas que foram aprofundando o relacionamento com o Conselho.
A partir de 1945, o Conselho ressurgia e imprimia uma nova dinâmica, com a realização
prática de atividades e um aumento significativo de sócios que atravessava todo o espectro social
português.
/
Através da Lei n° 2015, promulgada a 28 de Maio de 1946, o corpo eleitoral feminino é
substancialmente alargado, permanecendo, contudo, a desigualdade jurídica que consagrava a definição
da capacidade eleitoral das mulheres e dos homens, levando o Conselho a reafirmar a continuidade
dos trabalhos de discussão jurídica e a apresentação de exposições de protesto ao governo até que seja
aprovada uma lei onde não haja lugar para restrições baseadas na diferença de género.
Em 1945, o Conselho lança o projeto de exposição de "Livros Escritos por Mulheres". Esboçaram-
se contactos com todas as embaixadas estrangeiras em Lisboa, recolheram-se livros de variados países,
nomeadamente de países de leste, receberam-se apoios de diversas editoras e Associações de Mulheres
Internacionais.
A exposição é inaugurada na Sociedade Nacional de Belas-Artes a 4 de Janeiro de 1947, com a
presença de representantes do Presidente da República e do Governador Civil, Ministro da Suíça e o
Encarregado dos Negócios Estrangeiros da Argentina. Foi visitada durante sete dias por milhares de
pessoas. Conjuntamente foram exibidos oito filmes sobre a mulher e a criança.
A imprensa teceu rasgados elogios a esta iniciativa. No entanto, depois de encerrada a exposição,
em alguns jornais começa uma forte campanha contra o Conselho, insistindo no seu carácter de oposição
partidária ao regime, associando o feminismo aos comunismo, com títulos significativos como «saias
soviéticas», «Cavalo de Troia. Atenção mulheres de Viseu!».
A 28 de Janeiro de 1947, a sede do Conselho é encerrada sem qualquer aviso prévio, e justificado
com argumentos como «pôr incondicionalmente o seu esforço ao serviço de todas as ideias que possam
concorrer para o bem-estar da mulher», o qual, «por ser vago, não permite ajuizar da sua conformidade
com as leis do país».
Haveriam de decorrer vinte anos desde a data de encerramento do Conselho até essa outra data em
que se vem por fim estabelecer o direito de voto em igualdade de circunstâncias para os homens
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e mulheres. Nenhum tipo de preâmbulo antecede a lei n° 2137 de 26 de Dezembro de 1968, pelo
qual se estipula que são «eleitores de Assembleia Nacional todos os cidadãos portugueses, maiores
ou emancipados, que saibam ler e escrever português e não estejam abrangidos por qualquer das
incapacidades previstas na lei».
3.3 Feminismo nos anos 70 e 80
Muitas conceções do Estado Novo entram em rutura, com o início da guerra colonial em 1961
e com o surto emigratório que começou a atingir proporções alarmantes, levando muitas mulheres a
assumir o sustento da família, entrando no mercado de trabalho.
Simultaneamente, assiste-se à entrada da mulher nos conflitos laborais. Enquadradas com forças
sindicais, as mulheres aspiram a melhores condições de trabalho, pela semana de 40 horas, contra os
despedimentos e por infantários.
Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Isabel Barreno editam Novas Cartas
Portuguesas, considerado como o primeiro manifesto feminista português, denunciando o «sistema
social e político assente em formas patriarcais de domínio sobre as mulheres, e que continha severas
referencias à guerra colonial» (Tavares, Manuela, 2000).
A crise económica e as divisões internas no seu próprio seio levaram o regime ao colapso. O 25 de
Abril rompeu o cerco e despoletou as energias e capacidades da mulher, expressas na participação nos
movimentos sociais.
Para a engenheira Maria de Lurdes Pintassilgo, as mulheres teriam saído em massa para a rua:
"Houve uma grande presença de mulheres e um grande entusiasmo; mas veio a acontecer como noutras
revoluções: as mulheres que são protagonistas num primeiro momento, depois são silenciadas, pela
calma que se segue à revolução. Rapidamente se tornam invisíveis; temos a sensação que regressaram
a casa, mas continuam a lutar". Refere a mesma autora a importante ação das mulheres sindicalistas,
jornalistas, escritoras que continuam a intervir em todo este período, "mas cuja ação e voz eram
muitas vezes abafadas por outros centros de poder e de ação" (Pintassilgo, Maria de Lurdes, Os novos
Feminismos: 75).
Com a transformação social, surgem organizações feministas, tais como, Movimento de
Libertação das Mulheres (MLM), a Campanha Nacional pelo Aborto e Contraceção (CNAC), a Liga dos
Direitos da Mulher (LDM), o Grupo Autónomo de Mulheres do Porto (GANO), a Cooperativa Editora
das Mulheres (IDM) etc. No entanto, a fragmentação e sucessivas cisões e particularmente a pluralidade
de perspetivas ideológicas enfraqueceram o movimento feminista, tornando-se num alvo fácil do
ataque das forças conservadoras, do movimento operário e das organizações marxistas, onde o sexismo
imperava.
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Os feminismos acabam sempre por refletir as tradições políticas dominantes, ligados sempre às
ideologias e às correntes políticas.
Para se proceder à análise dos feminismos em Portugal, nas décadas de 70 e 80, é importante
considerar as diferentes correntes feministas existentes.
3.3.1. Feminismo Radical - A AFIRMAÇÃO NUMA BASE SOCIAL LIMITADA
Segundo Manuel Tavares(2000), Shulamith Firestone , com a sua obra Dialética do Sexo,
influenciou sobremaneira a corrente feminista radical. Procurou reelaborar um marxismo sob o ponto
de vista feminista, ou seja, "desenvolver uma visão materialista da história baseada no próprio sexo."
Assim, o materialismo histórico estaria incompleto devido à sua definição estritamente económica,
ignorando um nível de realidade não derivado da economia. "Para a revolução feminista precisa-se de
uma análise de sexos tão completa quanto para a revolução económica" foi a análise de Marx e de Engels
sobre o antagonismo de classes (Firestone, S., A Dialéctica dos Sexos: 300).
O objetivo fundamental do feminismo radical seria destruir o sistema sexista. Entendia-se a
opressão das mulheres baseada na sua estigmatização como uma classe inferior determinada pelo sexo,
legitimando assim a sua luta contra os homens e suas instituições sociais e políticas. Considerava-
se ainda que as organizações autónomas de mulheres eram uma forma natural do estar e da luta das
mulheres.
Ao analisar o conteúdo a nível do discurso e o tipo de ações, podemos estabelecer ligações entre
esta corrente e o Movimento de Libertação das Mulheres (MLM), com a Cooperativa Editorial das
Mulheres (IDM), Grupo de Mulheres do Porto, Grupo Autónomo de Mulheres do Porto, Grupo de
Mulheres da Associação Académica de Coimbra e Grupo "As Bruxas", onde é possível identificar ideias
comuns:
- a reprodução como principal fator de desigualdade e opressão das mulheres;
- a crítica ao marxismo pela "redução da opressão dos sexos à luta de classes";
- a conceção das mulheres como uma classe explorada pelos homens;
-
capitalismo e socialismo;
- a preocupação pela sexualidade feminina, não subordinada às exigências masculinas.
A luta pelo aborto e a denúncia das situações de violência sobre as mulheres centraram as ações
desenvolvidas por estas associações. A implantação desta corrente junto das mulheres portuguesas foi
fraca, limitando-se ao sector intelectual.
a existência do patriarcado como um sistema anterior ao capitalismo e a sua continuidade
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3.3.2. Feminismo Socialista / Marxista - Da insuficiência teórica ao primado da ação
Esta corrente valoriza as contradições de género e baseia as suas análises nas contradições
de classe como motor da história. Segundo esta conceção, do processo de dominação, comandado
pela exploração capitalista, resulta o estatuto das mulheres, e que a solidariedade feminina surge por
necessidade história e não por determinismo biológico. Como fator emancipador coloca a luta pelo
direito ao trabalho, apontando o socialismo como o único capaz de alterar a superestrutura, em termos
ideológicos e culturais, promovendo assim a luta contra as conceções sexistas.
Esta conceção argumenta ainda que, ao recorrer-se exclusivamente à fundamentação biológica
e/ou à psicanalítica para explicar as desigualdades sexuais, tem como resultado o isolamento do
feminismo.
As formas e as origens da opressão da mulher só podem ser explicadas, segundo esta corrente,
dentro das leis do desenvolvimento social, reconhecendo, no entanto, alguns contributos teóricos sobre a
opressão das mulheres, nas outras conceções de feminismo.
Defendem que, embora na opressão do sexo feminino possa existir alguma determinação
socioeconómica, não resulta obrigatoriamente daí que subordinação se dê exclusivamente no âmbito da
opressão de classes. Manifesta-se também enquanto opressão de género. Assim, a oposição de classes
e a oposição dos sexos podem ser consideradas fenómenos separados, mas com uma inter-relação nos
fundamentos da sua origem.
A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta, fundada em 1976) foi a associação onde
se tornou bem visível a influência marxista, "revolucionária" e ligada às "mulheres do povo". Nos seus
discursos, denunciava-se a opressão das mulheres, fazia-se a apologia da luta de classes como veículo
despoletador das capacidades da mulher.
SE a UMAR se situava dentro do quadrante político e ideológico da formação que esteve na sua
origem, a UDP, o MDM situava-se perto do PCP, tendo centrado a sua luta pela Paz, solidariedade
internacional e contra o aumento do custo de vida, ligando-se à luta pela legalização do aborto, na
década de 80.
Pode afirmar-se que as duas associações acima citadas identificam-se, em termos de discurso e
de acção, com a corrente feminista/marxista, não tendo, no entanto, desenvolvido um corpo teórico nem
estabelecido debates com outras sensibilidades.
3.3.3. Feminismo Liberal dos anos 80
A tónica da intervenção desta corrente é colocada «na obtenção de direitos consignados
juridicamente no quadro da atual sociedade» (Tavares, Manuela, 2000). A consagração da
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igualdade jurídica é a base, sendo a materialização dos direitos algo que tem a ver com a evolução das
mentalidades, e muito pouco com o papel intervencionista do Estado nos vários domínios.
A igualdade formal permite que as mulheres obtenham os seus direitos. Aqui a mulher é colocada
como um agente autónomo, onde a assertividade e a independência ganham especial relevo, com
possibilidades de ultrapassarem todas as barreiras e tornarem-se mulheres de "sucesso", alcançando
lugares de grande visibilidade na política e na esfera económica.
O formalismo nos direitos resulta em parte do dogmatismo à volta da globalização, centralidade do
mercado e da ineficiência do Estado.
Para o liberalismo clássico não existe diferença entre os homens e as mulheres. A igualdade
depende das capacidades das próprias mulheres para competirem livremente com os homens, exigindo-
se para tal igualdade de tratamento.
As estratégias passam pela constituição de grupos de pressão junto do poder político para a
obtenção de legislação antidiscriminatória, fazendo, assim, passar a ideia que o simples acesso da mulher
ao poder político é, por si só, fator capaz de processar grandes transformação na sociedade.
Esta imagem de mulher executiva de "sucesso", vendida pelos "media" como modelo de
emancipação, distorce a realidade na medida que as mulheres socialmente desfavorecidas, com fracos
níveis de recursos, não podem aspirar à sua independência, dada a sua fragilidade para competir no
mercado. Esta corrente, fortemente implantada nos E.U.A., nada tem a oferecer às mulheres pobres,
particularmente às mulheres de cor.
Esta corrente de feminismo surge em Portugal no final dos anos 80, particularmente em
associações ligadas a grupos profissionais ou a sectores de intervenção, desenvolvendo toda a filosofia de
intervenção baseada no primado da "pessoa". Algumas reportagens de revistas femininas acompanham
e promovem mulheres que se destacam na vida do país, acabando por ter efeitos a nível de um discurso
mais assertivo sobre as mulheres em cargos de decisão.
Associações como A Aliança para a Democracia Paritária, a Associação Convergência e a
Associação Ana de Castro Osório, surgem nos anos 90, e colocam como tónica fundamental do seu
discurso o acesso das mulheres a lugares de decisão, como fator, por si só, transformador da sociedade.
No entanto, é possível observar duas formas de posicionamento diferente. Se, por um lado, há
quem reconheça que a importância do acesso das mulheres ao poder político exija a criação de condições
de acesso, através da criação de condições sociais e cotas nos partidos, outros apresentam uma revisão
mais elitista ao acesso do poder, focando a sua atuação na formação de mulheres qualificadas capazes de
protagonizar o acesso ao poder atuando como grupos de pressão.
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3.3.4. Pós- Feminismo
A expressão Pós-Feminismo surge nos anos 80 baseada na ideia de que o feminismo dos anos 60 e
70, "feminismo de segunda vaga", estaria ultrapassado, com a nova conjuntura social.
O pós- modernismo nega uma história geral das origens da opressão das mulheres, refutando o
discurso universalizante e privilegiando a história de fragmentos do real, a interdeterminação, a diferença
e a heterogeneidade, onde a ciência é uma das leituras possíveis, entre outras. Estas noções têm origem
em filósofos franceses pós-estruturalistas, como Foucault, Deleuze, Derrida e Kristeva. . Alguns autores
consideram este discurso um aliado do feminismo, já que, «ao substituir-se a linearidade evolutiva de um
processo histórico e universal por temporalidades múltiplas» (Tavares, Manuela, 2000), permite enfatizar
a experiência histórica e social das mulheres. Outros, porém, chamam a atenção para o perigo de se
cair em teorias parcelares ao rejeitar a noção da totalidade, impedindo explicar o inter-relacionamento e
interdependência entre as várias relações que formam os sistemas sociais e políticos.
Ao recusar a ideia do "Eu feminino" (uma das temáticas centrais do pós-modernismo é a morte
do sujeito), esta corrente do pensamento critica a cultura feminina. Propõe-se abandonar as metáforas
biológicas, pois que o processo através do qual as entidades masculinas e femininas são constituídas é
relacional, negando a importância do biológico para a definição das diferenças sexuais.
Esta corrente dá especial ênfase à atuação descentrada da mulher ou pequenos grupos de pressão
na luta contra formas específicas de descriminação, "Feminismo de resistência", a nível meio-social,
sendo a desconstrução das identidades uma condição necessária para a compreensão da " diversidade das
relações atuais em que os princípios da liberdade e igualdade devem aplicar-se. Assim, a política feminista
é entendida como a busca de metas e objetivos feministas no contexto de uma articulação mais vasta de
exigências, e não como uma forma política independente (Tavares, 2000).
O pós-modernismo distancia-se do feminismo na medida que este não separa a construção teórica de uma
perspetiva emancipatória das mulheres, produzindo tão-só uma narrativa da opressão feminina, insistindo na
articulação das questões das mulheres como as determinações históricas e políticas, enquanto o pós-moderno
vislumbra o fim da história do social e do político.
Em Portugal, o debate sobre o pós-feminino está por fazer ou ainda no início, mas, aqui e ali
surgem algumas críticas que apontam à atualidade do conjunto «de reivindicações femininas que
não são possíveis de percursos meramente individuais para a sua concretização». (Tavares, Manuela, 2000)
adiantam mesmo que o avanço de um modelo não liberal que acentua a sua estratégia na
proproclamação do fim das ideologias e desarticulação dos movimentos sociais, fragiliza a ação das
ONGs de mulheres, de movimentos sociais e de trabalhadores para encontrarem resposta ao avanço
desse mesmo modelo.
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4. O Lugar das Mulheres nas Nossas Sociedades - Perspetivas de Futuro
É frequente pensar que sobre o papel da mulher na sociedade já foi tudo dito, que a igualdade entre
sexos é considerada por todos um direito adquirido, inquestionável e inegociável, e que as mulheres e
os homens têm igual acesso à educação, à formação profissional, ao mercado de trabalho das diferentes
profissões especializadas, que a participação cívica e política está aberta a ambos os sexos. Contudo, ao
debruçarmo-nos sobre a realidade atual em Portugal, deparamo-nos com as seguintes situações:
- o valor das remunerações médias do trabalho das mulheres é significativamente inferior ao
da remuneração média do trabalho dos homens;
- o desemprego afeta, comparativamente mais, as mulheres do que os homens e,
analogamente, são mais elevados os índices de pobreza entre a população feminina;
-
pior remunerados;
-
chefia são maioritariamente desempenhados por homens, mesmo quando se dá o caso de ser
proporcionalmente mais elevada a participação feminina nos escalões mais baixos da pirâmide
hierárquica;
-
depreciada do feminino e, não raro, seguem práticas de manifesta ocultação da presença das
mulheres na vida social, económica e política;
-
(partidos, governos, parlamentos, autarquias, etc.), as mulheres constituem uma minoria
envergonhada, sujeitas que estão a ter que tomar por referência a norma masculina, assumida esta
como um neutro universal (anexos);
-
proprietários do capital;
- etc, etc...
Por outro lado, não obstante as declarações de boa intenção em contrário, são as mulheres que
suportam o maior peso das responsabilidades da vida doméstica. Mas estes desempenhos, fundamentais
para o bem-estar de todos os cidadãos e cidadãs, não são ainda devidamente reconhecidos e valorizados
pela sociedade no seu conjunto.
Há que considerar as mulheres como, pelo menos, metade da população de um dado território ou
espaço político. Não vale, por isso, olhar para a problemática da igualdade entre homens e mulheres,
na perspetival dos direitos das minorias. As mulheres são a metade, ou mais, de toda uma população.
Acresce que as mulheres constituem o elemento mais determinante da reprodução e
as mulheres tendem a desempenhar tarefas que o mercado considera menos qualificados e
em todos os sectores das empresas privadas e da própria administração pública, os lugares
os meios de comunicação social, e em especial a televisão, dão-nos uma imagem distorcida
nas instituições públicas e, em especial, nas instâncias do poder político e autárquico
na economia, as mulheres raramente detêm o poder de decisão, mesmo quando são os
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renovação de gerações e merecem, também por isso, uma particular atenção por parte da sociedade. Este
enfoque numérico pode constituir-se numa ilusão. É que, por razões que tem a ver com a história e a
partilha de poder, são os homens que detêm o poder político e a visibilidade política.
É desta grelha de leitura da realidade que partimos à descoberta de pistas do futuro.
Há a destacar o alcance inovador de "mainstreaming", expressão utilizada sobretudo na área das
questões da igualdade entre os géneros, relativas a programas de desenvolvimento e de cooperação.
Subjacente a este conceito, está a ideia de que existem objetivos da política (o da igualdade do género
como o do equilíbrio ecológico ou a superação da exclusão social) cuja prossecução atravessa as
diferentes políticas correntes (economia e finanças, saúde, educação, transportes, justiça, etc). Por
conseguinte, tais objetivos só poderão ser alcançados quando todas essas políticas gerais e correntes
forem concebidas, aprovadas, implementadas e avaliadas, tendo em
conta a dimensão em causa.
As estratégias de "mainstreaming", embora formalmente adaptadas pelos estados membros
da Organização das Nações Unidas, estão longe de uma adoção generalizada por parte daqueles que
a elas se comprometeram, e se constituem como prática corrente inquestionável. As organizações
internacionais interessadas na matéria têm multiplicado os esforços tendentes à aceleração do processo,
nomeadamente através do aperfeiçoamento dos conceitos e metodologias, da produção e difusão de
instrumentos analíticos apropriados à análise das situações e à avaliação das ações. Em particular, estão
previstos observatórios sobre a igualdade de género e a realização, a nível nacional, de relatórios de
progresso acerca da implementação da estratégia acordada em Beijing, (primeiro passo no sentido da
internacionalização da igualdade de género nas políticas públicas, quando os responsáveis políticos,
ao mais alto nível, subescreveram a Plataforma da Acão, com os estados signatários a assumirem o
compromisso de adaptar a "mainstreaming" como estratégia de igualdade de género).
Paralelamente a este tipo de ações, visando diretamente a inclusão da perspetival da igualdade de
género em todas as políticas correntes, foi desencadeada toda uma reflexão em torno da problemática
da equidade da partilha de responsabilidades e tarefas entre homens e mulheres, ,relativamente à
configuração da vida privada e a sua compatibilização com a vida pública, designadamente com a vida
profissional, a fim de alcançar a igualdade efetiva.
Dentro desta abordagem destacam-se os seguintes eixos:
-
possibilitar uma melhor harmonização entre as responsabilidades inerentes à vida privada,
designadamente o cuidado com as crianças, parentes idosos ou doentes, o cuidado da casa e a
economia doméstica e as que decorrem na vida profissional e participação política;
-
política e nos média;
elaboração das bases para um novo contrato social entre o público e o privado, de modo a
as ações positivas que assegurem uma representação mais equitativa das mulheres na vida
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- a abolição sistemática dos estereótipos de cariz sexista que possam subsistir no ensino, na
comunicação social e na publicidade.
5. Conclusão
O que conhecemos através da história é um modelo de dominação masculina nas várias esferas da
vida em sociedade, da economia à política, da cultura à religião.
Com o fenómeno da industrialização e o desenvolvimento capitalista a ele associado, a dominação
masculina acentuou-se e nem sequer a herança cultural da igualdade, fraternidade e liberdade, recebida
da Revolução Francesa e do século das luzes, serviu de dique àquele legado histórico.
Foi no século XX que ganharam expressão os movimentos pela emancipação das mulheres, no
plano da igualdade de direitos e de oportunidades. E foi já no último quartel do século passado que se
desenvolveram os conceitos de género e da igualdade de género e, mais recentemente, ganhou alcance
político o reconhecimento da paridade na construção de uma real cidadania e de uma democracia
sustentável. Acrescenta-se que já não são apenas as mulheres que estão empenhadas nesta luta. Os
homens estão-no igualmente, pois o desafio que todos têm pela frente é o de aprofundar as características
próprias de cada género e de criar sistemas de organização de vida coletiva que maximizem as sinergias
de uma cooperação efetiva entre os homens e as mulheres.
Existe, hoje, uma crise da democracia política dos países capitalistas de economia avançada.
Vários indicadores se conjugam para o revelar: o absentismo generalizado dos eleitores, a fraca
participação das pessoas nos processos políticos, até ao celticismo e desconfiança com que é, hoje,
olhada a classe política. Isto para não falar da corrupção e enfraquecimento dos poderes políticos face ao
poder dos média e/ou poder económico, cada vez mais globalizados.
Por outro lado, são cada vez mais notórias as consequências das macro decisões sobre o quotidiano
dos cidadãos e cidadãs, incluindo o seu futuro a médio e a longo prazo.
Neste contexto, é cada vez mais provável que uma das metades (a metade feminina) continue, na
prática, afastada do exercício do direito e do dever da cidadania, que é o da representação e participação
no processo de decisão política.
A marginalização ou exclusão das mulheres da vida política corrói as bases da própria democracia.
Em primeiro lugar, porque esta ignora, de facto, a especificidade do género; em segundo lugar, porque,
prescinde, cegamente, do concurso de metade da sociedade, desprezando assim parte considerável dos
recursos humanos.
Quanto aos direitos humanos, basta recordar que a paridade do género decorre da afirmação do
princípio da dignidade humana. O teste da veracidade dos direitos humanos passa pela
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correspondente salvaguarda da afirmação positiva da paridade de género, como princípio inspirador e
organizador de toda uma vida coletiva na esfera privada e pública.
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